segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Opinião do dia: Leoluca Orlando

Numa democracia, a segurança se obtém com a garantia dos direitos de todos. São as ditaduras que dizem que a segurança está acima dos direitos

Leoluca Orlando, prefeito de Palermo / Itália

Entrevista com Luiz Werneck Vianna

'O texto constitucional está em risco'. Para onde a balança do novo governo vai pender?

Por: Patricia Facchin | IHU On-Line

“O caminho pelo qual nós enveredamos ainda é muito misterioso e não se sabe para onde a balança vai pender”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna à IHU On-Line ao comentar os primeiros movimentos do governo de Jair Bolsonaro. O discurso de posse do presidente, avalia, “foi ameaçador” e indica a intenção de fazer a “roda girar para trás” na questão dos costumes e das mulheres, mas “em outros temas ele tem a intenção de que a roda gire de uma maneira diversa da que estava girando, e essa maneira é a maneira neoliberal”. O modelo econômico que orienta o governo, pontua, “não é bom nem mau”, mas é preciso “ver o cenário social e político dele. Para fazer tudo isso, quem tem que ser removido? Quem tem que perder? Esse não é um jogo somente de ganhadores. Há ganhadores e perdedores, e os perdedores, por ora, estão do lado de baixo e devem perder muito mais do que já perderam”, pondera.

Entre os passos a serem observados no novo governo, Werneck Vianna chama atenção para qual será a participação e as posições a serem defendidas pelos militares no governo. “Existe um personagem no governo que não está claro como está se comportando ou como irá se comportar, que são os militares, especialmente os do Exército”, menciona. Até onde se sabe, diz, “a corporação continua unida em torno de alguns propósitos gerais, como desenvolvimento, uma ideia de grandeza nacional ainda subsiste, e isso tudo parece indicar uma certa indisposição com essa nova política externa que se preconiza, com a nova economia neoliberal que se preconiza”.

Nos primeiros meses de governo, Werneck Vianna aposta que as políticas econômicas do governo encontrarão “apoio” entre os militares, mas “algumas partes serão mais sensíveis, especialmente no tema da privatização de algumas estatais. Quanto ao tema da abertura da soberania de alguns territórios, acho que essa é uma tese que não passa entre os militares, mas, enfim, a ver”. Mas o que “vai se ver” com certeza no novo governo é a reforma da Previdência. A questão é saber se “esse modelo vigente de captação entre as gerações vai permanecer ou vai ser substituído por um sistema de capitalização”.

O sociólogo frisa também que “por mais que se diga que não, o texto constitucional está em risco” e “o programa de Bolsonaro incide de forma negativa diretamente sobre vários pontos da Constituição”. Ele explica: “O mais recente deles é o trabalho, porque o novo governo pretende dissolver a Justiça do Trabalho, que está prevista constitucionalmente. Então, um embate dessa questão com o judiciário parece ser inevitável se essa ideia prosperar”.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador na Pontifícia Universidade Católica - PUC-Rio. Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo - USP, é autor de, entre outras obras, A revolução passiva: iberismo e americanismo no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1997); A judicialização da política e das relações sociais no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 1999); e Democracia e os três poderes no Brasil (Belo Horizonte: UFMG, 2002). Sobre seu pensamento, leia a obra Uma sociologia indignada. Diálogos com Luiz Werneck Vianna, organizada por Rubem Barboza Filho e Fernando Perlatto (Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2012). Destacamos também seu novo livro intitulado Diálogos gramscianos sobre o Brasil atual (FAP e Verbena Editora, 2018), que é composto de uma coletânea de entrevistas concedidas que analisam a conjuntura brasileira nos últimos anos, entre elas, algumas concedidas e publicadas na página do Instituto Humanitas Unisinos - IHU.

Confira a entrevista.

Leandro Colon: Caso Battisti é um vexame total

- Folha de S. Paulo

Depois de abrigá-lo, país não impediu fuga e teve de engolir a expulsão pelo vizinho

A novela Cesare Battisti, ao que parece em seus capítulos finais, caminha para um desfecho de saldo vexaminoso para a imagem do Brasil.

Condenado na Itália à prisão perpétua por quatro homicídios nos anos 70, o terrorista italiano viveu na última década por aqui graças à benevolência dos governos petistas.

Recebeu o status de refugiado do ex-presidente Lula, hoje um preso condenado pela Lava Jato por corrupção e lavagem de dinheiro. Com a proteção garantida, Battisti construiu uma vida em solo brasileiro.

Desfilava tranquilamente pelas ruas de Cananeia, no litoral paulista. Teve um filho com uma professora brasileira. Vestindo a camisa do Corinthians, declarou à Folha em 2017 que não havia razões para fugir, muito menos para a Bolívia —pouco antes, fora detido na fronteira sob acusação de evasão de divisas por carregar mais de R$ 10 mil em espécie.

“A minha arma para me defender não é fugir. Estou do lado da razão, tenho tudo a meu lado”, disse ao repórter Joelmir Tavares na ocasião.

Um ano e dois meses depois daquela entrevista, a casa caiu para Battisti. O STF autorizou sua prisão e a extradição para a Itália foi assinada pelo então presidente Michel Temer.

Perdeu quem apostou que o constrangimento de mais de dez anos para o Brasil havia chegado ao fim.

*Marcus André Melo: Campanha perpétua

- Folha de S. Paulo

Palanque permanente e moedas de troca são substitutos, não complementos

Por que alguns presidentes não saem do palanque e permanecem em “campanha perpétua”? Esta questão tem atraído o interesse dos analistas do governo Bolsonaro, mas há um rico debate na ciência política sobre Trump, no poder há dois anos sem sair do palanque (ou do Twitter!).

Há dois argumentos rivais nesse debate. O primeiro é que a campanha permanente reflete a crescente mudança de valores, cujo subproduto é a polarização política, que as novas mídias magnifica. O segundo é que ela decorre de fatores institucionais, e não de mudança de valores.

