domingo, 10 de fevereiro de 2019

Roberto Romano*: O segredo contra a democracia

- O Estado de S.Paulo

Se resta ao governo alguma prudência, o Decreto 9.690/2019 deve ser abolido

Um grave passo para atenuar a democracia foi dado com o Decreto 9.690/ 2019 sobre a Lei da Transparência. Segredos devem reger assuntos estratégicos da ordem militar ou diplomática, pois sem eles são iminentes os prejuízos aos interesses nacionais. Mas, no decreto, decisões para ocultar documentos ficam a cargo de pessoas desprovidas de autoridade plena, como é o caso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Logo, as liberdades, sobretudo a de imprensa, recebem ameaça. E sem livre informação não existe democracia.

No Brasil, setores autoritários ou corruptos tudo já fizeram para tornar inviável qualquer accountability. Eles ocultam da opinião pública e do jornalismo crimes ou privilégios. Os moradores do escuro agora recebem incentivo oficial. Se resta ao governo alguma prudência, o mencionado decreto deve ser abolido.

A democracia abole o segredo. No absolutismo o soberano não devia satisfações aos parlamentos, aos juízes, aos súditos. James I afirma que “os reis são justamente chamados deuses; pois exercem certa semelhança do Divino poder sobre a terra. Deus tem o poder de criar ou destruir, fazer ou desfazer ao seu arbítrio, dar vida ou enviar a morte, a todos julgar e a ninguém prestar contas (to be accountable)”. Os Levellers impõem a responsabilização dos governantes: o rei deve prestar contas ao povo, sem sigilos (Milton, The Tenure of Kings and Magistrates).

No entanto, após séculos, na guerra fria aumenta o segredo. H. Arendt afirma que a vida totalitária reúne “sociedades secretas estabelecidas publicamente” (O Sistema Totalitário). Hitler assume as sociedades secretas como bons modelos para a sua própria. Ele ordena em 1939 que “ninguém que não tenha necessidade de ser informado deve receber informação, ninguém deve saber mais do que o necessário, ninguém deve saber algo antes do necessário”. Tais normas orientaram a secreta matança de inocentes incluídos na Lebensunwertes Leben (E. Voegelin, Hitler e os Alemães).

Segundo N. Bobbio, “o governo democrático desenvolve sua atividade em público, sob os olhos de todos. E deve desenvolver a sua própria atividade sob os olhos de todos porque os cidadãos devem formar uma opinião livre sobre as decisões tomadas em seu nome. De outro modo, qual a razão os levaria periodicamente às urnas e em que bases poderiam expressar o seu voto de consentimento ou recusa? O poder oculto não transforma a democracia, perverte-a. Não a golpeia com maior ou menor gravidade em um de seus órgãos essenciais, mas a assassina” (Il potere in maschera).

Rolf Kuntz*: Bolsonaro está internado, mas onde está o governo?

- O Estado de S.Paulo

Sem comando, falta rumo ao Executivo, enquanto ministros vão batendo cabeças

Falta governo, falta rumo para a administração federal, falta quem organize, discipline e mande parar de brigar um bando de pessoas com e sem funções no Poder Executivo – ministros, vice-presidente e filhos do presidente da República. Quem decide se o pacote anticrime do ministro da Justiça deve tramitar no Congresso juntamente com a reforma da Previdência ou ficar para mais tarde? Quem resolve se a pauta de ajustes e reformas terá prioridade em relação à agenda dos costumes e dos valores da família? Quem determina se, como e quando haverá um novo projeto de alteração das leis trabalhistas? Quem avalia se regras novas para o porte de armas em aviões comerciais são neste momento um objetivo relevante? Empossado há mais de um mês, o presidente Jair Bolsonaro permanece desde fim de janeiro no Hospital Israelita Albert Einstein. 

