sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Sergio Hage Fialho* - Educação, mercadoria, autonomia e regulação

Na balbúrdia dos embates políticos e ideológicos atuais, que não raro atraem a mídia transfigurada em ator político e as redes sociais como mariposas inocentes, é prudente dedicar um olhar para o andar abaixo dessa “espuma”, para considerar processos reestruturantes que venham ocorrendo, de modo mais ou menos silencioso, em politicas públicas de elevado impacto social.

Na educação, para além dos ataques atuais à autonomia e à sobrevivência das universidades públicas, é necessário prestar atenção ao processo de expansão da educação à distância (EAD) no ensino de formação (fundamental, médio, superior-graduação e stricto-sensu), especialmente aos esforços – e realizações - do governo atual para abrir o mercado da EAD no ensino médio e fundamental.

Se observarmos, pelos números do INEP, que a EAD vem crescendo, no ensino superior, mundial e brasileiro, de forma avassaladora – em especial na área privada – evidencia-se que a intensificação da tecnologia na educação é um processo irreversível e abrangente, que aponta para uma reestruturação profunda, de base digital, nas práticas educacionais.

A experiência massiva de educação a distância em cursos de formação que temos no Brasil ocorre no ensino superior e, à vista dos questionamentos atuais, essa experiência deveria estar sendo objeto de profunda reflexão, antes de se pretender expandir a EAD nos ensino médio e fundamental. Ao invés de avaliar o que está acontecendo, o governo “pula” a análise da realidade e parece pretender a intensificação bruta da política atual, do que é expressão o “balão de ensaio” da criação da Universidade Federal Digital.

A EAD no ensino superior no Brasil apresenta, objetivamente, dois modos regulatórios: a regulação geral (leis, decretos e normas), que abrange todas as instituições de ensino superior (públicas e privadas), e aquilo que conceituamos como “modo regulatório” da Universidade Aberta do Brasil-UAB (programa MEC/CAPES de financiamento de cursos EAD), que condiciona – às vezes em contradição com a própria regulação geral – a incorporação da tecnologia nas instituições públicas de ensino superior. Os dois mecanismos regulatórios apresentam problemas estruturais a requerer urgente atenção.

 De um lado, a regulação geral vigente é altamente permissiva, ao não estabelecer requisitos e parâmetros mínimos obrigatórios que assegurem, nos cursos EAD de graduação, interatividade (disponibilidade efetiva de professores-mediadores para suporte interativo ao processo digital de aprendizagem) e flexibilidade (possibilidade de adaptação de conteúdos e atividades digitais ao perfil dos alunos e às especificidades dos contextos regionais).

 Considerada apenas no plano tecnológico das plataformas virtuais, a EAD admite modelos de uso com variados graus (até nenhum grau) de interatividade, e com forte (ou total) rigidez na execução dos processos de ensino-aprendizagem. Mas a EAD é antes de tudo educação e, como tal, em cursos de formação, requer de modo absoluto que os princípios pedagógicos da interação e da personalização (flexibilidade) sejam minimamente garantidos.

Não estamos mais diante de um professor presencial, onde essas questões concentram-se na pessoa do professor, portanto dependentes de sua própria – e potencialmente mutável - compreensão pedagógica; estamos diante de um sistema digital, estratégico para a organização que o desenvolve, que pode ou não atender, de modo permanente e controlado, a condições primárias objetivas que viabilizarão ou não a interatividade e a flexibilidade.

Se essas condições não são satisfeitas, não será possível, mesmo a um docente pedagogicamente consciente, assegurar interatividade e flexibilidade. Nesses dois parâmetros, várias pesquisas atuais constatam sérias lacunas regulatórias no Brasil, que possibilitam a oferta de cursos de graduação no Brasil para turmas superiores a 300 e mesmo a 600 alunos, e dotados de projetos pedagógicos rígidos, que impedem qualquer adaptação significativa de conteúdos e atividades, na execução dos cursos, ao perfil dos alunos e às peculiaridades do contexto.

É evidente que, nesse contexto, o “produto” educacional pouco se distingue de qualquer mercadoria industrial. A análise da regulação geral da EAD no Brasil demonstra que essa permissividade pedagógica vem se ampliando, ao mesmo tempo em que ocorre um constante aumento da autonomia das instituições privadas de ensino superior.