A polarização seria epifenômeno: ocorreria apenas nos partidos, não no eleitorado, que continua moderado, em que pese o forte alargamento da distância ideológica interpartido. Os partidos tornam-se mais polarizados porque seus simpatizantes moderados abandonam-nos.

Em “Insecure Majorities: Congress and the Perpetual Campaign” ("Maiorias Inseguras: o Congresso e a Campanha Perpétua", University of Chicago Press, 2016), Francis Lee argumenta que a campanha perpétua é produto do desaparecimento de maiorias estáveis —os democratas controlaram a Câmara dos Representantes por 40 anos, entre 1955 e 1995, e a Presidência por 30.

A incerteza resultante leva os agentes políticos a mobilizar temas controversos que podem trazer vantagens eleitorais na margem.

Em relação à presidência Bolsonaro, a questão se coloca nas pautas comportamental —onde concentra-se a “campanha perpétua”— e econômica. Bolsonaro manterá um pé em cada canoa? Há dois fatores em jogo.

*Celso Rocha de Barros: Os generais

- Folha de S. Paulo

Gostaria que a nova conversa dos militares com a democracia incluísse também a esquerda

Algumas semanas atrás, os sites chapa-branca deram um escândalo porque um dos “Manuais do Candidato” para o concurso do Itamaraty tinha uma passagem desabonadora sobre Bolsonaro.

O texto, do historiador João Daniel Lima de Almeida (grande fera, aliás), lamentava que a participação dos militares na discussão sobre o desenvolvimento brasileiro tivesse se tornado tão apagada que o único representante da categoria no debate nacional fosse Bolsonaro, um homofóbico convicto.

Antes que os bolsonaristas comecem a chorar de novo, esclareço: no ano em que o texto foi escrito (2013), Bolsonaro declarou que se orgulhava de ser homofóbico (está no YouTube). A afirmação de Almeida é factualmente correta.

Mas o importante não é isso, o importante é o seguinte: todos os oficiais das Forças Armadas sabem que Almeida tem razão.

Depender de Bolsonaro para participar da vida política nacional é uma tristeza.

Alguém acha que os generais gostam de participar de reuniões com os filhos do presidente, os discípulos de Olavo de Carvalho, o Onyx? Duvido.

Mas pensaram os generais: se a vida lhe dá um amigo do Queiroz, faça uma laranjada.

*Tasso Jereissati: Janela de oportunidade

- Folha de S. Paulo

Parlamento tem de entender resultado das urnas

O eleitor brasileiro deu um claro recado de que não suporta mais viver sob o jugo de um Estado dirigista, provedor de privilégios para uns e de privações para outros. Clama por uma política de simplificação tributária, de controle dos gastos públicos e combate permanente à hipertrofia do Estado que levou à bola de neve da estagnação econômica.

No seu dia a dia, o cidadão pode até não saber formular com clareza sua demanda, mas, ao votar na proposta mais distante do establishment político, deixou patente que não suporta mais conviver com a falta de atendimento à saúde, à educação, com o transporte público ineficiente, sem segurança e, principalmente, com os escândalos de corrupção que tomaram conta da cena política.

Para fazer frente a tantos e urgentes desafios, o mundo político não pode fazer de conta que essa mensagem foi dirigida apenas ao Executivo. Trata-se de um recado também ao Legislativo e ao Judiciário.

O mesmo eleitor que votou para presidente votou também, com o mesmo sentimento, para os seus representantes no Congresso, de quem se esperam demonstrações de distanciamento do jogo de toma lá dá cá, que se tornou quase um padrão nas relações com o Executivo.

As grandes reformas estruturantes, da Previdência, fiscal, e trabalhista, assim como tantas outras de não menor importância, são pautas que exigem atitude republicana de deputados e senadores.

Combater o patrimonialismo e o corporativismo, enfrentar a ferida absurda da desigualdade social, ao mesmo tempo criando um ambiente democrático favorável à livre iniciativa e aos negócios, com segurança jurídica, são exigências morais que não podem estar condicionados a jogos de interesses paroquiais. Sem as reformas, ninguém conseguirá governar, seja o presidente, sejam os governadores ou os prefeitos.

Marcus Pestana: Previdência, demagogia e populismo

- O Tempo (MG)

Na última semana, realcei que a reforma da Previdência Social é central, inevitável e inadiável. Sem isso não haverá equilíbrio fiscal, inflação e juros baixos, volta dos investimentos e crescimento econômico. E que nosso sistema previdenciário não é justo nem sustentável.

Na Secretaria de Estado do Planejamento (Seplan-MG), em 1997, contratamos a Fundação Getulio Vargas, do Rio de Janeiro, para um cálculo atuarial e um diagnóstico prospectivo sobre o sistema previdenciário estadual. Já na época, escrevia sobre a “crônica da morte anunciada”, a marcha da insensatez rumo ao abismo. Neste mandato de deputado federal, prossegui a inglória luta como vice-presidente da Comissão Especial da Reforma da Previdência.

Talvez a reforma previdenciária seja a questão mais difícil do ponto de vista político. Ninguém quer perder “direitos”. O ambiente em torno do tema é um mar de demagogia, populismo, retórica manipulatória e covardia política. Muitos me diziam: “Não fale essas coisas, porque vai perder votos”. É impressionante a alienação das lideranças da sociedade diante de assunto tão grave e vital. É como aquela pessoa que salta do 25º andar e, quando passa pelo oitavo, comenta com alguém na janela: “Até aqui, tudo bem”.

No mundo inteiro, a reforma é inevitável por razões demográficas. Para se ter uma ideia, hoje no Brasil temos 9,2%, ou seja, 19,2 milhões de brasileiros com 65 anos ou mais. Em 2060, serão 25,5%, num total de 58 milhões de idosos. A taxa de natalidade em 1950 era de 44 nascidos para cada mil habitantes; em 2015, foi de 14,16 por mil habitantes. Ou seja, cada vez mais gente usufruindo e cada vez menos gente contribuindo.

