domingo, 29 de dezembro de 2019

Míriam Leitão - Medo e ridículo no ano da cultura

- O Globo

Dois membros da ABL contam suas impressões sobre esse tempo de ataques à cultura que levam ao retrocesso e ao medo da censura, em pleno 2019

Na cultura, o ano foi de reaparecimento de velhos fantasmas. A censura “mostrou suas garras”, lembra o poeta Geraldo Carneiro. O escritor Antonio Torres alerta que “as apreensões estão no ar”. No horizonte desse tempo que começou em 2019, há desde o ridículo e o emburrecimento nas decisões dos censores, até a autocensura. “Penso no que o medo vai ter e tenho medo, que é justamente o que o medo quer”, disse Antonio Torres, citando o poeta português Alexandre O’Neill. No último programa do ano na GloboNews, decidi me cercar de inteligência literária.

Geraldo Carneiro surgiu como poeta ainda muito jovem, no final dos anos 60, fazendo parcerias com nomes consagrados, como Vinícius. Virou autor de teatro, tradutor de Shakespeare. Nasceu em Minas e veio logo para o Rio, porque o pai trabalhava com JK. Antonio Torres nasceu numa pequena cidade na Bahia chamada Junco, hoje Sátiro Dias. Cresceu num estado governado por Otávio Mangabeira e tendo como secretário da Educação Anísio Teixeira. Uma de suas professoras pedia que os alunos lessem em voz alta. Poesia, de preferência. Ele acha que deve o fato de ser escritor a essa origem que tinha bom governo e bons professores. As duas histórias são diferentes e iguais. Foram os livros e as boas leituras que os transformaram em bons escritores. Os dois estão na ABL. Geraldo Carneiro enfrentou um caso de censura este ano que ilustra o tempo em que vivemos.

— Eu estava traduzindo e adaptando Otelo, sob o ponto de vista de Iago, e havia uma semelhança incrível com uma grande personalidade da vida atual. O personagem é um oficial de baixa patente que não consegue promoção, fica ressentidíssimo e ameaça destruir a República de Veneza. Pelas semelhanças sugeriram que eu suprimisse este texto. Eu chiei, naturalmente. A gente entrou numa máquina do tempo. Já vivi uma ditadura — diz.

Antonio Torres também se espanta com o retrocesso e lembra que é de uma geração que “venceu muitas paradas”.

— Eu venho de um Brasil arcaico, rural, conservador. Mas fomos vencendo barreiras na área dos costumes. Hoje, andamos para trás. Tenho medo de chegarmos às inquisições.

Geraldo Carneiro não resiste ao humor. Disse que nesse ritmo revogaremos o “liberté, fraternité, igualité e até o bidê”. A certa altura, quando Torres disse que estamos indo aos “trancos e barrancos”, Geraldo disse que talvez “aos troncos e barrocos”.

— Na ditadura, chegaram a censurar a Enciclopédia Delta Larrousse porque achavam que era russa. O Ensaio sobre o Cubismo porque achavam que era sobre Cuba. Tenho medo de que o Chapeuzinho Vermelho vire chapeuzinho rosa, por causa da ministra dos maus costumes, e que “Memórias de um Sargento de Milícias” seja considerado uma ofensa ao governo — disse Geraldo Carneiro.

Isso está já afetando a obra de cada um? Antônio Torres teme o que possa acontecer aos brasileiros, em geral.

— Cada escritor pode romper suas barreiras internas. O perigo agora é o aparelhamento de quem está recebendo a produção cultural. Não é apenas o incentivo à cultura que corre risco, mas a transformação de quem vai escolher. Sou fruto de uma política educacional eficaz, sem censura nenhuma — diz Antonio Torres.

Geraldo Carneiro teme que o acirramento político leve os escritores e poetas a terem que fazer arte engajada.

— O que me preocupa é a liberdade lírica com que se escreve poesia. Poesia é feita para alegrar o coração das pessoas. Temo que isso seja capturado por esse déficit cívico, esse emburrecimento. O engajamento acaba tornando a poesia menos fascinante na sua experimentação da linguagem e na expressão do ser humano.

Antonio Torres, quando perguntei o que era cultura, leu a definição de Dom Lucas Moreira Neves, que foi arcebispo de Salvador. “Toda pessoa humana é feita de cultura, é fruto da cultura. Sem isso, a pessoa se encolhe a meio caminho de sua autorrealização”.

— Traduzindo para o carioquês, sem cultura não se chupa nem um picolé. A cultura é o fixador que faz com que as imagens sejam lembradas, que faz com que haja passado, e haja futuro — concluiu Geraldo.

Quanto a 2020, Antonio Torres diz que fará 80 anos e publicará um livro novo. Geraldo Carneiro admite que as perspectivas não são as melhores, “mas sou um otimista patológico, espero que sejamos felizes”. A receita dessa felicidade terá de conter humor, poesia e literatura.

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