domingo, 27 de outubro de 2019

Luiz Carlos Azedo - Coringas e Bacuraus

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“O preceito de que para se construir algo é preciso destruir o sistema preexistente é perigoso. Combina tanto com o ultraliberalismo de direita quanto com o radicalismo de ultraesquerda

O tema da violência absurda e brutal no cinema de Hollywood faz parte da política de exportação do americanismo, dos antigos filmes de caubóis aos modernos blockbusters de inspiração noir à la Quentin Tarantino. Os ingredientes do modo de vida americano — do sonho de ascensão social à justiça pelas próprias mãos —, estão todos lá e vão acompanhando as mudanças dos tempos, mas sempre preservando o espírito do “self-made man”. O filme Coringa é uma encarnação desse espírito com sinal trocado. Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é um palhaço com problemas psicológicos que toda semana precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal ao assédio moral de três jovens embriagados e os mata em pleno metrô. Os assassinatos catalisam um movimento popular contra a elite de Gotham City.

Nos Estados Unidos, houve uma grande polêmica sobre o filme, por causa de seu paralelo com o atentado de Aurora, em 2012, quando um sujeito se dizendo o Coringa, usando uma máscara de gás, entrou numa sessão de cinema e disparou a esmo rajadas de uma AR-15, matando 12 pessoas e ferindo outras 70. Famílias das vítimas resolveram protestar, o que obrigou a Warner Bros a divulgar uma nota na qual se defende, dizendo que um de seus papéis é provocar conversas difíceis sobre questões complexas: “Violência com armas de fogo é uma questão crítica na nossa sociedade. Nem o personagem ficcional Coringa, nem o filme são um apoio à violência no mundo real”.

Diante das críticas, o diretor Todd Phillips apelou ao público para que tirasse suas próprias conclusões. “O filme trata da falta de amor, trauma da infância e falta de compaixão no mundo. Acredito que as pessoas conseguem aguentar essa mensagem.” No embalo, disparou contra os críticos: “Para mim, a arte pode ser complicada e, às vezes, a arte é feita para ser complicada. Se você quer arte descomplicada, talvez você deva ter aulas de caligrafia, mas fazer cinema é sempre uma arte complicada”. Pura verdade.

No Brasil, outro filme polêmico — mas sem a mesma força de bilheteria, apesar da carreira internacional bem-sucedida — é Bacurau. Os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles constroem uma estranha fábula social sobre uma cidade que desaparece e é tomada por inimigos arrogantes, que se comportam como uma espécie de novos grileiros capitalistas. Bacurau é uma comunidade romântica, solidária, horizontal e progressista, que some do mapa quando necessário e transforma sua invisibilidade num trunfo contra os inimigos. Explode em violência. Ao contrário de Coringa, a reação é coletiva.

Self-made man
Trata-se de uma evidente metáfora sobre a realidade brasileira, na qual a violência explode na fronteira entre capitalismo formal e informal, com ou sem mediação do Estado. Para o crítico Eduardo Viveiro de Castro, retrata a vida dos “involuntários da pátria”, que nunca foram incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado e, a qualquer momento, podem se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia.

É inevitável o paralelo de Bacurau com o anti-imperialismo da esquerda tradicional, embora seu valor estético esteja acima disso. No El País, Rodrigo Nunes invoca a necropolítica para contextualizara o filme num mundo de concentração de renda astronômica, degradação ambiental crescente, recursos cada vez mais escassos e aumento das populações excedentes: desempregados estruturais, refugiados climáticos, população carcerária.

Vivemos um momento em que combinação de ultraliberalismo e culto da violência viraram narrativas de governo. Entretanto, o preceito de que para se construir algo é preciso destruir o sistema preexistente é perigoso. Essa ideia combina tanto com o ultraliberalismo de direita quanto com o radicalismo revolucionário de ultraesquerda. A incitação à violência individual ou coletiva, quando deixa de ser uma alegoria para inspirar a ação, sempre acaba em tragédia.

Voltemos ao “self-made man”. É uma frase cunhada em 2 de fevereiro de 1832 por Henry Clay no Senado dos Estados Unidos, para descrever indivíduos cujo sucesso residia nos próprios indivíduos, não em condições externas. Benjamin Franklin resumiu o conceito: “Quem tem caráter trabalha, trabalha e trabalha, vence”. O problema é que essa receita já não funciona a contento nem nos Estados Unidos. O impacto da revolução tecnológica na economia mundial mudou a natureza do trabalho e da produção, aprofundou as desigualdades e a concentração da renda. É emblemático o caso do Chile, o país mais globalizado da América do Sul, cujos indicadores são muito melhores do que os do Brasil. Ninguém tem solução pronta para enfrentar a situação. Coringa e Bacurau são alegorias que não devem se reproduzir na vida real, mas nos levam a repensar a economia e a política

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