quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O que a mídia pensa – Editoriais

Guerra imaginária – Editorial | O Estado de S. Paulo

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena e do Estado de Direito deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas como o AI-5

Foi espantosa a facilidade com que o ministro da Economia, Paulo Guedes, mencionou, na segunda-feira passada, a hipótese de adoção de uma medida de exceção nos moldes do Ato Institucional n.º 5 (AI-5) para conter eventuais manifestações violentas de oposição. Como se fosse algo trivial, o principal ministro do presidente Jair Bolsonaro considerou plausível e até natural que, a título de enfrentar uma “quebradeira” nas ruas, haja o clamor para que o governo emule o regime militar, fechando o Congresso e cassando liberdades individuais, pois foi isso o que aconteceu em dezembro de 1968 com a edição do AI-5, ora evocada.

Ao comentar recente discurso do ex-presidente Lula da Silva, que incitou a militância petista a “seguir o exemplo do povo do Chile, do povo da Bolívia” e “atacar, não apenas se defender”, o ministro Paulo Guedes declarou que “é irresponsável chamar alguém para rua para fazer quebradeira, para dizer que tem que tomar o poder”. Acrescentou que “quem acredita numa democracia espera vencer (as eleições) e ser eleito”, isto é, “não chama ninguém pra quebrar nada na rua”. E continuou: “Ou democracia é só quando o seu lado ganha? Quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua? Que responsabilidade é essa? Não se assustem então se alguém pedir o AI-5. Já não aconteceu uma vez? Ou foi diferente?”.

Que Lula da Silva aposta suas fichas no confronto com o atual governo, parece não haver dúvida. Seu discurso denota claramente essa disposição, que não seria novidade na trajetória belicosa do PT, principalmente quando está na oposição. Tampouco é novidade que junto com a “resistência” petista sempre vêm os baderneiros, que abusam da liberdade de manifestação para causar tumulto e que, quando reprimidos, posam de vítimas da “truculência” do Estado. Nada disso, contudo, justifica que se invoque a hipótese de cancelar direitos políticos e garantias individuais, o que só poderia acontecer em resposta a uma excepcionalíssima situação de rebelião interna – conforme os artigos 136 a 141 da Constituição, que versam sobre estado de defesa e estado de sítio.

Como o ministro Paulo Guedes não foi o primeiro entre os mais próximos do presidente Bolsonaro a falar em reedição do AI-5 – recorde-se a recente declaração do deputado Eduardo Bolsonaro a esse respeito –, preocupa a possibilidade de que tal flerte com a ruptura democrática esteja se disseminando no governo, a ponto de ser publicamente manifestado.

O presidente não quis comentar essas declarações de seu ministro da Economia (sobre outras declarações de Guedes, ver abaixo o editorial ‘Dólar em alta, mais um alerta’), mas é notória sua admiração pelo regime militar – para ele, “o único erro da ditadura foi torturar e não matar”. Logo, a referência ao AI-5 dentro de um governo inspirado por esse tipo de raciocínio não é casual nem inocente. Tanto é assim que o presidente Bolsonaro defende agora que as forças de segurança envolvidas em repressão a protestos tenham licença para matar – chamada de “excludente de ilicitude” para operações de Garantia da Lei e da Ordem. Para tanto, basta classificar a manifestação como “ato terrorista” caso haja algum episódio violento.

Um desavisado que chegasse hoje ao Brasil poderia imaginar, ouvindo esse discurso, que o País está à beira de um conflito civil. Esse estrangeiro estranharia, contudo, o fato de não haver nas ruas nenhum sinal de conflito – apenas o vaivém cotidiano dos cidadãos para cumprir seus compromissos. E diante disso talvez o visitante se perguntasse, com razão, o que pretende um governo que demonstra tanta preocupação com esse confronto imaginário, a tal ponto de parecer mesmo desejá-lo.

Os brasileiros que querem a manutenção da democracia plena, do Estado de Direito e da estabilidade política e social deveriam se fazer a mesma pergunta. Mais do que isso: deveriam expressar seu repúdio inequívoco a qualquer tentativa de banalizar medidas de exceção como o AI-5, especialmente quando a tentativa parte de quem está no poder e que, mais que todos, deve dar o exemplo de respeito às liberdades democráticas gravadas na Constituição que jurou cumprir. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, resumiu bem a questão: “Não dá para usar a expressão ‘AI-5’ como se fosse bom dia ou boa noite”.

Ineptos e autoritários – Editorial | Folha de S. Paulo

Menções governistas ao AI-5 e incentivo a força letal vêm de substrato cesarista

Paranoia, incompetência e autoritarismo se combinam e se reforçam no recente surto de barbaridades oriundas da gestão Jair Bolsonaro.

Um círculo de assessores próximos ao presidente difunde a ideia de que o Brasil estaria ameaçado por uma convulsão social incitada por adversários do governo, que chegaria aqui por algum contágio em relação ao que ocorre no Chile.

