domingo, 10 de novembro de 2019

‘Não temos um Mandela neste país. É preciso lucidez’, diz Boris Fausto

Historiador aponta que o principal desafio é superar a polarização, que vê como inevitável

Naira Trindade | O Globo

BRASÍLIA - O historiador Boris Fausto não está otimista com o cenário político brasileiro que se apresenta após a soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com Lula num clima de revanche e um governo que se apoia na instabilidade política , Fausto acredita que a polarização vai aumentar e ficará mais difícil superá-la. Em entrevista ao GLOBO, O historiador aponta que a saída precisa ser pactuada entre diferentes atores num programa que ataque as desigualdades brasileiras.

• Com Lula solto, a polarização na política aumenta?

A polarização vai acontecer e será inevitável. O que se deve fazer, do ponto de vista da ação, é construir alguns centros com intenções e conteúdo marcadamente social em um país com tantas desigualdades. Se vão ter clarividência para fazer isso, quem é que sabe? Mas acho que isso é inevitável e imprescindível.

• E como construir isso?

É difícil num clima que se criou. De um lado, o Bolsonaro falando que tem um canalha que foi solto, de outro lado o PT partindo para revanche. Nós não temos Mandela neste país. O Mandela é uma exceção. As tendências de polarização são muito fortes e navegar é preciso. É preciso um pouco de lucidez. Até quando vamos continuar nisso? A oposição estava completamente desorganizada e agora tem condições de se mobilizar. O líder reapareceu. Só que o Lula não tem condições, mesmo saindo da cadeia e tendo a militância que tem, de encarnar uma perspectiva democrática, social, que olhe para frente e diga: bom vamos garantir liberdade, e atacar seriamente as questões iníquas que existem neste país, desigualdade social e de gênero, combater o racismo.

• Por que o senhor diz que Lula não tem condições?

Primeiro, ele tem ficha suja, não tem condições legais para se candidatar. Ah, mas o julgamento dele pode ser anulado porque o Supremo vai reconhecer uma suspeição do Moro. Tudo pode acontecer atualmente, mas acho esse cenário excluído. Ele não tem condições de ser candidato, mas ele pode ter um papel atuante nas eleições. Então, é uma situação muito delicada. Uma coisa é certa, né, o Lula é uma figura, entenda, não estou defendendo a figura dele, longe disso, mas não é o homem que possa encarnar uma solução democrática.

• A conjuntura política muda com Lula fora da prisão?

Muda no sentido dos riscos. O fato de que o Lula se lance a uma campanha de acusações e faça romaria política no momento em que é preciso aglutinar forças com mais calma, no horizonte democrático, só vai acelerar a possibilidade de uma faísca que resuma no fechamento do regime democrático. Por outro lado, é uma liderança indiscutível. E como o governo vive da instabilidade, gerando também a instabilidade, é uma situação extremamente difícil. Acho que a maioria da população, nessa hora, pode mostrar que talvez esteja cansada de polarização e comece a trilhar um outro caminho, mas vamos ter um pouco de ceticismo nisso porque não dá para ter muitas ilusões.

• Temos algumas figuras cogitadas no cenário presidencial para 2022, como o governador João Doria e o apresentador Luciano Huck. Eles podem ser encarados como uma terceira via?

Os dois só podem jogar uma cartada. A cartada da moderação. O Huck tem dois trunfos positivos, que é seu sucesso de televisão, de quem conhece o Brasil, rodou pelo Brasil e não pode deixar de ter um lado social. O outro é que tem gente boa acompanhando a candidatura dele. E o Doria só tem um caminho, que é mais retórica do que fato, porque ele andou de mãos dadas com Bolsonaro quando foi preciso. Dos dois, quem sabe o Luciano Huck possa carregar essa bandeira (de terceira via) mas tem tanta coisa para se formar.

• A polarização se arrastará até as eleições de 2022?

Temos praticamente uma ultradireita no poder, isso é visível e extremamente grave. E tem algumas pessoas de extrema esquerda dizendo que estamos numa ditadura. Não estamos numa ditadura. Temos arranhões sérios na ordem democrática, mas longe de estarmos numa ditadura. Ao mesmo tempo é preciso evitar que isso aconteça. Precisamos construir um núcleo que se afaste de todas as utopias absurdas da extrema direita que estão envenenando a vida política do país.

• E quais agendas podem sustentar Bolsonaro, o discurso da anticorrupção e a aprovação de reformas?

Essa é a mesma carta na manga de sempre. Ele está jogando com essa carta. Ele não tem outras. Ele continua acentuando esse jogo, com as agendas anticorrupção, com as reformas para se sustentar. Vai dizer que a Lava-Jato perdeu, que a corrupção ganhou, e isso tem eco na população. E ele pode até reforçar um pouco uma situação de desprestígio claro.

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