Ocorre que não é prudente avançar nessa dimensão da autonomia, se essa autonomia se exerce em um ambiente desregulado quanto à qualidade dos processos educacionais: teríamos campo ainda mais aberto para que a educação fosse tratada como uma mercadoria, ou como mero item de custo, resultando em cursos altamente padronizados, para turmas massivas e com baixa ou nula interação pedagógica. Antes que os radicalismos se agitem, observo que uma elevação firme e prudente dos requisitos pedagógicos mínimos dos cursos não prejudicaria qualquer empresa educacional individualmente, mas obrigaria todos no mercado a concorrer em nível mais alto de qualidade. E, acrescentemos, incentivaria todos, em especial o setor privado, a investir em processos e tecnologias que assegurem economias de custos operacionais sem prejudicar a qualidade pedagógica.

Certamente, a substantiva redução dos custos operacionais da EAD em relação ao ensino presencial, de que já se beneficiam amplamente as empresas educacionais, permite atender critérios desse tipo sem prejudicar os negócios. Por outro lado, em relação à UAB, uma profunda revisão do seu conceito é requerida. A experiência da UAB demonstra que a centralização decisória no MEC/CAPES e a padronização de conteúdos e procedimentos não é o caminho para fortalecer as instituições públicas de ensino superior – IPES; ao contrário, a centralização/padronização manteve durante anos as IPES carentes de iniciativas próprias, cedendo sistematicamente em sua autonomia acadêmica e administrativa, devido às facilidades do financiamento extra-orçamentário das bolsas-UAB, de concessão sempre condicionada à adesão a requisitos associados.

 Existe uma longa tradição a ser respeitada que se exprime nos valores de qualidade pedagógica e compromisso social, que estão na raiz das IPES; é claro que é uma tradição que há muito tarda ser renovada, tanto na sua gestão interna quanto nos modos de interagir com o processo socioeconômico e cultural do seu território.

Mas, ainda que com todas suas questões a resolver, as IPES reúnem plenas condições institucionais de organizar, com autonomia pedagógica e administrativa, suas iniciativas em EAD; além disso, podem inverter a lógica atual da oferta centralizada de cursos estabelecida pela UAB, propondo alterações na regulação e auxiliando estados e munícipios a refletirem em conjunto sobre os problemas de educação da sua região, viabilizando a cooperação entre as universidades públicas para o intercâmbio ativo de experiências e acervos e para a racionalização da oferta de cursos e vagas.

O recente anúncio do MEC, ainda sem detalhes, de que pretende implementar a “Universidade Federal Digital”, e o “Instituto Técnico Federal Digital”, em plataforma de EAD nacional, desperta, nesse contexto, enormes preocupações. As recentes escaramuças entre o MEC e as IFES permitem imaginar que se pretenda uma ação paralela do governo federal, tentando um óbvio drible administrativo às prerrogativas constitucionais de autonomia das universidades federais no sistema de ensino superior.

Finalmente, seja na área privada como na pública, os estudos existentes apontam a precarização do trabalho dos chamados tutores, secundarizando sistematicamente o seu papel pedagógico central em sistemas EAD, onde são eles os professores responsáveis pelas funções docentes de interagir, orientar e acompanhar diretamente a atividade e as necessidades dos alunos.

A regulação geral e a UAB, de diferentes formas e sob nenhum argumento, simplesmente não reconhecem o estatuto de professor para os tutores e, impõem a precarização do seu trabalho: na área privada pela alocação, em vários casos e de forma crescente, a cada tutor, de centenas de alunos, e no modo regulatório da UAB (incidente sobre a área pública), pela baixa e instável remuneração por bolsas: é o menor valor entre todas as bolsas disponibilizadas pela UAB para os demais atores nos cursos EAD, e, sendo bolsas associadas a cada curso, sujeitas a descontinuidades financeiras, como estamos assistindo nos cortes e contingenciamentos.

 Povoada de problemas graves, soa como perigoso delírio a expansão das atuais perspectivas da regulação geral e da experiência da UAB. É essencial a atenção e a ação dos educadores e gestores da educação superior do país, em articulação com o Congresso Nacional, para estabelecer um direcionamento que, aberto à inevitável expansão da mediação tecnológica, assegure a prioridade pedagógica nos modelos de uso da EAD, e preserve a autonomia das instituições públicas de ensino superior


*Prof. Sergio Hage Fialho, Dr.
Mestrado em Administração
Mestrado e Doutorado em Desenvolvimento Regional e Urbano
Mestrado Profissional em Direito, Governança e Políticas Públicas
Líder do Grupo de Pesquisa em Educação, Aprendizagem Organizacional e Inovação

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