*Almir Pazzianotto Pinto: Novas esperanças, velhos desafios

- O Estado de S.Paulo

Reforma da Previdência deve ser o primeiro e decisivo teste para o novo governo

A posse do presidente da República, Jair Bolsonaro, deve ser encarada como o anúncio de nova era de liberdade, segurança e desenvolvimento. O discurso perante o Congresso Nacional, logo após o solene juramento de “manter, defender e cumprir a Constituição”, não se harmoniza, porém, com a promessa de “promover o bem-estar do povo”, mediante a realização de “reformas estruturantes, que serão essenciais para a saúde financeira e sustentabilidade das contas públicas, transformando o cenário econômico e abrindo novas oportunidades”.

O Congresso eleito em 1986, com as prerrogativas de Assembleia Nacional Constituinte, deveria limitar-se ao restabelecimento do regime democrático, protegê-lo contra tendências ao autoritarismo, demarcar as áreas de competência dos três Poderes da União e garantir os direitos fundamentais. Não foi o que aconteceu. Emendada uma centena de vezes, a Lei Fundamental continua à espera de alterações destinadas a torná-la objetiva, fácil de ser lida e entendida, isenta de promessas inalcançáveis, flexível e adaptável às exigências da Nação.

Entre as reformas constitucionais, a da Previdência Social “terá de puxar a fila”, por ser o atual sistema responsável pelo déficit “que cresce no ritmo de R$ 50 bilhões ao ano”, segundo a visão dos economistas Gustavo Franco e Elena Landau. “Reformar a Previdência não é mais uma escolha. Os números falam alto e o País terá de tomar uma decisão o quanto antes”, declarou Marcelo Caetano, então secretário de Previdência Social do Ministério da Fazenda (Estado, 30/12, B4).

Anote-se que as disposições constitucionais relativas à Previdência Social resultam de alterações introduzidas pelas Emendas n.º 20, de 1998; n.º 41, de 2003; e n.º 47, de 2005. O estado pré-falimentar do sistema previdenciário público e privado era conhecido e alvo de discussões desde 1995, quando teve início a série histórica de progressivos déficits anuais.

*Cida Damasco: Cada um cuida de si

- O Estado de S.Paulo

Pressão militar para escapar da reforma da Previdência expõe limites do ajuste fiscal

Quando se toca no assunto aposentadorias, em qualquer bate-papo despretensioso, os pontos levantados são os mais variados, mas quase sempre desembocam numa ressalva, explícita ou envergonhada: “a reforma da Previdência pode até ser necessária, mas o meu caso é especial e, por isso, merece ser uma exceção”. Mesmo em discussões mais formais, que incluem representantes de várias categorias profissionais, as justificativas postas à mesa são parecidas.

Militares, policiais, professores, servidores públicos e mais uma penca de profissionais se colocam numa lista de trabalhadores que, a seu próprio ver, devem ser “contemplados” com regras mais brandas. Seja porque seu regime previdenciário tem, de fato, normas próprias de contribuição, seja porque suas condições de trabalho impõem mais riscos ou simplesmente porque a natureza da sua atividade é diferenciada.

Compreensível que cada um cuide de seus interesses, mas quanto mais exceções forem abertas, maior será o peso das restrições gerais sobre aquelas categorias desprovidas de poder de lobby, quase sempre no circuito do INSS. E naturalmente mais aguado será o resultado final das mudanças sobre as contas públicas, em relação às necessidades apontadas por especialistas.

O ganho fiscal projetado na proposta original de Temer ia pouco além de R$ 800 bilhões em dez anos e, depois de várias concessões, caiu mais ou menos à metade. As indicações são de que a proposta inicial do ministro Paulo Guedes são mais ambiciosas, mas é prudente esperar para ver onde isso vai dar.

Fernando Gabeira: Sobrou para Darwin

- O Globo

Assim como o PT, os vencedores de agora parecem achar que o Brasil começou com eles

Sabia que Darwin não passaria incólume por este governo. Inclusive escrevi um artigo prevendo esta hipótese. Nele, falava de um filme americano do século passado, cujo título no Brasil foi “O vento será tua herança”.

Na verdade, o filme era sobre um júri onde se discutia o ensino da teoria da evolução nas escolas. Ficou conhecido como o júri do macaco.

Darwin esteve no Brasil. Parte de sua teoria foi elaborada a partir da experiência em Galápagos. Outro dia, percorri seu caminho no interior do Rio, dentro do território de Maricá. Observava as possíveis plantas que Darwin viu e, ao passar por um casarão da fazenda, vislumbrei a grande pedra da qual, segundo se diz, os escravos se jogavam. A passagem de Darwin pelo Brasil não se limitou à natureza. Ele se impressionou com a escravidão, à qual ele e sua família se opunham na época.

A ministra dos Direitos Humanos, Damares Alves, lamentou que a igreja evangélica tenha perdido espaço para Darwin nas escolas brasileiras, nas quais o criacionismo não é ensinado. O ministro da Ciência, Marcos Pontes, já fez a defesa de Darwin. De qualquer forma, ainda existe no ministro da Educação uma desconfiança em torno da ciência, tema que também abordei no artigo anterior.

O GLOBO tentou comprar uma autobiografia de Damares. Não deu certo porque a edição de “Jesus sobe no pé de goiaba” foi suspensa. O interesse do GLOBO em Damares é o de repórter. O meu é de escritor. Ela é a grande personagem deste princípio de governo.

Imaginei até uma série de ficção, que começaria com uma ministra de cabelos longos com as mãos na mesa de uma de suas três secretárias, alguns carros usados no pátio, dizendo: “De agora em diante, neste país, menino se veste de azul, menina se veste de rosa”.

Eu a sigo com um olhar fascinado desde a história de ter visto Jesus na goiabeira. Estava pronto para defendê-la dos lobos do ceticismo, mas ela mesma recuou. Disse que era uma fantasia de criança.

O recuo a torna uma personagem mais complexa ainda. Se viu Jesus na goiabeira e está relativizando, sua visão é sinal de que não quer enfrentar os céticos.