A hipótese —sem respaldo neste contexto em que trabalhadores acabam de perder R$ 800 bilhões na Previdência sem alarido— alimenta outro devaneio bolsonarista, de que seria necessário e possível ativar mecanismos cesaristas de defesa contra o perigo imaginário.

“Não se assustem se alguém pedir o AI-5”, disse durante passagem por Washington o ministro Paulo Guedes (Economia). À sua maneira atrapalhada e agressiva, deixou expostos os andaimes da teoria conspiratória que circula no Executivo.

Ali se trata o direito legítimo da oposição de organizar protestos de rua, desde que pacíficos, como “irresponsabilidade” e desejo de “quebrar tudo”. Guedes, além disso, tenta lançar na esquerda minoritária no Congresso a culpa, que é da inépcia parlamentar do ministro e do governo, pelas dificuldades na aprovação de novas reformas.

No dia seguinte, voltou ao tema numa espécie de remendo mal ajambrado às declarações anteriores. “Acho que devemos praticar uma democracia responsável”, declarou, referindo-se mais uma vez a supostas quebradeiras urbanas.

A alusão ao ato que em 1968 inaugurou a fase de violações mais brutais dos direitos humanos na ditadura militar conota o repertório autoritário de que Jair Bolsonaro e seguidores jamais se afastaram —outro exemplo recente foi a sugestão do mandatário de usar a Lei de Segurança Nacional contra Lula.

Ninguém compromissado com o Estado democrático de Direito deveria deixar passar manifestações desse tipo sem o devido repúdio. Foi o que fizeram, de modo contundente, os presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), e do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, entre outras lideranças.

Oportuna também foi a abertura nesta terça (26) de processos no Conselho de Ética contra o deputado federal Eduardo Bolsonaro, primeiro a cogitar em público o recurso ao instituto ditatorial.

Menos tosca, mas igualmente preocupante, tem sido a ofensiva do presidente da República para incentivar o uso da força letal por policiais, militares e cidadãos.

Essas propostas brotam do mesmo substrato de ideias delirantes que vez ou outra expele uma menção ao AI-5 pela garganta dos mais desaforados. São todas filiadas ao arbítrio e por isso não têm guarida no pacto democrático de 1988.

Planalto envia mais um projeto antidemocrático ao Congresso – Editorial | Valor Econômico

O Congresso deve rejeitar mais uma das peças antidemocráticas que o Planalto lhe submete 

Uma boa parte dos problemas do país pode ser resolvido com o uso da força, parece estar dizendo o tempo todo o presidente da República, Jair Bolsonaro. Filhos, a equipe do Planalto e o ministro da Fazenda, Paulo Guedes, estão hoje obcecados pela perspectiva de que movimentos de protesto contra o governo tomem as ruas do país.

O deputado Eduardo Bolsonaro sugeriu a volta do AI-5, que fechou o Congresso e extinguiu as garantias democráticas, algum tempo após afirmar que um cabo e um soldado dariam conta do STF. Pelas declarações de integrantes do governo, protestos deixaram de ser possibilidade para tornarem-se certeza.

Não são devaneios autoritários sem consequências. O presidente anunciou que encaminhou projeto de lei prevendo o excludente de ilicitude - desrespeito à lei com imunidades - para participantes das operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO): Forças Armadas, Polícia Federal, policiais civis e militares e até bombeiros. Bolsonaro insiste em ampliar o conceito para além do já definido no Código Penal e que é mais que suficiente para definir os limites nos quais os agentes da lei devem atuar: estrito cumprimento do dever legal, legítima defesa e estado de necessidade.

Bolsonaro, eterno defensor das armas, quer mais liberdade para que as polícias possam usá-las sem constrangimentos legais. Seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, incluiu o dispositivo em projeto de pacote anticrime enviado ao Congresso, sem sucesso - deputados o retiraram em setembro. Nele, passam a constar do excludente outros motivos: o “escusável medo” e a “violenta emoção”, dois critérios que justificariam qualquer violência policial. Não à toa, o excludente, nesses termos, tornou-se sinônimo de “licença para matar”.

As intenções para permitir que os membros das GLO tenham essa cobertura legal são sinistras. As operações são restritas a casos como “esgotamento das tradicionais forças de segurança” e “graves perturbações da ordem”. A atuação será “episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado”, segundo o artigo 15 da lei complementar 97 (1999). Um exemplo de GLO foi o uso das Forças Armadas para conter a violência e o crime organizado no Rio de Janeiro.

Pelo que dá a entender, para Bolsonaro bastaria sua vontade para que a GLO exista e ela serviria para muita coisa. No projeto de lei que enviará ao Congresso, disse que incluirá a permissão de operações do tipo para reintegração de posse em propriedades rurais. Na segunda-feira, afirmou que o excludente de ilicitude ajudaria os agentes da GLO a acabar com protestos violentos e atos de vandalismo, outras supostas finalidades para o uso do recurso extremo. Uma outra seria a “prática ou iminência da prática de terrorismo”. Pela imprecisão dos termos, pelo terreno movediço das fronteiras, Bolsonaro pretende ter o poder de usar sem limites forças policiais e militares, com direito a atirar, contra manifestações políticas de qualquer natureza. Seu caráter ilegal e antidemocrático é evidente.


