sábado, 5 de outubro de 2019

Miguel Reale Júnior* - Como ousa?

- O Estado de S.Paulo

Risco de a Amazônia ter apenas vegetação de cerrado é iminente, e com secas no Sudeste

A fuga da realidade no discurso de Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU causou apreensão. Como o chefe de Estado brasileiro é capaz de produzir, perante representantes de 192 países, um pot-pourri cujos assuntos desconexos têm um elemento comum: a fantasia?

Por sua fala, vive-se uma cruzada em defesa dos cristãos contra os invasores de almas para sequestrar Deus e destruir a família, carregados de ideologias. Além da convocação para a guerra santa, o presidente disse sobre a Amazônia: “Ela não está? sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”.

Não pretendo alistar-me no exército de Bolsoleone na luta contra os imaginários destruidores dos valores ocidentais cristãos, mas aceito o desafio de saber o que acontece na Amazônia. Os relatos de órgãos oficiais e de ONGs, há décadas monitorando a região, preocupam.

Já em 1981 o geógrafo Antonio Giacomini Ribeiro (Acta Amaz. vol.11 n.º 2 Manaus Apr./Ju, www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid) observava que o envio de umidade para a atmosfera decorria principalmente da evapotranspiração, antes da chuva, por intensa atividade de fotossíntese e na chuva antes de a água atingir o solo. E alertava o geógrafo que a criação das nuvens tipo “u cumulus esfarrapadus”, propícias para chuvas, ocorre na floresta densa e nem sequer se dá em áreas de campo e desmatamentos.


Esse fato é importante, pois se constatou, ao longo do tempo, que a Amazônia produz metade de suas próprias chuvas, formando um ciclo hidrológico fechado, cabendo a pergunta de Elton Alisson, da Fapesp: qual seria o nível de desmatamento a partir do qual o ciclo hidrológico amazônico se degradaria (agencia.fapesp.br/print/desmatamento-na-amazonia-esta-prestes-a-atingir-limite-irreversivel)?

Respondem a essa pergunta os renomados professores Thomas Lovejoy e Carlos Nobre, na revista Science Advance(http://advances.sciencemag.org/content/4/2/eaat234) e no site de notícias Virtù. Explicam que a Floresta Amazônica depende do ciclo hidrológico que ela mesma produz, havendo dessarte um nível de desmatamento além do qual esse ciclo perde força a ponto de não mais produzir a chuva necessária para a vida dos ecossistemas da floresta tropical.

Lovejoy, então, esclarece que ele e Carlos Nobre, diante de circunstâncias naturais e de intervenção humana, reavaliaram para baixo a porcentagem de desmatamento a partir da qual o ecossistema amazônico passaria do ponto de não retorno, sendo o tipping point entre 20% e 25%. E o pior: “O ponto de não retorno está sendo atingido. Esta situação uma vez instalada não pode mais ser revertida. Uma vez quebrado o ciclo hidrológico, o ecossistema amazônico entra em colapso e não mais pode ser recuperado por medidas de preservação”, havendo o perigo iminente de a Amazônia vir a ter apenas vegetação típica do cerrado e, por ricochete, causando seca no Sudeste.

Com a participação de cientistas brasileiros e estrangeiros, coordenado pelo climatologista José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden), do Ministério da Ciência e Tecnologia, pesquisa sobre o clima na Amazônia e o que pode acontecer pelo desmatamento em grande escala (Frontiers in Earth Science, com o título Changes in Climate and Land Use Over the Amazon Region) concluiu: “Os efeitos combinados da seca e do desmatamento, juntamente com o fogo, podem ampliar os impactos e causar o colapso do ecossistema da floresta tropical” (www.cemaden.gov.br/impactos-na-amazonia).

Entre 1o de janeiro e 29 de agosto de 2019 o Inpe detectou 45.256 focos de calor no bioma Amazônia, o maior já registrado desde 2010. Esse aumento expressivo de focos, comparado a anos anteriores, se verificou em praticamente todas as categorias fundiárias; e apesar da proteção ambiental as unidades de conservação em 2019 mostraram aumento surpreendente, com o dobro dos focos registrados em relação à média dos últimos oito anos, com concentração em determinadas unidades, como a Floresta Nacional do Jamanxim.

Conforme noticia a WWF Brasil (www.wwf.org.br/?72843/amazonia-um-em-tres-queimadas-tem-relacao-com-desmatamento), na Amazônia 31% dos focos de queimadas registrados até agosto deste ano localizavam-se em áreas que eram floresta até julho de 2018, conclusão essa fruto da análise feita sobre focos de queimadas no bioma, com base em séries históricas de imagens de satélite e em dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Outro dado trazido pela WWF Brasil é significativo: a área com alertas de desmatamento em agosto foi de 1.394 km2, um valor 120% maior que o do mesmo mês em 2018. Somente nos oito primeiros meses de 2019 a área total com alertas de desmatamento foi de 6 mil km2, 62% mais do que o observado no mesmo período em 2018.

Conforme matéria do site G1 (1.globo.com/natureza/noticia/2019/08/21/aumento-das-queimadas-no-brasil-veja-12-perguntas-e-respostas-sobre-o-tema.ghtml), Ane Alencar, uma das maiores especialistas em incêndios na Floresta Amazônia, diretora do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, diz: as queimadas aumentaram por causa do desmatamento, “é uma relação direta”, pois, quando se desmata uma área para pastagem ou agricultura, cabe se livrar daquela biomassa. Essa ligação entre desmatamento e queimada é acentuada em outra entrevista, disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/forum/o-governo-nao-pode-espalhar-o-fogo-na-amazonia/.

Em setembro, com atuação do Exército, reduziu-se um pouco a queimada, mas o desmate, ação ilegal que antecede o fogo, persiste elevado.

Estes dados impõem recorrer à expressão de Greta Thunberg: como ousa, presidente?

*Advogado, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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