Os médicos o proibiram de se cansar, limitaram severamente as visitas e lhe recomendaram falar o mínimo possível. Mas ele se mantém no exercício da Presidência, formalmente, como se tivesse condições de comandar o Executivo, de conceder audiências, de conversar, negociar, informar-se e realizar os atos normais de um governante. Se há um vice-presidente em condições de tocar o serviço durante a recuperação do chefe, por que impedi-lo de cumprir esse papel? Por ciúme, por falta de confiança ou porque o presidente se julga capaz de enfrentar normalmente o serviço?

Que o presidente continua longe do governo foi comprovado mais uma vez, no começo de fevereiro, com a mensagem mandada ao Congresso na abertura do ano legislativo. Não foi uma carta sobre o estado da União, mas sobre o precaríssimo estado do governo quase um mês e meio depois da posse presidencial.

Além de conservar o tom de campanha, o recado é confuso e cheio de bobagens. Várias mãos devem ter mexido no texto, como ocorreu na preparação do discurso apresentado em Davos. O resultado é parecido. “O Brasil”, está escrito no início, “resistiu a décadas de uma operação cultural e política destinada a destruir a essência mais singela e solidária de nosso povo, representada nos valores da civilização judaico-cristã.” O resto é desdobramento desse besteirol. Nenhuma análise de conjuntura, nenhuma avaliação de problemas estruturais, nenhuma informação clara sobre planos e sobre etapas de ação.

Vera Magalhães: A falta que faz a política

- O Estado de S.Paulo

Estigmatizada na campanha, prática será a diferença entre sucesso e fracasso do governo

O governo Jair Bolsonaro, em seus dois primeiros meses, sofre de um déficit absoluto de política. Acontece que a prática - estigmatizada ao longo dos últimos anos, num processo que atingiu seu ápice na última campanha eleitoral - será a grande definidora do sucesso ou do fracasso da gestão do ex-capitão, algo que ele, seus auxiliares e entusiastas parecem ainda não se dar conta.

O vácuo da política não é perceptível apenas na falta de articulação entre Executivo e Legislativo, algo que pode ser explicado pela inexperiência de ministros e parlamentares e pela ausência do presidente devido a nova cirurgia a que se submeteu.

Falta interlocução entre os principais agentes do governo e instâncias como o Judiciário, a imprensa e os expoentes dos setores econômicos. Ainda impera entre os novos inquilinos do poder a sensação, entre ingênua e messiânica, de que se pode levar quatro anos de governo nas mesmas bases que vigoraram na campanha, com Deus acima de todos, muito lero-lero no Twitter, doses cavalares de bobajol ideológico e a esperança de que Paulo Guedes e Sérgio Moro façam o trabalho difícil e cuidem do que de fato importa.

Não há política nem mesmo na relação entre o presidente e o vice, Hamilton Mourão, que por cisma da família Bolsonaro passou a ser visto como alguém inconfiável, incapaz de assumir o dia a dia da administração enquanto o titular está obviamente impossibilitado de fazê-lo, às voltas com a recuperação que se vendeu como simples e rápida, quando não era.

Eliane Cantanhêde: O Brasil em choque

- O Estado de S.Paulo

Na guerra entre esquerda e direita, que só piora, quem vence é o descaso e a morte

Este ano de 2019 começou com 339 mortos e desaparecidos em Brumadinho, dez lindos talentos dizimados no Flamengo, sete vítimas da tempestade no Rio, 13 mortos num único tiroteio também no Rio, o presidente da República internado em São Paulo em função de uma facada brutal, o ex-presidente mais popular da história preso e condenado pela segunda vez por corrupção e os senadores dando vexame ao vivo e em cores.

O Brasil está perplexo, irritado, desanimado e a palavra-chave por trás das três catástrofes foi dada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge: “Estamos vendo fatos e desastres evitáveis, preveníveis e precisamos estar atentos a eles”. De todas as tragédias, a maior tragédia é descobrir que todas aquelas perdas seriam perfeitamente “evitáveis” se todos e cada um cumprissem com responsabilidade suas funções.

