segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Demétrio Magnoli - A sorte dos presidentes

- O Globo

Morales dissolveu a independência do Judiciário e do tribunal eleitoral

Evo Morales caiu — e fugiu. Nicolás Maduro resiste, contrariando tantos prognósticos. Sebastián Piñera, ainda em palácio, enfrenta a tempestade. A sorte dos presidentes depende menos da têmpera de cada um e mais da natureza dos sistemas políticos nacionais.

Na Bolívia, o golpe foi um contragolpe. Seguindo o roteiro do populismo caudilhista, Morales violou as regras do jogo democrático para se eternizar no poder. Em busca de um quarto mandato, rasgou a Constituição e, com o auxílio de uma corte suprema curvada à vontade do caudilho, ignorou o resultado do plebiscito popular que lhe negara a terceira reeleição. O golpe em câmera lenta conduzido por Morales concluiu-se com as irregularidades constatadas no primeiro turno, que provocaram a onda de manifestações oposicionistas.

Um ciclo de protestos populares, a chamada “guerra do gás”, forçou a queda do presidente Carlos Mesa, em 2005. Morales dirigiu aquele movimento, que abriu caminho para seu triunfo eleitoral original. Mesa preferiu renunciar a chamar os militares para reprimir o povo, como fizera o antecessor, Sánchez de Lozada. Agora, Morales caiu vítima de eventos similares, com a diferença de que investiu no recurso à repressão. Mas, e aí está a distinção fundamental, um pronunciamento militar funcionou como gota d’água para a renúncia. Contragolpe, portanto, o que não deixa de ser um golpe.

Na sua marcha autoritária, Morales dissolveu a independência do Judiciário e do tribunal eleitoral. Contudo, apesar de ensaios nessa direção, não chegou a consolidar seu controle sobre as Forças Armadas. O chavismo venezuelano, pelo contrário, montou um “regime cívico-militar”, convertendo a cúpula das Forças Armadas em sócia integral do poder ditatorial. A fidelidade dos chefes militares, testada em circunstâncias extremas, salvou o governo de Maduro — e lançou o país num transe caótico.

A democracia cumpre, entre outras, a função crucial de promover transições pacíficas de governo. Nela, em geral, presidentes só têm seus mandatos abreviados por meio de impeachment, um instrumento legal de última instância. A queda de Mesa, em 2005, refletiu a fraqueza estrutural da democracia boliviana. A democracia chilena é mais forte, o que explica a resiliência de Piñera.

A principal exceção à regra da transição democrática registra-se nos casos em que, desafiados por manifestações populares, os governantes desatam uma repressão violenta. Aí, presidentes correm o risco de cair, como ocorreu com Sánchez de Lozada, em 2003 —ou, antes, na Argentina, com Fernado de la Rúa, em 2001.

No início, Piñera enveredou por esse caminho, não distinguindo a massa de manifestantes pacíficos das franjas de grupos extremistas que se engajam em incontáveis atos de vandalismo. O presidente, além disso, convocou os militares para conter os protestos, rompendo um tabu derivado dos traumas da ditadura de Pinochet. Depois, acuado, desculpou-se perante a nação e iniciou um diálogo político destinado a refazer o contrato social. Talvez, graças à solidez das instituições democráticas chilenas, escape do destino que ceifou De la Rúa e Sánchez de Lozada.

Um dia, Maduro cairá — e, provavelmente, seus entusiastas na esquerda latino-americano descreverão o processo como um golpe. Se Piñera vier a renunciar, Jair Bolsonaro gritará “golpe!”. Facções opostas do espectro ideológico disputam a caracterização da renúncia forçada de Morales. Tudo isso é normal no campo das narrativas políticas. Mas, apesar de tudo, das histórias divergentes dos três presidentes, extrai-se uma lição de validade universal.

A lição é que o termo “golpe” só se aplica a sistemas democráticos. O golpe é a interrupção da regra do jogo sucessório. Fora da democracia, em ditaduras abertas ou em regimes semiautoritários, o jogo sucessório não obedece a regras claras de aceitação geral. Aí, surgem o “golpe dentro do golpe”, o “contragolpe”, a “revolução popular”. Morales não tem do que reclamar. Já os bolivianos merecem a reconstrução da democracia, não um regime autoritário apoiado no pretexto da retribuição.

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