Os protestos no Chile, Equador e Colômbia, parecem ter tirado o sono, e adormecido a razão, do ministro Paulo Guedes. Em entrevista, disse que “quando o outro lado ganha, com dez meses você já chama todo mundo para quebrar a rua?... Não se assustem então se alguém pedir o AI-5”. Depois: “Acho uma insanidade chamar o povo para fazer bagunça”. O sujeito da frase estava tão oculto quanto os protestos que o ministro, sabe-se lá por que, teme.

Os fantasmas ganharam carne quando Guedes foi questionado se em alguma hipótese achava concebível a volta do AI-5. Afirmou ironicamente que era inconcebível, “mesmo que a esquerda pegue as armas, invada tudo, quebre e derrube à força o Palácio do Planalto”. Não foi a primeira vez que Guedes mostrou a truculência usual de seu chefe. Logo após Bolsonaro ter sido eleito, em novembro, falou que era preciso “dar uma prensa no Congresso” para votar a reforma da previdência.

O primeiro ponto importante dessa paranoia, real ou motivada, é que as propensões autoritárias de Bolsonaro insistem em ganhar o aspecto da legalidade. Sua própria inabilidade e descaso para com os partidos e a resistência do Congresso impedem que seus desejos se transformem em lei e arruínem a democracia. Demonstram também o projeto de dar todas as armas - no sentido literal e figurado - para o governo enfrentar ondas de descontentamento. Policiais com licença para atirar em multidões, e cadáveres na rua, são bom pretexto para aventuras autoritárias. O Congresso deve rejeitar mais uma das peças antidemocráticas que o Planalto lhe submete.

A preservação da inteligência financeira – Editorial | O Globo

Retomada do julgamento no STF sobre o alcance do sigilo recoloca em questão o combate à corrupção

A retomada hoje do julgamento no Supremo do recurso extraordinário de um posto de combustíveis do interior de São Paulo contra a quebra de seu sigilo fiscal pela Receita precisa avançar para tirar todas as dúvidas sobre o raio de ação legal de organismos de inteligência financeira do Estado.

O caso do posto ganhou relevância com a decisão do relator do processo, ministro Dias Toffoli, presidente da Corte, de aceitar em julho pedido de liminar dos advogados do senador Flávio Bolsonaro. Reivindicava suspender a investigação do Ministério Público sobre movimentações financeiras atípicas do filho do presidente rastreadas pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras, hoje UIF, Unidade de Inteligência Financeira), com o argumento de que ocorrera quebra ilegal do sigilo bancário do cliente. Indo além, Toffoli paralisou mais de 900 inquéritos semelhantes ao de Flávio Bolsonaro, prejudicando a investigação de incontáveis crimes.

Tecnicamente podem ser casos separados, mas foi inevitável que se tornassem um só. E de grande importância, porque a decisão sobre o recurso extraordinário terá “repercussão geral”. Quer dizer, balizará os juízes de todo o país.

O julgamento começou na quarta-feira da semana passada, avançando até o início da sessão de quinta, sempre envolto em densa névoa, devido ao estilo e método impenetráveis usados por Dias Toffoli para expor seu voto.

No decorrer da sessão de quinta foi possível saber que Dias Toffoli, ainda bem, recuara no que parecia ser uma posição inflexível contra o espaço operacional já garantido em lei para estes órgãos de inteligência financeira, vitais no rastreamento do dinheiro que circula no submundo dos tráficos (de drogas, de armas e outros), da corrupção, do terrorismo, do crime organizado em geral. A liminar em favor de Flávio Bolsonaro sinalizara para este perigo.

Ao estrear no STF como procurador-geral da República, Augusto Aras, indicado pelo presidente Bolsonaro, exerceu a independência que a Constituição concede ao seu cargo.

No memorial que encaminhou aos ministros da Corte, Aras criticou a decisão de Toffoli de ampliar o alcance da liminar para abranger o Coaf/UIF. O fato é que o processo se limita a discutir se a Receita Federal pode compartilhar com o MP dados bancários a que tenha acesso.

Nada a ver com Coaf/UIF, portanto. Logo, com Flávio Bolsonaro. Ministros, nas discussões, já criticaram esta extrapolação. É outro assunto a ser esclarecido.

As melhores expectativas são de que, na linha do outro voto proferido, do ministro Alexandre de Moraes, o sistema de vigilância financeira do Estado não venha a ser travado por este julgamento. Augusto Aras já alertou para os danos que o Brasil pode sofrer ao contrariar tratados multilaterais para o enfrentamento do crime organizado e do terrorismo, por meio da inteligência financeira

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