segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Mario Vargas Llosa* - Esperança no Peru

- O Estado de S.Paulo

Dissolução do Congresso é um passo à frente da democracia peruana

Fez muito bem o presidente do Peru, Martín Vizcarra, em dissolver o Congresso e convocar novas eleições para 26 de janeiro, data que acaba de ser confirmada pelo Tribunal Eleitoral. E bem fizeram as Forças Armadas e a polícia reconhecendo a autoridade do chefe de Estado. Não é frequente na história do Peru que as forças militares apoiem um governo constitucional como o que Vizcarra preside. O “normal” é contribuírem para derrubá-lo.

A decisão de fechar o Congresso foi rigorosamente constitucional, como demonstraram vários juristas eminentes e como explicou ao grande público, com sua lucidez característica, uma das melhores e mais corajosas jornalistas do Peru: Rosa María Palacios. A Constituição autoriza o chefe de Estado a fechar o Congresso se este negar duas vezes um voto de confiança, e obriga o presidente a convocar imediatamente eleições para substituir o Parlamento destituído.

Ambas as exigências foram cumpridas. Não se trata de um golpe de Estado, como quer fazer crer a aliança pró-fujimorista, que tinha maioria simples no Congresso e o havia transformado em um circo grotesco de foragidos e semianalfabetos, com poucas (e respeitáveis) exceções. Por isso, centenas de milhares de peruanos saíram às ruas, em todas as cidades importantes do país, aplaudindo Vizcarra e comemorando a medida tomada em nome da liberdade e da legalidade das quais a maioria parlamentar de apristas e fujimoristas debochava.

Como sempre, por baixo e por trás das discussões legais que sustentam as instituições de uma democracia, existem interesses pessoais, muitas vezes, ignóbeis, que costumam prevalecer. Para isso, existem a liberdade de expressão e o direito de crítica, que, bem exercidos, fazem os esclarecimentos e as denúncias necessários, estabelecendo as prioridades e tirando das trevas a verdade e a liberdade nas quais seus inimigos quiseram escondê-las.

Nesse caso, sem a menor dúvida, ambos os valores estão representados pela decisão de Vizcarra. Os verdadeiros inimigos da verdade e da liberdade são aqueles que até agora emporcalharam até extremos inconcebíveis o Congresso da república, convertendo-o num instrumento da vingança de Keiko Fujimori contra Pedro Pablo Kuczynski, que a derrotou nas urnas em eleições presidenciais que ela acreditava ganhas - assim diziam as pesquisas.

Keiko, então, por meio do Congresso, se dedicou a derrubar ministros e impedir Kuczynski de governar. De sua parte, Kuczynski, que muitos acreditavam ser o presidente mais bem preparado da história do Peru (acabou sendo um dos piores), tentou aplacar o tigre jogando-lhe cordeiros (ou seja, indultando o ex-presidente Alberto Fujimori da condenação a 25 anos de prisão por assassinato e roubo). Com isso, Kuczynski cometeu haraquiri político e teve de finalmente renunciar. Está agora em prisão domiciliar e sob investigação do Poder Judiciário, acusado de muitos malfeitos.

Provavelmente, nada do que lhe aconteceu teria chegado às proporções alcançadas se, no meio, não houvesse surgido a famosa Lava Jato no Brasil, na qual a Odebrecht e as “delações premiadas” - autoconfissões de ilícitos em troca de sentenças reduzidas ou simbólicas - revelaram que no Peru vários presidentes, ministros e parlamentares foram comprados pela célebre empresa (e também por outras) para favorecê-la com obras públicas e prebendas.

Isso desequilibrou principalmente apristas e fujimoristas, implicados na sujeira. Seu pânico ficou ainda maior quando, a exemplo do que ocorria no Brasil, surgiu no Judiciário peruano um grupo de promotores honestos e valentes empenhados em aproveitar as “delações premiadas” para trazer à luz a corrupção e punir os culpados.

Essa é a razão profunda por trás do arbítrio e das ilegalidades cometidos pela maioria parlamentar simples de apristas e fujimoristas que obrigou Vizcarra a fechar o Congresso e convocar eleições para substituí-lo. Tomara que os peruanos votem em 26 de janeiro melhor que nas eleições anteriores e não entreguem de novo o Peru a um Parlamento tão medíocre e obtuso quanto o recém-desaparecido.

Contudo, as próprias condições dessas eleições não favorecem o surgimento de muitos candidatos de peso. O tempo de mandato de que disporão será muito pequeno - uns 16 meses - e, como não haverá reeleição, segundo as novas regras eleitorais, os incentivos para os novos congressistas não são muito estimulantes.

Em todo caso, trata-se de um passo à frente na consolidação da democracia no Peru. Muitos peruanos, diante do espetáculo vergonhoso desse Parlamento, que parecia dedicado exclusivamente a impedir que as instituições funcionassem e a defender a corrupção e seus líderes desonestos, haviam se desencantado com a legalidade. Foi para isso que serviram as eleições livres?, perguntavam-se. Agora, sabem que, por mais erros que sejam cometidos em uma democracia, numa sociedade livre se pode trazer ao sol que anda mal, e essa é a grande superioridade das sociedades abertas sobre as ditaduras.

Quero também destacar o espírito cívico que levou tantos peruanos a renovar nas ruas sua convicção de que a liberdade é sempre a melhor opção. Uma das coisas boas que existem no Peru, apesar do Congresso, é a liberdade de expressão. O jornalismo funcionou no país em todos esses anos expressando a grande variedade política peruana, e muitas das críticas dessa imprensa foram certeiras e impediram que, na desordem existente, a legalidade morresse. Mas um país não funciona apenas com a democracia. É imprescindível que haja trabalho, que os cidadãos sintam que existe igualdade de oportunidades, que todos possam progredir se esforçarem-se, que existe uma ordem legal à qual podem recorrer as vítimas de injustiças e maus-tratos.

Curiosamente, nesses anos de desordem política, o país foi um dos poucos da América Latina que cresceram economicamente. A classe média se ampliou e, apesar das catástrofes naturais, o Peru avança na criação de riqueza e oportunidades. Existe apenas uma mancha nesse panorama: a ideia de que toda mineração é negativa e é preciso combatê-la para que não destrua o meio ambiente.

É uma ideia absurda, mas se estendeu além dos demagogos de extrema esquerda, que a promovem quando a mineração legal cai e a ilegal cresce - esta sim uma ameaça gravíssima à saúde ecológica de um país. Tomara que, libertada desse Congresso repelente e das desordens que incentivava, a democracia peruana comece também a funcionar dentro de uma legalidade e liberdade dignas do nome. / Tradução de Roberto Muniz

* Mario Vargas Llosa é prêmio Nobel de Literatura

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