Demétrio Magnoli: O que querem os ‘antiglobalistas’

- O Globo

“(...) admiramos os EUA, aqueles que hasteiam sua bandeira e cultuam seus heróis. (...) Por isso admiramos a nova Itália, por isso admiramos a Hungria e a Polônia, admiramos aqueles que se afirmam e não aqueles que se negam.” No seu discurso de posse no Itamaraty, o ministro Ernesto Araújo aderiu ao pacto informal dos governos que se exibem como “antiglobalistas”. À primeira vista, é só um discurso constrangedor — e vazio. Afinal, a guerra comercial EUA/China, a imigração, a crise dos refugiados e a integração europeia são dilemas com fraca incidência sobre o Brasil. Um exame mais acurado revela, porém, a existência de uma agenda comum.

Os “antiglobalistas” usam as palavras para iludir. Falam de Deus, da nação, da soberania e da família, como se essa torrente de referências imprecisas delineasse um rumo político discernível. Destemidos, desafiam o ridículo para denunciar uma conspiração contra os povos articulada por elites liberais “globalistas” junto com as forças do “marxismo cultural”, que é identificado à China de Xi Jinping. Nada disso, evidentemente, tem relevância prática. Vale a pena, contudo, prestar atenção nas suas sentenças condenatórias sobre a “ordem global”.

Araújo convoca os diplomatas a “lembrar-se da pátria”, não “da ordem liberal internacional”, uma “piscina sem água”. Convida-os a abandonar “a escola do globalismo”, que teria feito do Brasil “um país inferior”. Arregimenta-os para uma missão de afirmação nacional, na senda iluminada pelos governos nacional-populistas dignos da sua admiração. As indagações cruciais, que ele nunca faz, são “que ordem global é essa?”, “qual é a sua origem?”, “para que ela existe?”.

A ordem do pós-guerra surgiu de duas fontes paralelas. De um lado, a ruína da ordem estatal anterior, devastada pela fogueira do nazifascismo. De outro, o avanço do sistema soviético sobre o leste da Europa. Do Plano Marshall em diante, ergueu-se uma nova ordem alicerçada na aliança transatlântica entre EUA e Europa Ocidental, que se estruturou em torno de instituições multilaterais de segurança (ONU) e de coordenação econômica (FMI, Banco Mundial). O “globalismo”, no termo pejorativo cunhado pelos neonacionalistas, preveniu a restauração do fascismo e derrotou o totalitarismo comunista.

Cacá Diegues: Um Rio de fé

-  O Globo

Em meados de 2013, o Papa Francisco esteve no Brasil para participar da Jornada Mundial da Juventude, encontro de jovens católicos realizado no Rio de Janeiro. O 266º Papa da Igreja Católica, o simpático Jorge Mario Bergoglio, havia sucedido ao misterioso Bento XVI, em fevereiro daquele mesmo ano. Tive a intuição de que, daquela visita, podia sair um filme oportuno e belo. Renata me incentivou a concretizar a ideia. Segundo ela, só nós podíamos realizar um documentário sobre Francisco, pois “o Papa era argentino, mas Deus é brasileiro”. Nosso “Rio de fé”, o título do projeto, foi uma das mais belas experiências cinematográficas de minha vida, infelizmente pouco difundida devido à distribuição precária dos DVDs, plataforma escolhida desde o início do projeto.

Havia algo de original e revolucionário naquele chefe daquela igreja, a mais tradicional da história do cristianismo. Mas não era apenas no que dizia em seus discursos, sermões e conversas com a população. Era sobretudo em seus gestos e iniciativas, que só viravam escândalo depois de praticados, quando finalmente compreendíamos o que havia acontecido. Foi assim o tempo todo, no encontro inaugural com políticos convencionais, depois com fiéis do candomblé, com favelados de uma comunidade considerada perigosa, com meninos, meninas e outros gêneros juvenis, com a multidão que lotou a Praia de Copacabana em sua despedida. Compreendemos que o bem não era monopólio de nenhuma igreja, mas um valor indispensável à sobrevivência da humanidade.

Curiosamente, naquele mesmo ano, o Brasil se mobilizava com as manifestações de rua em defesa dos que não podiam pagar nem mais um centavo pelo transporte que eram obrigados a usar. Um movimento espontâneo que quebrou a ilusão de que um governo “popular” estava provendo tudo de que a nação precisava, que estávamos a caminho da Parusia levados pelas mãos de políticos iluminados. Hoje, parece claro que 2013 marcava a fundação de um novo momento na história social do país. Poucos brasileiros interessados pelo Brasil perceberam isso.

Ricardo Noblat: Evo Morales passa a perna em Bolsonaro

- Blog do Noblat | Veja

Sem escala técnica

Se quisesse, Evo Morales, o primeiro indígena a presidir a Bolívia, poderia ter concedido asilo político ao ex-terrorista italiano Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua em seu país pelo assassinato de quatro pessoas. Mas ele não quis.

Morales sabia que Battisti estava em algum ponto da Bolívia desde que no dia 14 de dezembro último o presidente Michel Temer assinara decreto mandando extraditá-lo para a Itália. No dia 18 daquele mês, Battisti pediu por escrito asilo à Bolívia.

Alegou que fugira da Itália onde se considerava um perseguido político, e depois da França e do México pelas mesmas razões. Fora protegido aqui por Lula. Uma vez que corria o risco de finalmente ser devolvido à Itália, implorava a graça de Morales.

Quem pode mais, pode menos. Pela lei bancada por ele mesmo, Morales só poderia governar a Bolívia por dois mandatos consecutivos. Mas ele quis o terceiro e conseguiu contra a vontade da maioria dos eleitores. Agora, quer o quarto e deverá obtê-lo.

Ao entregar Battisti ao governo de direita da Itália, Morales reforça seus laços com a Comunidade Econômica Europeia, ao mesmo tempo em que fica bem com o recém-instalado governo de direita do Brasil. De resto, faturou sozinho o seu gesto, dado um drible em Bolsonaro.

Caçado pela Polícia Federal, Battisti foi preso em Santa Cruz de La Sierra por uma equipe de policiais italianos e bolivianos sob o manto da Interpol. Bolsonaro tudo fez para que o avião que levaria Battisti de volta à Itália fizesse uma escala técnica em Brasília.

