segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Flavia Lima* - Ecos que ainda vêm da casa-grande

- Folha de S. Paulo (20?10/2019)

Destino da imprensa está atrelado à importância que dá a 56% da população

Em homenagem ao Dia da Criança, no último sábado, o Correio Braziliense publicou fotos de 27 crianças sob o título "Elas são o futuro do Brasil".

Todas elas eram brancas.

Após protestos de leitores, o jornal veio a público pedir desculpas. Recorrendo à ideia de um país miscigenado, reconheceu o erro como "gravíssimo".

O retrato escolhido pelo principal jornal de Brasília dialoga, ainda que de modo inconsciente, com algo em que acreditavam alguns intelectuais no fim do século 19: a ideia de que a miscigenação embranqueceria o país e o faria avançar no processo civilizatório.

Mais de um século depois, o Brasil tem uma cara muito diferente. Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os negros —a soma dos que se declaram pretos e pardos— representam 56% da população.

A despeito disso, a imagem que a imprensa continua fazendo do país é majoritariamente branca. Por quê?

Um longo texto da revista Piauí de outubro ("Letra Preta") indica que a quase ausência de negros produzindo conteúdo e decidindo os rumos das redações é uma boa explicação.

Quanto menor a diversidade, menor a pluralidade de visões e de representações.

É por isso que falta sensibilidade para perceber quão absurdo é excluir crianças negras desse tipo de cobertura, sobretudo num momento em que elas enfrentam tanta violência.

Um levantamento informal aponta que a Folha e o Agora, periódicos do mesmo grupo, têm, juntos, tem cerca de 300 profissionais em suas redações. Seis são negros. Pretos e pardos correspondem, portanto, a 2% do total de jornalistas do maior periódico do país.

Numa contagem feita no site da Folha, entre os cerca de 130 colunistas há 5 negros.

Isso não quer dizer que não existam avanços. A diversidade tem sido aos poucos incorporada como um valor também pela grande mídia.

Vinicius Mota, secretário de Redação, reconhece que a fatia de negros no jornal é pequena e diz que o meio efetivo de aumentá-la será a reformulação do processo de seleção de jornalistas e trainees.
O leitor ou telespectador também vem mudando. As novas gerações são mais sensíveis ao tema e reagem mais à discriminação e ao racismo.

As redes sociais ajudam a verbalizar a indignação com rapidez e eficiência.

Recentemente, leitores reagiram no Twitter a reportagens da Folha sobre a inserção das mulheres negras na sociedade.

Intitulada "Maioria Invisível", a ótima série parte do princípio de que as mulheres negras formam o maior grupo da população e, a partir daí, aponta vários obstáculos.

O leitor aproveitou a deixa para indicar outra invisibilidade. "Quantos profissionais negros atuam no grupo?", questionou Kauê no Twitter.

Num outro episódio, um importante crítico de televisão recebeu comentários de desaprovação por ter se disposto a contar os erros cometidos pela âncora do Jornal Hoje, Maria Júlia Coutinho, que é negra.

Daniel Castro disse à coluna que decidiu expor os erros após ter recebido a informação de que o nervosismo da apresentadora pautou reunião da cúpula do jornalismo da Globo.

O recurso, disse, nunca havia sido usado antes porque essa foi a primeira vez em que ele se deparou com uma informação de bastidores desse teor —segundo a qual o motivo do temor eram erros no ar, como engolir uma letra ou palavra.

Na minha avaliação, é preciso partir de um conjunto maior de indivíduos para observar se o padrão de erros está ou não dentro da curva esperada.

Se Castro tivesse feito isso, poderia ter contribuído até para mostrar se a preocupação com a profissional tinha mesmo fundamento. Não tendo feito, o ato soa discriminatório —no sentido de se dar tratamento diferenciado a um grupo específico, social ou étnico.

Para o bem de múltiplos pontos de vista e o enfrentamento do racismo, a presença de negros na produção jornalística é um recurso fundamental.

Alguém que diga que um título como "Rochelle usa 'sexo com negão' para se vingar de irmã drogada" (também no blog de Daniel Castro, em referência a uma novela) é constrangedor e apela a um dos estereótipos mais batidos reservados ao homem negro.

O processo pode também trazer dividendos. A equipe de Mídias Sociais da Folha observou a presença de negros e negras no Instagram do jornal nos últimos três meses.

Personagens negros apareceram em apenas 10% das postagens. Mas, ao olharmos a soma de curtidas, comentários e compartilhamentos, algo valioso nas redes sociais, negros aparecem em 3 das 10 postagens mais engajadas.

Ainda que os negros fossem uma minoria, merecíamos ser bem representados na mídia. Sendo maioria, é uma questão também de democracia.

O destino da mídia está atrelado à atenção e à importância que (não) dá a mais de 55% da população brasileira.

*Flavia Lima, repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. É ombudsman da Folha desde maio de 2019.

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