segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

Sérgio Augusto - Meio século de Pasquim

- O Estado de S.Paulo / Aliás

Jornal reuniu grandes nomes do jornalismo brasileiro durante a ditadura militar

Coincidência ou ironia do destino, o fato é que, enquanto em Brasília o presidente promovia, com fascistoide estardalhaço, o primeiro partido familiar da história política do País, belicosamente kitsch e com o mais medonho logo de sua espécie, o Sesc Ipiranga de São Paulo abria uma exposição que era, é, em tudo, o seu antípoda.

Nada mais distinto da nova aliança da bala, do boi e da Bíblia que a jubilosa exposição dos 50 anos do Pasquim. A começar pela bela e, como sempre, criativa, montagem de Daniela Thomas. Está tudo lá, até uma sala reproduzindo a cela da Vila Militar em que a maior parte dos redatores do jornal ficou presa nos dois últimos meses de 1970. Pressa desnecessária; ela fica em cartaz no Sesc Ipiranga até abril do ano que vem.

Depois? Por enquanto, nada. Seu obstinado mentor, Fernando Coelho dos Santos, fez o diabo para que ela também acontecesse no Rio, mas só encontrou obstáculos, desinteresse e cagaço político nas instituições que poderiam acolhê-la. Soa no mínimo absurdo que o jornal que era a própria encarnação do espírito de Ipanema, que alardeava ver tudo de “um ponto de vista carioca”, tenha seu cinquentenário apenas celebrado em São Paulo.

Simultaneamente à mostra, a Fundação Biblioteca Nacional disponibilizou em sua hemeroteca a coleção completa digitalizada do Pasquim, do número 1 ao 1072. Esta é a cereja do bolo.
Em meio às conversas que animaram a abertura da exposição, um fiel leitor paulistano do Pasquim me perguntou qual fora, a meu ver, o melhor número do jornal, aquele que eu levaria para uma ilha deserta. Cravei o 300. Entre outros motivos, por ter sido o primeiro número sem censura prévia depois de duzentas e tantas edições rasuradas e cortadas pelos catões da ditadura.

O 300 chegou às bancas em 29 de março de 1975. Na capa, o baixo-ventre da modelo Nádia Patinha, as partes pudendas ocultas por um biquíni preto. Sob o logo do Pasquim, sua inegociável divisa: “Imprensa é oposição. O resto é armazém de secos e molhados”, vetada até então pelos censores.

Nas páginas internas, dois poemas inéditos de Drummond, textos de Chico Anísio, João Saldanha, Pablo Neruda, Dalton Trevisan, uma entrevista com Aurélio Buarque de Holanda, mais os habituais suspeitos do semanário (Jaguar, Paulo Francis, Ivan Lessa, Ziraldo, Claudius etc), todos de algum modo abordando a durindana censória. A recente viuvez de Jacqueline Onassis inspirou quatro cartuns de Henfil e um comentário de Millôr.

Henfil: “Jacqueline mudou a historinha. Agora é a galinha que mata o homem dos ovos de ouro”. Millôr: “Jacqueline, eis uma que não só nasceu de rabo para a lua, como soube usá-lo.”

O ápice da edição, ou melhor, os dois ápices da edição foram o histórico editorial de Millôr sobre o fim da censura prévia e uma fotonovela estrelada por Fernanda Montenegro, que na maior esportiva passou duas horas no casarão gótico fake do jornal, no cocuruto da rua Saint Romain, dividindo a pantomima com Ivan Lessa, Millôr, Jaguar, Dona Nelma, a legendária secretária do Pasquim, e quem mais estivesse dando sopa no pedaço.

Inspirada, por assim dizer, na peça More Stately Mansions, de Eugene O’Neill, com enredo e diálogos de Ivan Lessa, não recebeu o título de A Mais Sólida Mansão, como a traduzira Barbara Heliodora, e sim More nas Mansões Estatais. Cobertos por clâmides improvisadas com dois lençóis, Fernanda (no papel de si própria) e Ivan (fazendo-se passar por Fernando Torres) vão ao Pasquim levar “teatro para o povo”.

Nelma, espantada, pergunta o que é povo. Ivan explica: “aquela turma sem camisa”. Ao que Fernanda complementa: “quase sempre descalça”. Convocados aos gritos por Nelma, contínuos, secretárias da contabilidade, até a cozinheira, D. Marta, acorrem à sala para assistir ao espetáculo. Ao ouvido de Ivan, Fernanda cochicha: “Joga um Shakespeare neles!”. E Ivan recita um trecho de Ricardo 2º. Millôr, de penetra no canto do quadro, interfere: “A tradução é minha!” (Mentira: Millôr não traduziu Ricardo 2º). Sem obter o efeito almejado, Ivan sugere a Fernanda: “Ataca de Sófocles”. E Fernanda, com um cartazete no peito escrito “Tirésias”, discursa aos senhores de Tebas. Millôr interfere de novo: “A tradução é minha”. (Outra lorota. Ele não traduziu Antígona.) Em vista da reação negativa da assistência (“muito cerebral”, “não tem mulher nua”, “cadê o Tarcísio Meira?”), Fernanda, Ivan e Millôr saem, acabrunhados, da casa. Fernanda perguntando-se se não seria melhor gravar um LP, Ivan pensando em “jogar na ponta do Flamengo” e Millôr cogitando traduzir as propagandas do macacão do Fittipaldi.

Quanto ao histórico editorial, foi o último ato do Millôr à frente do Pasquim. Começava assim:

“Cinco anos depois, tão misteriosamente como começou – ‘ordens superiores’ – a sinistra censura sobre este jornal se acabou. O Dr. Romão, o último interventor de plantão dos vinte ou trinta que passaram pela tarefa nestes mil e quinhentos dias de violências, comunicou à Nelma que ‘Vocês, agora, não precisam mandar mais nada pra censura’. Mas, vício do ofício, não conteve a ameaça ‘Agora a responsabilidade é de vocês’.”

E continuava assim: “Se mesmo sob censura prévia, 10 dos principais redatores ficaram dois meses presos na Vila Militar, por crime de imprensa, ‘a responsabilidade sempre foi nossa’. Agora o jornal passa a circular sem censura. Mas sem censura não quer dizer com liberdade.
Pois a ordem de liberação, como a ordem de repressão, não partiu de nenhuma ordem identificável (...) Veio, como tudo, hoje, da voz menor de um burocrata. De modo que – não nos enganamos! – assim como a ordem veio, pode ser negada amanhã de manhã e o jornal apreendido no momento que você lê este artigo.”

E não é que foi mesmo?

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