Haveria, assim, oportunidade para fotos. E o governo brasileiro deixaria suas impressões digitais no ato de aprisionamento de Battisti. Mas aí foi o governo italiano que não topou. Limitou-se a agradecer a colaboração do nosso, que não houve. E tocou adiante.

Angela Bittencourt: Previdência puxa o PIB e potencializa juro baixo

- Valor Econômico

Foco no comando da Câmara e Senado e líderes do governo

Há dois anos a inflação está abaixo da meta no Brasil, e isso significa uma boa e uma má notícia. A boa notícia é que a taxa básica da economia brasileira, Selic, poderá ficar estacionada por muito mais tempo. A má notícia é que, mesmo com a Selic inalterada há dez meses em 6,50%, a reação da atividade é lenta.

Um avanço consistente das reformas estruturantes - a começar pela Previdência - será uma alavanca para os investimentos e taxas mais consistentes de crescimento, já favorecido pela taxa de juro em sua mínima histórica. Em contraponto, reformas frustradas ou aquém do esperado contratam ao menos duas consequências negativas: a manutenção de investimentos em banho-maria e maior pressão no câmbio porque investir no Brasil será mais arriscado. Dólar mais alto gera inflação e convida o Banco Central (BC) a aumentar o juro, o que não acontece desde julho de 2015.

O dólar ronda R$ 3,70 e essa taxa não reflete um desfecho positivo do ajuste fiscal. E tampouco eventual fiasco do discurso reformista do governo Bolsonaro. Confirmada a reforma previdenciária, o dólar tende a recuar a R$ 3,50 ou menos. Um discurso oficial frustrado poderá, sim, puxar o dólar a R$ 3,90 ou a R$ 4,00. E, nesse cenário, o câmbio contamina a inflação e abre caminho para o aumento do juro - um tiro curto, mas fatal contra um crescimento arrastado.

"A economia brasileira mantém um círculo virtuoso desde 2017, e o combustível deste ciclo é o juro baixo, hoje o único estímulo que o Brasil tem para crescer. Se esse estímulo for retirado haverá um grande prejuízo para a recuperação da atividade. Não acreditamos que isso acontecerá. Esperamos a manutenção da Selic em 6,50% em 2019 inteiro e acreditamos que o mercado está migrando para esse cenário. Ajuste do juro? Só em 2020", afirma Leonardo Porto, economista chefe do Citi no Brasil.

Social-democracia à brasileira

Economista retraça políticas aplicadas desde o governo FHC para demonstrar que, ao contrário do que afirmou o ministro da Economia, Paulo Guedes, o país esteve longe de ser aprisionado pela ideologia de centro-esquerda.

*Benedito Rodrigues de Moraes Neto | Ilustríssima / Folha de S. Paulo

Em mais de uma ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que, no período recente, o Brasil foi aprisionado pela social-democracia e que sua proposta objetivava libertar o país dessa prisão. Tentaremos verificar em que medida a avaliação de um excesso de social-democracia corresponderia à realidade histórica de nosso país.

Evidentemente, o ministro se referia ao período que vem desde o governo FHC, pois não haveria qualquer sentido em incluir as presidências de José Sarney e Fernando Collor, por motivos bastante claros: o primeiro esteve inteiramente às voltas com sucessivos fracassos na luta contra a inflação; o segundo levou essa luta ao paroxismo do voluntarismo inconsequente, além de pôr em prática, ainda que de forma incipiente, algumas das propostas mais caras à economia liberal.

Também o período do presidente de um partido que tem em seu nome a social-democracia, o PSDB, não se ajusta bem às críticas de Guedes. Isto porque a luta contra o monstro da inflação continuou dominando a cena, com o bem-sucedido Plano Real, que começou no governo Itamar Franco e se consolidou no governo FHC. Sem dúvida brilhante em sua concepção e implantação, o plano sofreu forte crítica dos partidos mais à esquerda.

Depois desse momento, houve a continuidade da preocupação com a gestão macroeconômica, com a criação do chamado tripé, constituído por meta de inflação, equilíbrio fiscal e flexibilidade cambial. Se juntarmos tudo isso ao grande esforço pelas privatizações, com destaque para a área das comunicações, fica a pergunta: onde está aí a “prisão social-democrata”?

Pode ser que o envolvimento com a questão macroeconômica tenha tolhido esse lado do PSDB, que talvez pudesse desabrochar em outro contexto. De qualquer forma, fica claro que a crítica de Guedes se refere mesmo aos quase 14 anos do PT na Presidência. Nossa questão se coloca, então, de modo mais específico: em que medida a crítica ao excesso de social-democracia se ajustaria às gestões petistas?

Comecemos com um aspecto absolutamente crucial para caracterizar uma gestão social-democrata, em contraposição a uma de matiz liberal: a política tributária. Talvez a mais característica propositura social-democrata seja a implementação de uma tributação bastante progressiva, ou seja, que cobre impostos proporcionalmente maiores dos que auferem renda maior.

Sabe-se que as alíquotas de imposto sobre a renda são extremamente elevadas para níveis elevados de rendimento nos países de presença mais forte da social-democracia, como os da península escandinava. Mesmo no caso dos Estados Unidos, país que apresenta distância bem grande em relação à social-democracia, essa questão da progressividade da tributação diferencia fortemente as gestões dos partidos Democrata e Republicano, algo reforçado nos anos recentes.

Uma gestão democrata se aproxima, nesse caso, respeitando os limites americanos, de uma proposta social-democrata, com elevação da progressividade dos impostos. Uma gestão republicana, inteiramente impregnada da concepção liberal, rapidamente trata de aumentar a regressividade tributária, sob o argumento de que a ideia social-democrata inibe o ímpeto das pessoas para o esforço produtivo.

Pois bem, isso tudo é bem conhecido. O interessante é observar o rebatimento por aqui dessa questão tributária. Ao ler a observação de Guedes, pode-se imaginar que a implantação de uma estrutura tributária extremamente progressiva pelos “social-democratas de centro-esquerda” no poder por 14 anos precisaria ser revertida com força pelos ultraliberais de direita.

