terça-feira, 12 de novembro de 2019

Luiz Carlos Azedo - “El cambio”

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A crise ética continua sendo um vetor decisivo do processo político brasileiro, uma agenda que permanece em pauta no Congresso, com muita audiência nas redes sociais”

A palavra cambio em espanhol é uma espécie de abracadabra para a esquerda latino-americana; em bom português, significa mudança. É mais ou menos o que está em curso na Argentina, onde os peronistas estão de volta ao poder, com a vitória de Alberto Fernández, e no Chile, com as agruras do liberal Sebastián Piñera. Povo na rua é música aos ouvidos de qualquer militante de esquerda, mas acontece que, às vezes, o povo também vai para a rua contra a esquerda. Foi o que aconteceu na Venezuela, com Nicolás Maduro, e agora na Bolívia. A diferença é que, na Venezuela, as Forças Armadas são bolivarianas; na Bolívia, deu-se justamente o contrário, os militares forçaram a renúncia de Evo Morales, que havia fraudado as eleições para garantir um quarto mandato, duplamente ilegítimo, porque um plebiscito havia rejeitado a nova reeleição.

Um dia, toda a verdade sobre os bastidores da renúncia de Morales, que pediu asilo ao México, será revelada. Na mais tardia das hipóteses, isso acontecerá quando as gravações e arquivos da Casa Branca forem revelados. Aí saberemos qual a verdadeira participação do presidente Donald Trump no “cambio” boliviano e, de carona, a do governo brasileiro, que sempre meteu uma colher nos assuntos da Bolívia. Nesse aspecto, não será surpresa se houve discreta atuação da diplomacia e de militares brasileiros, ao contrário da trapalhada feita logo após a posse de Bolsonaro, na tentativa de derrubada de Maduro, que fracassou. Ainda que tenha sido discreta, certamente não foi com o viés mediador que sempre caracterizou a atuação do Brasil nessas crises, porque a política externa brasileira mudou de eixo. Agora, é todo apoio à direita latino-americana.

Nesse aspecto, cresce a expectativa em relação à reunião dos Brics aqui no Brasil, amanhã e quinta-feira. A política externa de Bolsonaro não tem nada a ver com a dos líderes de Rússia, Vladimir Putin; Índia, Narendra Modi; China, Xi Jinping; e África do Sul, Cyril Ramaposa. A chancelaria russa já adiantou que a questão da Bolívia está na pauta da conversa de Bolsonaro com Putin. “Já houve uma reunião em Osaka. Agora, será uma conversa mais profunda. A agenda será fundamentalmente bilateral e, é claro, questões internacionais e regionais também serão tocadas, levando em conta a situação na Bolívia”, afirmou Yuri Ushakov, assessor presidencial para Assuntos Internacionais. A existência da cúpula dos Brics em parte se deve mais à política externa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cujo eixo era Sul-Sul, do que a de Bolsonaro, de alinhamento absoluto com os Estados Unidos. Houve certa flexibilização a partir da viagem de Bolsonaro à China, mas agora é que vamos ver o ângulo dessa deriva.

Polarização
Inevitável falar de Lula. A libertação do petista mudou o cenário político, pois tirou a esquerda tradicional da defensiva. Lula partiu para cima de Bolsonaro, com críticas duras à política econômica, por causa do desemprego. A reação popular à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que acabou com a execução da pena após condenação em segunda instância, possibilitando a saída de Lula da cadeia, mesmo com manifestações em várias cidades do país, não teve a envergadura que a turma da Lava-Jato esperava. O bate-boca entre Lula e Bolsonaro também foi contido, apesar da agressividade do petista, porque o presidente da República procurou ser cauteloso nas respostas, poupando de críticas o STF. No fundo, é um jogo de comadres. Ambos têm interesse em retroalimentar a polarização. O perigo é ela sair do controle.

A crise ética continua sendo um vetor decisivo do processo político brasileiro, quem quiser que se iluda. É agenda que permanece em pauta no Congresso, com muita audiência nas redes sociais. Outros dois vetores são a agenda dos costumes, polarizada entre os movimentos identitários e setores conservadores de caráter religioso, e a agenda das reformas, que contrapõe liberais e nacional-desenvolvimentistas. Bolsonaro opera as três agendas simultaneamente.

No primeiro vetor, apesar do cristal quebrado por causa do caso Queiroz, que envolve o senador Flávio Bolsonaro (PSL-SP), seu filho, a libertação de Lula resgatou a bandeira da Lava-Jato para o governo, devido à presença do ex-juiz Sérgio Moro no Ministério da Justiça. No segundo, a polarização recrudesceu na área da Cultura, deslocada do Ministério da Cidadania para o do Turismo, sob comando do dramaturgo Ricardo Alvim, desafeto de Fernanda Montenegro, grande dama do teatro, das telenovelas e do cinema.

Ontem, Bolsonaro lançou um programa de combate ao desemprego entre jovens, talvez o ponto mais fraco de seu governo. No fundo, é no terreno econômico que o governo aposta para manter sua hegemonia política, mas, para isso, não basta a retomada da atividade econômica, é preciso gerar emprego e renda e evitar que a questão social volte a ser o vetor determinante do processo político brasileiro. Temos um exército de 28 milhões de pessoas “subutilizadas”, sendo 12,5 milhões no desemprego total, principalmente nas faixas de 18 a 29 anos de idade e acima de 55 anos. Lula mira esse eleitorado.

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