- O Globo
Bolsonaro não tem adversários: tem inimigos, e seus aliados devem se comportar como súditos, sob pena de serem vistos como traidores
‘Pode me levar até a outra margem?”, perguntou o escorpião. “Não, você vai me picar, e eu vou me afogar”, respondeu a rã. “De jeito nenhum, se eu te picar, morro também”. A rã aceitou o argumento, e carregou o escorpião, que, no meio do rio, a picou. “Por que você fez isso? vamos morrer os dois!”, gritou a rã. “Não pude evitar, é a minha natureza”, respondeu o escorpião enquanto ambos afundavam.
Nos últimos meses, Bolsonaro brigou com jornalistas, políticos, intelectuais, cientistas, professores, artistas, ambientalistas, mulheres, homossexuais, transexuais, negros, militares, policiais, auditores, ministros, secretários, líderes estrangeiros. O confronto é sua natureza: ele não tem adversários, tem inimigos, e seus aliados devem se comportar como súditos, sob pena de serem vistos como traidores e tratados como inimigos.
O inimigo da vez é o ex-aliado Luciano Bivar. Depois de meses de disputa com o presidente do PSL pelo controle da verba do partido, Bolsonaro declarou que Bivar está “queimado” e recomendou que se esquecesse o PSL. Quis sair do partido, mas percebeu que teria que deixar o dinheiro para trás, e recuou: “foi uma briga de marido e mulher” (não disse quem é o marido e quem é a mulher) — as analogias erótico-conjugais do presidente são interessantes: a relação com Paulo Guedes é um “casamento hétero”; o atrito com Rodrigo Maia foi uma briga de namorados; o encontro com Augusto Aras foi “amor à primeira vista”; Trump ganhou um “I love you”.
Bolsonaro passou a exigir que o partido publique suas contas, diz que a falta de transparência sobre o laranjal do PSL é motivo para que seus apoiadores abandonem o partido sem perder os mandatos (e o dinheiro) — mas não vê no laranjal motivo para demitir seu ministro do Turismo, já até denunciado pelo Ministério Público. Bivar retaliou contratando auditoria para examinar a campanha de Bolsonaro. Coincidência ou não, a Polícia Federal cumpriu mandado de busca e apreensão contra Bivar. Daí para a frente, foi ladeira abaixo.
O PSL obstruiu uma Medida Provisória. Bolsonaro foi gravado em uma conversa que sugere que ofereceu cargos e verbas para eleger seu filho líder do PSL. Bivar aumentou sua representação no diretório nacional, suspendeu cinco deputados, tenta cassar outro, e destituiu os que estavam nos comandos regionais do partido (incluindo Flávio e Eduardo). O líder do PSL foi gravado por um bolsonarista chamando o presidente de “vagabundo” e “essa porra”, e afirmando ter uma gravação capaz de “implodi-lo”. Bolsonaro passou pela humilhação de não conseguir eleger Eduardo líder do partido. Uma derrota acachapante.
Na manhã de ontem, entretanto, o PSL revogou a suspensão dos cinco deputados, e o governo usou suas assinaturas para fazer de Eduardo líder. Deputados bivaristas denunciaram que o governo traiu o acordo de paz que previa manter o líder Delegado Waldir em troca da revogação da suspensão dos deputados, entraram com pedido para reconduzir Waldir e anunciaram que serão suspensos não apenas os cinco deputados originais, mas outros mais. A guerra se acirrou.
A única maneira de vencer um divórcio litigioso é parar de brigar, mas a “natureza do escorpião” sugere que a guerra vai continuar. O espírito de confrontação do presidente pode vir a ser o que Aristóteles chamou de harmatia, a “falha trágica”: o traço de caráter que leva o herói à destruição. Falta grandeza a Bolsonaro para ser considerado um herói trágico: sua conduta é vulgar, sua motivação (o dinheiro, a reeleição) é mesquinha. Mesmo assim, sua “falha burlesca”, ou tragicômica, pode ser sua perdição. “Ao cercar o inimigo, deixe-lhe uma saída, ou ele lutará até a morte”, escreveu Sun Tzu em “A Arte da Guerra” (em 2005, em circunstância distinta, Roberto Jefferson acreditou que não tinha saída, e o resultado é conhecido).
Dada a estatura da personagem, o enredo não é digno de Sófocles, mas o lendário filósofo do futebol Neném Prancha, se analisasse a situação em que Bolsonaro está, lhe daria um conselho:
“Capitão, arrecua os arfes para evitar a catastre.”
Resta saber se o presidente conseguirá contrariar sua natureza e aceitar o conselho.
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