Mas esse não é um tema por aqui, pois o PT não mexeu uma vírgula em nossa estrutura tributária regressiva, muito dependente dos socialmente injustos impostos indiretos e, no caso dos impostos diretos, muito branda com os que auferem rendimentos de propriedade e muito dura com os que obtêm rendimentos do trabalho.

Cada vez mais dura, aliás, na medida em que se deixou de corrigir as tabelas do Imposto de Renda de acordo com o ritmo de inflação. Os assalariados de todos os níveis de renda tiveram que pagar cada vez mais nesse período.

Considero que não seria fácil para um estrangeiro entender uma coisa dessas: como é possível que um dos países de maior desigualdade social do planeta, que possui uma tributação de rendimentos extremamente regressiva, não tenha apresentado uma vírgula de alteração em sua política tributária durante 14 anos de um partido “de centro-esquerda” (para muitos, “de esquerda”) no poder?

Vinicius Mota: Sístole e diástole no STF

- Folha de S. Paulo

Algumas ações e propostas de ministros promovem a legitimidade necessária ao embate com os poderes eleitos

O alcance e a forma da tutela do Judiciário sobre os organismos eleitos representam um grande foco de inconstância institucional no Brasil. No coração do sistema, o Supremo Tribunal Federal ensaia uma diástole após anos de aperto sobre Executivo e Legislativo.

A deferência é explícita no caso do italiano Cesare Battisti, com a súbita desistência do ministro Luiz Fux de barrar sua extradição tão logo se alevantou um novo presidente eleito. Do coordenador da corte também partem rajadas dos novos ventos.

Dias Toffoli pôs-se a aparar arestas que significassem atritos precoces com o Planalto. Cogita-se que mude de ideia no julgamento previsto para abril e assegure a validade do cumprimento da pena de prisão para condenados em segunda instância.

Acaba de derrubar mais uma liminar do ministro Marco Aurélio, que impedia a Petrobras de vender patrimônio e operar com maior agilidade. Na mesma linha, num grau federativo abaixo, Toffoli cassou liminar da Justiça estadual que proibia o governo paulista de contratar professores temporários.

A tragédia do ensino médio: Editorial | O Estado de S. Paulo

Recente estudo sobre a evolução do acesso ao sistema de ensino e sobre sua qualidade, promovido pelo movimento Todos pela Educação, uma entidade sem fins lucrativos integrada por pedagogos, gestores escolares e representantes da iniciativa privada, mostra como a crise educacional do País vem sacrificando o futuro das novas gerações.

Em 2018, segundo a pesquisa, quase 4 em cada 10 jovens na faixa etária de 19 anos não concluíram o ensino médio na idade considerada para esse ciclo educacional. E, do total de brasileiros nessa faixa etária, 62% já estão fora da escola e 55% pararam de estudar ainda no ensino fundamental. O estudo foi promovido com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Todos pela Educação definiu uma lista de cinco metas para o crescimento e modernização da educação brasileira até 2022 e, na pesquisa de 2018, constatou que o País continua longe de alcançá-las.

Uma das metas era fazer com que o Brasil tivesse, até o ano passado, mais de 90% dos jovens de 19 anos com o ensino médio completo. Em 2018, só 63,5% atingiram esse objetivo. E, como a qualidade desse ciclo educacional é ruim, entre os alunos que conseguem concluí-lo muitos apresentam conhecimento insuficiente em leitura, ciências e matemática, enfrentando problemas para ler palavras com mais de uma sílaba, identificar o assunto de um texto, reconhecer figuras geométricas e contar objetos. Na Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2017, o ensino médio alcançou o nível 2 de proficiência, numa escala de 0 a 9 – quanto mais baixo é o número, pior é a avaliação.

Com excesso de matérias, currículo desconectado da realidade socioeconômica e conteúdos ultrapassados, o ensino médio é considerado o mais problemático de todos os ciclos do sistema educacional. E é justamente por isso que ele se destaca por altas taxas de abandono e de reprovação.

É preciso agir rapidamente contra a crise do sistema penitenciário: Editorial | O Globo

O tema tem de ser tratado, de maneira coordenada, pelo Executivo, Legislativo e Judiciário

O Brasil avança para o recorde do milhão de pessoas encarceradas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estima a população carcerária em 600 mil, 95% homens e 5% mulheres. O sistema tem recebido em média 5,5 mil novos detentos por mês. Um terço pertence à faixa etária de 18 a 24 anos.

De cada dez presidiários, quatro estão classificados como “presos provisórios” (mutirões organizados pelo CNJ nos presídios podem ajudar a reduzir este problema). Significa que existem 240 mil pessoas presas à espera de sentença. Dos condenados, mais da metade (51%) foram punidos por roubo e tráfico de drogas. A situação é crítica, e os dados do CNJ refletem a disfunção do sistema. Traduzem, também, paradoxal subversão do papel do Estado: passou a ser agência fornecedora de mão de obra para facções organizadas como empresas dentro dos presídios.

Esse quadro caótico é confirmado no fluxo de trabalho dos tribunais. Em 2018, pela primeira vez, o número de processos decididos no Superior Tribunal de Justiça superou a marca dos 500 mil. Na média, cada um dos 33 integrantes da corte chancelou 15,5 mil processos, o que corresponderia a 1.402 julgamentos por dia. As decisões foram repetitivas, na maioria, porque seria humanamente impossível cada juiz julgar um processo por minuto.

Trindade básica: Editorial | Folha de S. Paulo

Pilares da gestão econômica completam duas décadas, mas falta assimilar responsabilidade, autocontenção e transparência no manejo das principais políticas

A mera lembrança de que o chamado tripé da política econômica completará 20 anos de existência demonstra, decorridos cinco mandatos presidenciais, a dificuldade do país em chegar à normalidade.

