quarta-feira, 13 de novembro de 2019

República, 130 anos - Desigualdade é desafio persistente

Líderes e intelectuais apontam principais problemas a enfrentar para consolidar o espírito republicano

Marcelo Godoy e Paula Reverbel | O Estado de S. Paulo

A promoção da democracia e o combate à desigualdade são os valores mais citados por 53 líderes políticos, econômicos, sociais e intelectuais sobre quais valores devem ser reafirmados no ano em que a República completa 130 anos no País. Entre os entrevistados estão os presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Antonio Dias Toffoli, e do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP), quatro ex-presidentes, seis governadores, escritores, cientistas políticos, filósofos, historiadores, educadores e integrantes de grupos que defendem a renovação da política.

Todos responderam a duas perguntas ao Estado: quais promessas da República foram cumpridas e quais valores deveriam ser reafirmados em um novo manifesto republicano. Após a diminuição das desigualdades e a democracia, os entrevistados citaram a educação e a luta contra os privilégios. Completaram, ainda, a lista dos dez princípios mais lembrados a reforma do Estado contra o nepotismo, o clientelismo e o patrimonialismo, a garantia da liberdade, a afirmação da igualdade de todos perante a lei, o estabelecimento de novos laços entre representantes e representados, a garantia de oportunidade iguais para todos e, especificamente, a liberdade de expressão.

Ao lado da educação, o federalismo e a ampliação dos direitos políticos faziam parte do Manifesto Republicano de 1870. Sua publicação foi um marco na história do movimento que levou à Proclamação da República, em 1889. O documento não tratava das desigualdades sociais. Mas o peso atual desse tema foi lembrado por 31 dos 53 entrevistados e pode ser atestado por diversas declarações. Aqui, a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “A produção, que se faz crescentemente por meios tecnológicos, não dá emprego e concentra renda. A ideia que parecia absurda – a renda universal – eu não sei mais se é absurda”.

Em 1870, os republicanos preocupavam-se ainda com a defesa do império da lei, da igualdade perante ela vilipendiada pelo “privilégio monárquico”. Esses mesmo valores foram reafirmados e outros acrescidos pelos entrevistados pelo Estado. O economista Armínio Fraga mostra como esses valores se complementam: “A democracia e a liberdade exigem um complemento de natureza solidária, que espelhe a importância de lacunas que ainda temos. Igualdade de oportunidades e uma rede de proteção solidária são cruciais”

PRIVILÉGIOS
Atacar a desigualdade é também combater o privilégio. Essa luta é defendida pelo filósofo Renato Janine Ribeiro e outros 26 entrevistados. “A sociedade deve ter claro que o objetivo de vivermos em conjunto é ter por meta o bem comum. Isso significa que vantagens pessoais, individuais, devem estar na esfera do direito e jamais do privilégio. Um regime republicano não pode ser um regime do privilégio.”

Só esse combate garantiria oportunidades iguais a todos para que o mérito se manifeste. “De vez em quando, ouço falar na tal meritocracia. Só tem meritocracia se todos saírem do mesmo lugar. Se consigo partir de um ponto muito avançado, porque meus pais são ricos e tive oportunidades que outros não tiveram, que meritocracia é essa?”, questionou o economista Delfim Netto.

Seu colega Marcos Lisboa lembrou que essa desigualdade também está na economia, onde permeia a carga tributária. “Deveria estar escrito que a carga tributária tem de ser igual para todos, que ficam proibidos os sistemas especiais de Previdência e os demais privilégios de determinadas categorias. Abolimos a Monarquia, mas o príncipe de plantão continua escolhendo quem serão os novos barões”, disse.

Por fim, o enfrentamento das desigualdades e dos privilégios colocaria a República diante da necessidade de se bater contra outros traços de sua história. O primeiro é o tratamento dado a grupos de servidores em contraste com as condições dispensadas à maioria da população. “A reconstrução da noção de República envolve a necessidade de enfrentarmos privilégios e benefícios das corporações funcionais”, afirmou o cientista políticos José Álvaro Moisés.

Mas não só. Mais urgente seria o resgate dos negros. O abolicionismo não constava do manifesto de 1870, mas a libertação dos escravos se tornou uma das bandeiras da maioria dos líderes do movimento nos anos seguintes. A República, no entanto, não conseguira incluir os ex-escravos. “Se pensarmos numa figura como Lima Barreto, é evidente como boa parte da população negra foi excluída do processo de cidadania. E uma boa parte desse legado permanece nos dias de hoje. O Brasil ainda pratica um racismo estrutural e institucional”, disse a historiadora Lilia Schwarcz.

