sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Reinaldo Azevedo - Mataram o sono de Bolsonaro Macbeth

- Folha de S. Paulo

Presidente precisaria dormir para não impor desonras novas às Forças Armadas

O presidente Jair Bolsonaro dorme mal. E isso o leva a refletir diante do espelho: “Será que termino o mandato?”. Em outras circunstâncias, mais pessimistas, a imagem refletida lhe diz: “Você não termina o mandato”. E a prefiguração que lhe tira o sono não está relacionada ao eventual sucesso ou insucesso da política econômica de Paulo AI-5 Guedes.

Tenha-se sobre esta a ideia que for, pobre não volta a nadar em iogurte tão cedo. Temos os nossos reacionários disfarçados de liberais a nos lembrar: “Não existe iogurte grátis!”.

Como que do nada, o chefe fez o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, passar o constrangimento de levar ao Congresso um projeto de lei —mais um!— que institui a excludente de ilicitude. Nesse caso, para as operações de Garantia da Lei e da Ordem. Azevedo e Silva afrontava, a contragosto, a memória do Exército, da República e até do bom senso.

Em entrevista à TV Record, o presidente refletiu: “Se assinar o decreto [de GLO], a tropa de segurança vai pra lá. Entra (sic) as Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e PRF. Nessas condições, eu quero que esse pessoal vá pra fazer valer a sua força para recuperar a normalidade. Essa força tem que chegar para se impor. E não pode chegar pra se impor, e o policial responder por um processo e ser condenado a 30 anos de cadeia”.

Mas se impor contra quem? Aquela imagem insone no espelho é má conselheira. Em certa medida, ela conta com uma desordem que fosse patrocinada pelas esquerdas para, então, dar vazão à pulsão disruptiva do presidente e da turma que com ele chegou ao poder.

Até porque ele enfrenta, na extrema direita, a concorrência de Wilson Witzel e João Doria. Afinal, enfileiram-se corpos negros estaduais para satisfazer a fúria de algozes. Mas Bolsonaro, até agora, não pôde oferecer a sua cota de cadáveres negros federais.

Em 1887, marechal Deodoro mandou uma carta à princesa Isabel. Reproduzo um trecho: “Os oficiais, membros do Clube Militar, pedem a Vossa Alteza Imperial vênia para dirigir ao Governo Imperial um pedido, que é antes uma súplica. (...) Esperam que o Governo Imperial não consinta que nos destacamentos do Exército que seguem para o interior, com o fim, sem dúvida, de manter a ordem, tranquilizar a população e garantir a inviolabilidade das famílias, os soldados sejam encarregados da captura dos pobres negros que fogem à escravidão, ou porque vivam já cansados de sofrer os horrores, ou porque um raio de luz de liberdade lhes tenha aquecido o coração e iluminado a alma”.

Azevedo e Silva deveria ter lembrado a seu chefe, em 2019, o que escrevera Deodoro à princesa regente em 1887. As Forças Armadas não podem ser o capitão do mato do mandatário de turno.

De resto, onde estão as tentações disruptivas das esquerdas a justificar a licença para matar, que Sergio Moro também reivindica para a repressão ao crime comum —ou, se quiserem ler segundo a história brasileira, “para os pobres comuns e os pretos comuns”?

A investigação sobre as atividades extracurriculares de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz serão retomadas —na verdade, nunca chegaram a estar ameaçadas. Uma economia mais virtuosa ou menos até pode ter algum peso na eventual revelação de escabrosidades de verões passados e presentes. Mas pode não ser ela a definir o futuro. Insônia.

Como Macbeth, o presidente recita, a seu modo, no palácio: “Pensei ouvir uma voz a gritar: ‘Não durma mais!/ Macbeth matou o sono!’, o sono inocente,/ Sono que deslinda a tessitura das preocupações,/ Morte de cada dia vivido, banho das chagas da labuta,/ Bálsamo da alma dolente, prato principal da natureza,/ Alimento maior na festa da vida” (tradução de Rafael Raffaelli).

Bolsonaro precisaria dormir para não impor desonras novas às Forças Armadas. Mas como?

Na peça, Macbeth não dorme. E...

Nenhum comentário:

Postar um comentário