sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

César Felício - O preço da liberdade

- Valor Econômico

São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade

A frase, muito repetida, é de 1790 e trata-se da adaptação do trecho de um discurso de um advogado irlandês pouco conhecido no Brasil, John Curran. “A condição sobre a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna; a qual, se quebrada, torna a servidão ao mesmo tempo consequência de seu crime e castigo de sua culpa”. O preço da liberdade, pois, é a eterna vigilância, como têm alertado recentemente governadores, dirigentes partidários e observadores da cena política brasileira.

Do PSDB ao PCdoB, do MDB ao Republicanos, do PL ao Psol, da sala de um banqueiro na Faria Lima a simpósios de cientistas políticos, ao longo do ano, a frase foi frequentemente citada quando os interlocutores foram convidados a refletir sobre o que tem significado este primeiro ano do governo Bolsonaro. São poucos os que não chegaram à constatação de que o atual presidente só não golpeia as instituições por falta de oportunidade. A estratégia é a de contenção permanente, em um ambiente onde o risco de um golpe não está sendo negligenciado.

Brasil vive guerra fria particular que favorece Bolsonaro
O próprio presidente e seu entorno ajudam seus vigilantes nos momentos de grande vacilação, em que a tese do golpismo parece excessivamente frágil por não responder a perguntas essenciais. Por exemplo, qual seria um possível pretexto para uma ruptura institucional? A resposta não tardou. Ora, que dúvida! Um novo AI-5 se justifica em um cenário de conturbação social, em que a turba enlouquecida promova saques, incêndios, depredações e o caos absoluto. É o que os arautos do bolsonarismo supõem que esteja acontecendo no Chile.

Na realidade, até o momento, a classe política chilena procura saídas para a insatisfação popular dentro da institucionalidade. Uma demonstração disso é a convocação de uma assembleia constituinte. Outra demonstração foi a mudança de gabinete que o presidente Sebástian Piñera promoveu. Fala-se no país da construção de um sistema de seguridade social mais consistente. Se tudo isso irá ou não acalmar as ruas, cedo para dizer, mas o fato é que ninguém, por ora, tem apregoado um AI-5 naquele país.

Bolsonaro mantém o revólver sobre a mesa, até com certo deboche. Ontem foi flagrado pelo microfone aberto durante a cúpula do Mercosul, em uma brincadeira, perguntando se “não dava pra dar um golpe não?” e continuar na Presidência pro-tempore do bloco. O presidente exercita o bom humor em um momento em que a democracia e a tolerância são sentimentos em baixa no mundo.

Vive-se tempos de intolerância, de origem ainda a esclarecer. Há autores que ligam o desprestígio da democracia com a crise econômica global e outros com as desordens no Oriente Médio deste século, tudo tendo como catalisador o avanço da inteligência artificial e a multiplicação exponencial do arsenal de manipulação de informação de que se dispõe atualmente.

O medo é um sentimento poderoso que se espalha pelas redes. Uma pesquisa global coordenada no ano passado pela Fundação de Inovação Política do Instituto Republicano Internacional, um ‘think tank’ francês, realizou 36 mil entrevistas em 42 países e deixou evidente que as ondas de pânico não conhecem fronteiras. Segundo o levantamento, intitulado “Democracias sob tensão”, há mais brasileiros inquietos com uma potencial ameaça islâmica do que americanos e britânicos (62% a 54% e 53%, respectivamente), um dado que surpreende, já que no Brasil nunca houve atos terroristas de motivação religiosa.

Surpreende ainda mais, dado que o levantamento mostrou, mais uma vez, que o brasileiro é muito tolerante. O percentual de pesquisados que diz que não se incomoda com opiniões políticas diferentes das suas no Brasil simplesmente é o maior do mundo. Mas de cada quatro brasileiros, três preferem mais ordem, ainda que com quem menos liberdade. Só um em cada seis brasileiros confia na mídia. Já a percepção da Internet e das redes sociais é amplamente positiva.

Quem se dispõe a exercer a eterna vigilância sobre Bolsonaro - partidos políticos, o parlamento, a mídia, a Justiça - são instituições todas em crise. A eterna vigilância, neste caso, em tese, pode não ter o aval popular. O povo, de certa forma, estaria aberto a uma ditadura regeneradora. Se Bolsonaro é a pessoa capaz de exercer este papel messiânico é outra coisa. Falta ao presidente popularidade para tal - trata-se de um dirigente com taxas apenas medianas de aprovação, abaixo das obtidas por outros presidentes eleitos nos últimos anos, considerando o mesmo tempo decorrido de governo.

Não há, contudo, outro candidato a Bonaparte no horizonte. Em um movimento que pode ter sido definitivo para consolidar seu poder e o mais importante que fez desde a vitória nas urnas, o presidente neutralizou Sergio Moro, rival capacitado para atrair este tipo de idolatria, ao colocá-lo no Ministério da Justiça e obter a sua lealdade. Manter Moro próximo de si continua sendo crucial para o presidente.

O ano de 2019 se aproxima do fim com o Brasil vivendo sua guerra fria particular, onde um equilíbrio do terror se exerce. Nem Bolsonaro tem a força para golpear as instituições, nem as instituições contam com combustível suficiente para promover a contenção definitiva de seus ímpetos.

A posição do presidente, contudo, é a mais confortável. Ter colocado um revólver sobre a mesa de nenhuma maneira o obriga a utilizá-lo. E é questionável cravar que estamos em um ponto de ruptura. O Brasil ainda é um pais onde um juiz federal de uma pequena cidade do interior bloqueia uma nomeação presidencial, como acaba de ocorrer no caso da escolha de Sergio Nascimento para o comando da Fundação Palmares.

De embate em embate, de desautorização em desautorização que recebe dos eternos vigilantes, o presidente vai construindo o cenário para a reeleição. Tem pronto o discurso e terá um partido à sua imagem e semelhança. O Aliança pelo Brasil não será a primeira a sigla a nascer no Brasil pela e para a vontade de um mandatário e nada faz pensar que será o último.

É possível brincar com a democracia, e, ao mesmo tempo desfrutar dela. No Brasil, as instituições funcionam.

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