Para José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, a “República de todos se transformou na República de poucos, e a do estado democrático do direito tem se apresentado como estado antidemocrático do direito”. E assim se teria constituído um regime “inconcluso, permeado fortemente pelo privilégio, pelo particularismo, pelo clientelismo, pelo elitismo e, logo, num regime de promoção e manutenção da injustiça e da desigualdade social; da discriminação e da exclusão racial”. Crítica semelhante à exclusão social faz o escritor e ambientalista Ailton Krenak. “A República não criou uma sociedade solidária capaz de se desenvolver com singularidade, mas apenas deu continuidade ao projeto colonial europeu”.

Outros veem na afirmação dos princípios liberais, que ajudaram a fundar a República a forma de combater privilégio e desigualdade. É o caso do cientista político Luiz Felipe D’Ávila. “A desigualdade social e a república dos privilégios continuam a vigorar enquanto o Estado continua a sufocar a igualdade de oportunidade, a economia de mercado, o empreendedorismo e arbitrando favores, privilégios e subsídios que criam a eterna dependência das pessoas do Estado patrimonialista e corporativista.”

POLÍTICA
Se o balanço social da República feito pelos entrevistados mostra o que ainda se deve fazer, o político indica o que se deve defender no País. “Devemos garantir uma democracia estável, como valor universal que não se coloca em discussão e não seja ameaçada pela erosão de qualquer forma, como golpes pela forma tradicional e, sobretudo, não seja erodida por dentro”, afirmou o historiador Boris Fausto.

O constitucionalista Miguel Reale Júnior lembrou uma das principais características da nossa República – os conflitos entre o Poder Civil e o Poder Militar. “Cabe reafirmar o ideal do Poder Civil proclamado por Rui Barbosa, em especial agora que o presidente aventa chamar as Forças Armadas em face de eventuais protestos de cunho social e seu filho refere-se à volta do AI 5.”

Esse conflito preocupa o historiador José Murilo de Carvalho. Mas não só. Ele está entre os 26 que defendem a reforma do Estado. “Deveria estar em um novo manifesto a redução do nepotismo, do clientelismo e da corrupção.” A reforma resgataria o federalismo. “Talvez a principal promessa não cumprida pela República seja o federalismo”, disse o economista Alexandre Schwartsman. Assim, para os entrevistados, o desafio atual seria achar uma saída para a crise política, a ineficiência do Estado e o abismo social no País. Como? “Atacando sem medo, e sem ceder um milímetro àqueles que insistem em falsas soluções autoritárias ou populistas”, respondeu o apresentador Luciano Huck.

Até o parlamentarismo foi lembrado. “Se tivéssemos o parlamentarismo, muitos erros do presidente deixariam de exigir o impeachment”, disse José Carlos Dias, presidente da Comissão Arns de Direitos Humanos. Sinal dos tempos, a reafirmação da laicidade ocupou nove entrevistados. “É urgente reiterar com veemência a laicidade do Estado. O proselitismo de vários líderes religiosos em estações de rádio e tevê é assustador”, disse o escritor Milton Hatoum. Por fim, 28 entrevistados afirmaram o valor da educação que convive no País com baixos índices na Prova Brasil. “Colocar a educação como eixo central do projeto de Nação nunca aconteceu”, disse Priscila Cruz, do Todos pela Educação.

O filosofo Roberto Romano mostrou como essa deficiência afeta a base da República: a soberania popular. “Para que ela se exerça, é necessário o ideal iluminista da educação de todos, a educação universal e fundamental. Não como direito, mas como prerrogativa fundamental do exercício da soberania.” Para o constitucionalista Ives Gandra Martins o caminho é investir em educação assim como é preciso de afastar da questão ideológica, porque a eficiência deve prevalecer no mundo.

Coube ao escritor Luiz Fernando Veríssimo fazer o balanço desse esforço pela renovação do manifesto republicano. Ele resumiu assim a situação: “É triste constatar que 130 anos depois, ‘idealistas’, com a conotação que a palavra tem de ‘sonhadores’, continuem a lutar pelo que falta para o Brasil ser uma República de verdade. Ou talvez, seja animador…” / COLABORARAM RICARDO GALHARDO, PEDRO VENCESLAU, DOUGLAS GAVRAS, PAULO BERALDO, ADRIANA FERRAZ, BRUNO RIBEIRO, MATHEUS LARA, WILSON TOSTA, RODRIGO SAMPAIO E FERNANDA BOLDRIN.

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