Nenhum dos três pilares que sustentam o arranjo, afinal, é marcante ou exótico a ponto de justificar a efeméride. Trata-se de práticas e princípios que, a esta altura, já deveriam estar incorporados à rotina.
Deveriam fazer parte do passado, sobretudo, as mazelas que levaram a sua introdução.

Compõem o tripé o regime de câmbio flutuante, pelo qual as cotações do dólar e de outras divisas são determinadas pelos movimentos de compra e venda do mercado; as metas de inflação, que balizam a definição dos juros do Banco Central; e as metas para os resultados do Orçamento, de modo a manter finanças equilibradas.

Tais políticas são encontradiças, com variações locais, em grande parte do mundo civilizado. No Brasil suscitaram debates ideológicos que, embora relevantes, muitas vezes tomaram o lugar da comprovação factual ou serviram de pretexto para medidas irresponsáveis.

Note-se que, em sua essência, os ditames introduzidos em 1999 —no início do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), em resposta ao colapso do Plano Real— limitaram a capacidade de intervenção estatal na economia e estabeleceram mecanismos de prestação de contas.

Desse modo, o governo não mais iria buscar uma taxa de câmbio que fosse conveniente em período eleitoral ou amigável ao lobby da indústria; o BC precisaria apresentar argumentos e projeções ao estabelecer os juros; os gastos públicos ficariam condicionados à existência de receitas suficientes para manter a dívida sob controle.

Aumenta pressão contra o regime de Nicolás Maduro: Editorial | Valor Econômico

No momento em que o presidente Jair Bolsonaro importa problemas e desgastes desnecessários à política externa brasileira, como a possibilidade de transferência da embaixada em Israel de Tel Aviv para Jerusalém e a permissão para uma base militar americana em território nacional, deve-se registrar o primeiro grande acerto do novo governo no cenário internacional. Trata-se da influência exercida pelo chanceler Ernesto Araújo no Grupo de Lima, conjunto de 14 países que tem se reunido periodicamente na capital peruana para discutir o agravamento da crise na Venezuela e articular reações à escalada ditatorial de Nicolás Maduro.

Como se sabe, ditaduras modernas não têm mais brotado de golpes militares, mas do recuo gradual da autonomia de instituições e do encolhimento progressivo de liberdades individuais. Desde antes da morte de Hugo Chávez, em 2013, a Venezuela tem desprezado símbolos da democracia. A imprensa que não se curvou aos desejos do autocrata sofreu com o desabastecimento de papel-jornal, fim de concessões televisivas, fechamento de emissoras de rádio, assédio a veículos de comunicação para venda a empresários amigos do regime bolivariano e até uso de violência física contra jornalistas.

Denúncia apresentada em outubro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sustenta que 236 pessoas ainda estão presas por razões políticas. Um relatório da Human Rights Watch contabiliza 380 casos de tortura e maus tratos contra opositores sob custódia do Estado. Em outubro, o vereador oposicionista Fernando Albán desembarcou em Caracas, de uma viagem aos Estados Unidos, e foi levado ao prédio onde funciona o serviço de inteligência. Três dias depois, seu corpo foi encontrado no térreo.

Tamanha repressão, com milícias à solta e incentivadas pelo governo, fez a sociedade se sentir acuada e desistir não só dos protestos de rua, mas das urnas. As eleições que reconduziram Maduro para um novo mandato de seis anos não foram justas, livres e transparentes. O juramento em sua posse para mais um ciclo presidencial, com uma Assembleia Nacional destituída de funções e uma Suprema Corte capturada, carece de qualquer traço de legitimidade. Por isso mesmo, merece repúdio a presença da senadora Gleisi Hoffmann, presidente do PT, na solenidade, após 13 anos de cumplicidade com os desmandos do chavismo. Além de desapreço aos 2,3 milhões de venezuelanos que se refugiaram em outros países, desde 2015, a ida de Gleisi representa uma estratégia equivocada do ponto de vista interno. Pode até agradar à militância radical, mas dificulta a reconstrução de pontes do petismo com setores moderados do eleitorado brasileiro.

Partidos iniciam guerra por sobrevivência pós 2018

Malu Delgado | Valor Econômico

SÃO PAULO - A partir de fevereiro três partidos deixam de existir no sistema político, forçados a buscar alternativas de sobrevivência pela cláusula de desempenho imposta na reforma eleitoral de 2017 e que afetou pelo menos nove legendas após o pleito de 2018. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deve publicar nesta semana portaria esclarecendo quem terá direito aos recursos do fundo partidário, detalhando também o marco legal para fusões e incorporações.

Além da "cláusula de barreira", que passou a vigorar na eleição de 2018 e determinou limites de votação para que os partidos tenham direito a receber dinheiro público, o rigor aumentará no pleito de 2020, quando as coligações proporcionais estarão vetadas.

Todas as regras novas foram aprovadas pelo Congresso em 2017 com o objetivo de reduzir o número de legendas no país - há 35 siglas registradas oficialmente no TSE e outros 75 partidos "em formação". Com o cenário nada animador, partidos pequenos e legendas médias voltam a se articular para aprovar nova reforma eleitoral neste ano que permita a união das legendas em federações. Essa possibilidade estava prevista na emenda constitucional, chamada de minirreforma eleitoral, de 2017. A Câmara, porém, retirou as federações do texto.

"No Brasil, em todo ano ímpar, ou seja, depois de eleição nacional ou local, se realiza uma minirreforma eleitoral", atesta o líder do PC do B na Câmara, deputado Orlando Silva, que preside a legenda em São Paulo. Segundo Silva, muitos partidos voltarão a se interessar pelo debate sobre federações, já que em 2020 não haverá coligações. "E isso servirá ao enxugamento do sistema partidário."

Há três pedidos de incorporação protocolados no TSE esperando por julgamento, o que deve ocorrer logo no início de fevereiro. O PPL (Partido Pátria Livre) se uniu ao PC do B (Partido Comunista do Brasil). O PRP (Partido Republicano Progressista) se incorporou ao Patri (Patriota), partido que só ficou conhecido pela candidatura do Cabo Daciolo à Presidência, e o PHS (Partido Humanista da Solidariedade) buscou abrigo no Partido Podemos (Pode). Nenhum deles sobreviveria sem as incorporações.

