sexta-feira, 11 de outubro de 2019

José de Souza Martins* – A ignorância moderna

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Estamos em face de uma crise do senso comum, que expressa mudanças profundas na sociedade. No caso brasileiro, representadas por perdas de um subcapitalismo que tolhe nosso desenvolvimento

A sociedade brasileira carece de uma atenção crítica quanto às mudanças no conhecimento de senso comum que mediatiza condutas e deforma a compreensão social da realidade. O senso comum é a necessária, ainda que precária, certeza numa sociedade de incertezas cada vez maiores. Sua compreensão científica esclarece a função que tem na contínua regeneração dos mecanismos de reprodução das relações sociais contra a possibilidade de transformações e inovações.

Há um empobrecimento cultural mais intenso em países subdesenvolvidos, como o Brasil, do que nos países de tradicional valorização do conhecimento na formação das pessoas desde a infância, o que se reflete no senso comum. Com os recursos modernos de difusão da cultura, como o celular e a internet, entre os desprovidos do discernimento apropriado, o senso comum já é outro. Mais informadas estão as pessoas e menos conhecedoras são da diversidade cultural que é própria da sociedade atual.

O fenômeno sugere aos especialistas a inovação de uma sociologia do desconhecimento, um campo aberto à indagação científica. Tanto no que é o conhecimento insuficiente, quanto em suas variantes, como a mentira e a mistificação nos modos sociais de conhecer, desconhecendo, a realidade profunda. O desconhecimento como meio de preservação popular da ordem. Como o é o conhecimento distorcido do mundo por um modo de vida aquém do que é direito e necessário.

Estamos em face de uma crise do senso comum, que expressa mudanças profundas na organização da sociedade. No caso brasileiro, representadas por perdas próprias de um subcapitalismo que tolhe nosso desenvolvimento econômico e social.

Há fatores históricos por trás dessas anomalias do saber. O trabalho fragmentado da produção moderna sonega cada vez mais a íntegra do conhecimento técnico à maior parte dos trabalhadores. O saber está hoje sob o domínio impessoal dos meios institucionais de acumulação do conhecimento, que separaram quem trabalha de quem sabe como e por que o trabalho é daquele jeito.

Essas alterações no âmbito da produção disseminaram uma concepção hierárquica do conhecimento com base no privilegiamento da utilidade e da lucratividade. Minimizaram a relevância social e histórica do saber pelo saber, fundamento do conhecimento erudito, como a ciência e a arte. Na contrapartida geraram as condições culturais e sociais de um novo senso comum, abundante e pobre, que bloqueia o interesse pelos desafios da erudição.

No contrafluxo desses dilemas, e já fora do âmbito da produção industrial e agrícola, o conhecimento pulverizado e as tecnologias de acesso superficial e fácil, colocaram ao alcance do homem simples conhecimentos enciclopédicos. Reduzidos, porém, ao banal. Hoje, qualquer pessoa, mesmo a de insuficiente escolaridade, pode ter acesso à vulgarização do saber para conhecer o supérfluo e desconhecer o essencial.

Quanto à consciência social, de que todos carecemos para viver em sociedade, a informação superficial torna a nossa vaga e imprecisa. Tateamos no que não sabemos, mas julgamos saber sobre nós mesmos. Há um século tínhamos aqui mais clareza quanto ao que éramos. Podíamos, por isso, fazer demandas sociais e políticas mais consequentes, tínhamos consciência de quais eram as privações que nos faziam pobres, não só do essencial à vida. Mas também do conhecimento intuitivo e cotidiano dos nossos enganos. Nosso senso comum era o fundamento de nossa consciência crítica. Hoje é o fundamento do nosso conformismo.

Se hoje nosso senso comum e nossa consciência social tivessem a mesma qualidade de 1917, não estaríamos sujeitos à cultura de manipulação que nos subjuga e engana, nem teríamos aceito com tanta facilidade a pilhagem de nossos direitos sociais em questões como o emprego e a previdência social. Não teríamos aceito a tese de que os idosos que trabalharam a vida inteira por menos do que valia seu trabalho são os causadores dos prejuízos da Previdência.

Estaríamos perguntando quem foi que ganhou com esse prejuízo.

Com os recursos modernos, a grande massa marginalizada pela desinformação e pela subinformação reelabora, nesse novo senso comum, sua alienação social. Estamos em face de uma nova ignorância, a ignorância moderna, insuficiente, a do saber fundamentalista sobre todos os assuntos. Religiões têm sido inventadas em cima dessa precariedade. Crendices anticientíficas competem com a ciência. Política antipolítica ergue e renova o Estado populista e antissocial.

Em outros tempos, o saber dos simples era um indício de consciência social verdadeira, das contradições e suas injustiças. Hoje, a nova ignorância é a grande expressão de uma consciência social falsa e cúmplice.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto).

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