segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Denis Lerrer Rosenfield* - Atos institucionais

- O Estado de S.Paulo

Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda

A polêmica suscitada pelo deputado Eduardo Bolsonaro a propósito do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), respaldada depois pelo próprio ministro da Fazenda, é da maior gravidade por expor um pendor autoritário. Atos institucionais, como os que caracterizaram a ditadura militar de 1964, são derivados de uma ruptura institucional, a partir da qual um novo regime é estabelecido. Não são atos constitucionais, mas resultam da violência instaurada por um “golpe”, por uma “revolução”, ou qualquer outro nome que se queira dar. A questão reside em que são instrumentos jurídicos provenientes do uso da força, que rompe a ordem constitucional vigente. Dá para brincar com declarações desse tipo?

Não dá para compreender o AI-5 sem remontarmos aos atos anteriores, em particular o AI-1. A perspectiva histórica é importante. O primeiro ato do regime militar foi resultado de uma tomada de poder por via da ruptura institucional e constitucional. A quebra da ordem jurídica situa-se fora da Constituição, que se torna subordinada ao ato de força e à sua nova legalidade, que passa então a vigorar.

Em 1964, primeiro foi produzida a ruptura, depois a nova legalidade, sob a forma do AI-1. Consumada a tomada do poder, o jurista Francisco Campos, homem culto e competente, com longa ficha de serviços prestados ao presidente Getúlio Vargas, tendo redigido a Constituição de 1937, foi chamado pelo ministro da Guerra, Costa e Silva, para dar forma jurídica ao novo regime. Após uma conversa entre ambos, Francisco Campos sugeriu que não era necessário seguir a Constituição de então, pela singela razão de que ela não estava mais sendo cumprida, de qualquer maneira; uma alternativa legal seria mais condizente com a conquista do poder.

Segundo ele, o Brasil estava sendo conduzido por um novo governo de tipo revolucionário, que, como tal, seria fonte originária de uma nova legalidade. O novo poder era a origem mesma de uma nova legislação, não se subordinando a qualquer outra força ou posição constitucional. Ele se justificaria por si mesmo, bastando tão somente conferir-lhe um novo ordenamento jurídico.

O jurista tirou seu paletó, ocupa uma escrivaninha e ao amanhecer do outro dia o Ato Institucional n.º 1 estava redigido, com a colaboração de outro jurista, Carlos Medeiros Silva. O governo revolucionário passou a guiar-se por esse ato institucional e pelos outros atos que se seguiram.

O AI-5 foi ordenado e promulgado pelo mesmo general Costa e Silva, que nesse meio tempo se havia tornado presidente. O seu caráter “revolucionário”, de fonte geradora de uma nova legalidade, foi marcante. O habeas corpus foi suspenso para crimes considerados políticos, o presidente podia suspender o Congresso, o que logo foi feito, passando a legislar ele mesmo por decretos-leis, a censura prévia foi instaurada em jornais, revistas e outros meios de comunicação, o presidente podia intervir em Estados e municípios, entre outras medidas.

Logo, quando autoridades propõem um ato institucional para conter uma eventual – e imaginária – sublevação popular à maneira das manifestações de rua no Chile, eles estão “brincando” com uma ruptura institucional. Note-se que eles não defendem a manutenção da ordem por via constitucional, dado que nossa Carta Magna contempla instrumentos desse tipo, como a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o estado de sítio e o estado de defesa nacional. O primeiro, aliás, amplamente utilizado pelos governos anteriores na manutenção da ordem pública para combater a criminalidade, sendo o exemplo do Estado do Rio de Janeiro o mais conhecido. Observe-se ainda que todos eles, sobretudo os dois últimos, exigem trâmites constitucionais que pressupõem sua aprovação pelo Legislativo.

Consequentemente, a pergunta que se coloca é quem assumiria o poder gerador de novas leis, o da nova legalidade. As Forças Armadas têm mantido rigorosa postura constitucional, defendendo a democracia em nosso país. Não há nenhuma sinalização anunciando uma nova atitude.

O seu desempenho é estritamente profissional, elas têm sido exemplares na defesa das instituições republicanas. Se não são elas candidatas a artífices da nova “revolução”, só sobrariam os que defendem a tal de “revolução cultural”, o círculo mais próximo do presidente. Isto é, o País passaria a ser governado pela ala ideológica do governo, fazendo tábula rasa do Congresso, das oposições, da liberdade de imprensa, concentrando todo o poder no Executivo e em seu grupo dominante.

A reação a tais declarações foi de tal monta que um recuo imediatamente se fez necessário. Não por virtude, mas pela pequena adesão suscitada, confinada aos núcleos digitais do bolsonarismo. Sem apoio, evidentemente, nenhum “ato institucional” seria possível, nem na opinião pública, nem na ação dos militares. Na verdade, foi um tiro no pé, expondo o vigor das instituições democráticas em nosso país.

O problema, porém, persiste. O mesmo governo que alberga posições radicais e antidemocráticas desse tipo é o que apresenta um arrojado programa de reforma do Estado mediante várias propostas de emenda constitucional e projetos de lei, trazendo à tona uma agenda liberal. Questões centrais são trazidas à discussão, sem medo das patrulhas ideológicas da esquerda. Se tudo o que está sendo proposto for aprovado pelo Congresso, estaríamos diante de uma verdadeira “revolução”, ao reconfigurar as relações entre a intervenção estatal e a economia baseada em relações concorrenciais, e não de “compadrio”.

O risco, porém, consiste em que a “revolução cultural” pode terminar por contaminar as transformações liberais. Em muito ajudaria o País o presidente Bolsonaro tomar uma decisão, posicionando-se firmemente pelas transformações econômicas e pelo redesenho do Estado, imprescindíveis para todos os cidadãos. A permanência da tensão entre ambas só ajuda os que pretendem manter o status quo.

*Professor de filosofia na UFRGS.

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