sábado, 2 de novembro de 2019

Daniel Aarão Reis - Nós somos o povo

- O Globo

Muro caiu e foi derrubado. E se abriu o horizonte da desejada liberdade,sempre instável, perigosa e incerta

Há 30 anos, no dia 9 de novembro, caiu o Muro de Berlim. Ou foi derrubado?

Para a boa resposta, seria aconselhável considerar as condições de sua construção, em agosto de 1961. Não era só um paredão, mas um complexo repressivo, com casamatas, torres, cercas eletrificadas e fossos, e soldados, policiais e cachorros encarregados de reprimir fugas da República Democrática Alemã (RDA) para a República Federal Alemã (RFA).

Como aquilo pudera ter existido?

Houve a proteção da União Soviética. Sem Moscou, ele não teria sido construído. Além disso, consagrou-se um tipo de socialismo, imposto pela força: economia estatizada, ditadura política, partido único e sociedade policiada. Um terceiro ingrediente foi decisivo: a passividade dos EUA e aliados europeus, que se limitaram a denúncias protocolares.

Uma vez construído, o Muro bloqueava o trânsito. Em sentido metafórico, assinalava limites. A doutrina Brejnev da “soberania limitada”, formulada sete anos depois, conferiu-lhe um caráter estratégico. Os regimes socialistas na Europa poderiam fazer o que desejassem, menos se afastar do socialismo. Moscou diria o que era e o que não era socialismo. O esmagamento das insurreições e movimentos populares em Berlim (1953), na Hungria (1956), na Polônia (1956, 1968, 1970 e 1976) e na Tchecoslováquia (1968) atestavam a consequência com que tais princípios seriam assumidos.

Assim, aquela construção exprimiu uma correlação de forças e um certo tipo de socialismo, no contexto da Guerra Fria, polarizada entre as duas superpotências que se disputavam a hegemonia mundial.

Para ser derrubado ou cair, muitos tijolos — outros muros — precisavam vir abaixo.

Os primeiros tijolos caíram na Polônia. Grandes lutas operárias impuseram o reconhecimento de uma organização autônoma em relação ao Estado, o Solidariedade, com cerca de dez milhões de trabalhadores, em novembro de 1981. Um golpe militar, no ano seguinte, tentou inverter a onda. Em vão. Muitos ziguezagues depois, negociações resultaram, em setembro de 1989, na criação de um governo chefiado por um católico — Tadeusz Mazowiecki.

Mais tijolos cairiam muito longe daquelas paragens, no Afeganistão, invadido por tropas soviéticas, em dezembro de 1979. Visavam a apoiar um governo aliado. Não deu certo. Uma guerra de guerrilhas infernizou e envenenou a sociedade e o poder soviéticos. Quando houve a retirada, em 1989, Moscou percebeu a inviabilidade de novas aventuras militares.

Bem mais pesados tijolos começaram a cair na União Soviética. O colosso entrara em ebulição a partir de 1985. Duas palavrinhas russas dariam a volta ao mundo: perestroika (reestruturação) e glasnost (transparência). Enquanto a transparência evidenciava os males do socialismo, a reestruturação resfolegava. Diziam os soviéticos: “abrimos a geladeira, e ali não encontramos a perestroika”. As reformas desandaram, quebrando o monolitismo das instituições políticas, questionando o poder dissuasivo da URSS. E veio a promessa explícita de que as sociedades da Europa central passariam a ter liberdade de escolher seus caminhos.

Outros tijolos desabaram na Hungria com o estabelecimento do pluripartidarismo, em novembro de 1988, e o desmantelamento, em maio de 1989, dos obstáculos que impediam a livre passagem para a Áustria. Uma brecha, por onde entraram milhares de alemães. Centenas se refugiaram nas embaixadas da RFA em Varsóvia e em Praga. Uma debandada. Os tijolos agora caíam na própria RDA. O Partido Comunista tentou ainda segurá-los, falando em nome do povo. Mas as gentes nas ruas gritavam: “O povo somos nós”. O governo e a polícia desmoronaram. Na última hora, era a noite de 9 de novembro, o ministro do Interior anunciou que se autorizavam as viagens. Antes que ele acabasse o discurso, já o povo tomava de assalto o muro e o atravessava por cima e por todos os lados, derrubando-o, em apoteose de alegria e júbilo.

De sorte que o Muro caiu e foi derrubado. E se abriu o horizonte da desejada liberdade, sempre instável, perigosa e incerta.

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