Com uma reforma eleitoral feita de afogadilho em outubro de 2017 - no limite do prazo para que as regras valessem na eleição de 2018, o que provocou uma votação recorde de 30 minutos da emenda constitucional no Senado, por exemplo - há ainda muitas dúvidas e hiatos legais, como é o caso da Rede Sustentabilidade, sigla criada por Marina Silva.

A incorporação do Rede pelo PPS era dada como certa ao final do ano passado, mas houve forte resistência da militância e a decisão foi adiada para o final de março, quando o partido realizará seu congresso nacional. O caso do Rede é peculiar, porque o partido legalmente não pode fazer nem fusão (entrar em outra sigla e deixar de existir formalmente) nem incorporação (ser integrante de uma organização política junto com outras legendas, com mudança de nome e de estatuto). Somente partidos que existem há mais de cinco anos podem optar pelas mudanças e o Rede só tem três anos de existência.

"Vamos aguardar e ver como a Rede vai se posicionar", disse o presidente nacional do PPS, Roberto Freire. O PPS fará, de qualquer maneira, uma refundação, diz ele, incorporando integrantes de movimentos sociais, como o Acredito e o Renova Brasil.

Parte deste movimento já está ocorrendo. Em Sergipe, 22 políticos do Rede se anteciparam e se filiaram ao PPS em novembro, como o senador eleito Alessandro Vieira, que vai estrear o primeiro mandato. O novo PPS deve ser chamar Partido Cidadania. "Estamos trabalhando e preparando mudanças. Temos todo o interesse que a Rede possa se integrar a esse processo de reformulação política", defende Freire.

Disputa por cargos ameaça favoritismo de Maia na Câmara

Espaço dado a PSL e PR irritou aliados e afastou siglas de centro-esquerda

Natália Portinari e Bruno Góes | O Globo

BRASÍLIA – A negociação em torno de cargos na mesa diretora e no comando de comissões na Câmara dos Deputados gerou uma dispersão, na última semana, do apoio em torno de Rodrigo Maia (DEM-RJ), atual presidente que tenta a reeleição. Ele mantém o favoritismo, mas deve contar com alguma oposição na casa.

Com a promessa de entregar a primeira vice-presidência para o PRB e a segunda para o PSL, o líder do PP, Arthur Lira (AL), se sentiu preterido e decidiu lançar uma candidatura própria. O MDB também desembarcou e deve manter duas candidaturas avulsas, as de Alceu Moreira (RS) e Fábio Ramalho (MG). As duas vice-presidências são, hoje, do PP e do MDB.

— Houve um movimento de PR, PRB e PSD para isolar o MDB. E isso não aceitamos — disse Baleia Rossi (SP), líder do MDB na Câmara. — Mas não tem nada a ver com governo. Nossa bancada tem compromisso com a pauta econômica que vai resgatar os empregos de que os brasileiros tanto precisam.

O acordo entre PSL e Maia afugentou deputados de oposição, que ficaram contrariados com o quanto se cedeu ao partido do governo. Além da segunda vice-presidência, o PSL deve ficar com a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), a mais importante da Casa, e pleiteia a Comissão de Finanças e Tributação.

Diante disso, em reunião na semana passada, deputados do PSB decidiram que vão fazer oposição a Maia. O PCdoB e o PDT, porém, que em teoria formam um bloco de oposição a Bolsonaro com o PSB desde o fim do ano passado, tendem a apoiar Maia. Os eleitos do PDT se reuniram no último sábado e deliberaram que devem seguir com o apoio ao atual presidente. Os três partidos têm conversas marcadas para esta semana.

Yeda articula para disputar presidência do PSDB

Fernando Taquari | Valor Econômico

SÃO PAULO - Marcada para maio, a escolha do novo presidente do PSDB ainda está longe do consenso. Indicado pelo governador paulista, João Doria, para presidir o PSDB, o deputado federal Bruno Araújo (PE) deve enfrentar pelo menos uma adversária, a deputada federal em fim de mandato Yeda Crusius (RS).

Governadora do Rio Grande do Sul entre 2007 e 2010, Yeda afirma que sua pretensão não representaria um projeto pessoal de poder. "Fui convencida pelas minhas companheiras depois do sucesso que nós, mulheres, tivemos na eleição de 2018", diz Yeda, presidente do PSDB-Mulher. Em comparação com 2014, a bancada tucana feminina registrou um crescimento de 60%. Nas assembleias legislativas, houve um aumento de 30%.

A ascensão das mulheres do PSDB, observa a deputada, contrasta com o desempenho geral do partido, que perdeu 20 cadeiras na Câmara, além de ter amargado o pior resultado de sua história na corrida presidencial. "Por isso costumo dizer que fizemos uma pequena revolução", afirma Yeda.

A postulação da deputada gaúcha, no entanto, não conta com o respaldo de Doria. De olho na sucessão presidencial de 2022, o governador paulista trabalha abertamente para emplacar um aliado na presidência do PSDB. Araújo desponta como o favorito, pois é um dos representantes da ala jovem conhecida como cabeças-preta, que propõe uma guinada da sigla à direita.

Yeda explicou que iniciará sua campanha a partir de fevereiro, depois da eleição na mesa diretora da Câmara. Até lá, ela pretende acertar agendas com Doria e o atual presidente do PSDB, o ex-governador Geraldo Alckmin, que ainda não se posicionou sobre a disputa interna.

Depois disso, fará um giro pelo país. A candidatura da deputada pode representar a única alternativa para os tucanos que resistem a Doria, mas não enxergam disposição de outros correligionários em postular o comando partidário.

Os senadores Tasso Jereissati (CE) e Antonio Anastasia (MG), apontados como eventuais candidatos dos cabeças-branca, não demonstram, por ora, o menor interesse na disputa interna. O parlamentar cearense, inclusive, tem dedicado esforços recentemente em costurar o apoio de outros partidos em torno de sua tentativa de presidir o Senado.

Ferreira Gullar: Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?