O que foi Brumadinho? De certa forma, uma repetição espantosa do crime de Mariana, em que setor público, companhias privadas e legisladores se embolaram numa valsa macabra de descaso, negligência, omissão, quem sabe embalada pela velha e arraigada corrupção. Uma represa ultrapassada, fiscalização precária, alertas frágeis e ignorados, refeitório e administração como alvo diretos. Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que foram soterrados, agonizando na lama.

O que foi o fogo voraz no Ninho do Urubu? De certa forma, uma repetição aterrorizante do que ocorreu na Boate Kiss, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Mete-se um monte de jovens numa arapuca e lá se vão os craques mais promissores e saudáveis universitários cheios de sonhos. Locais precários, fechados, sem alvará, sem fiscalização. E o CT do Flamengo com pedido de interdição ignorado desde 2017.

Imaginem a mãe, o pai, os avós, filhos, irmãos, namorados, amigos e colegas daqueles que seriam a saída para o futuro e arderam em chamas, sem chance de escapar.

Bruno Boghossian: Linhas cruzadas

- Folha de S. Paulo

Em semana de ruptura, filhos do presidente se alinham a crítico do vice

Na sexta-feira, o porta-voz do Planalto fez questão de relatar à imprensa que Jair Bolsonaro havia conversado por telefone com Hamilton Mourão. O governo preferiu ser vago. Informou apenas que os dois discutiram “alguns assuntos” e trocaram impressões sobre uma nebulosa “integração de ações governamentais e de planejamentos futuros”.

Não se sabe se a ligação durou mais do que os 40 segundos gastos pelo assessor para dar a notícia. Ninguém contou, também, se a dupla teve tempo de trocar algumas palavras sobre o inesperado encontro de Mourão com dirigentes da CUT.

Ao abrir o Planalto para um grupo historicamente alinhado ao PT, o vice reforçou a sensatez com que exerce o cargo, mas também cometeu um ato quase transgressor para demarcar mais uma diferença em relação a Bolsonaro. A distância política entre os dois é cada vez maior.

O presidente nunca escondeu seu desapreço pelas centrais trabalhistas. Em novembro, após vencer a eleição, ele ironizou essas corporações: “A vida de sindicalista é muito boa. É ficar lá, só engordando”. Meses antes, o filho Eduardo fizera um discurso na Câmara em que chamava integrantes da CUT de “vagabundos”.

Hélio Schwartsman: Vamos acabar com os bilionários?

- Folha de S. Paulo

Entre os argumentos em discussão está o de que ninguém precisa de mais de US$ 1 bilhão

A discussão começou em blogs de esquerda dos EUA, mas logo ganhou as páginas do jornal The New York Times, mais especificamente uma coluna de Farhad Manjoo. O argumento para acabar com os bilionários é simples. Ninguém precisa de mais de US$ 1 bilhão para viver (se o sujeito torrar US$ 10 mil por dia, levaria 274 anos para gastar tudo) e o acúmulo de tanta riqueza concentra poder político, cala o dissenso, enfim, acaba corrompendo.

Não discordo dos pressupostos, e ainda poderia acrescentar mais alguns bons motivos para não querermos tamanho ajuntamento de dinheiro. Mas, para responder à pergunta do título, precisamos definir como daríamos fim aos bilionários.

A ideia de enforcar o último burguês nas tripas do último papa está hoje restrita a diminutos grupos radicais. Usar a progressividade da tributação parece um caminho menos violento. E é de fato possível seguir nessa linha, mas só até certo ponto. Bilionários não têm dificuldade para transferir seu patrimônio para países tributariamente mais amigáveis, se julgarem que as alíquotas em sua terra natal se tornaram excessivas.

Janio de Freitas: Gilmar entre nós

- Folha de S. Paulo

Não seria injusto que ele experimentasse o tratamento dos não privilegiados

Gilmar Mendes é propenso a sentir-se perseguido, ao que sugerem muitas atitudes suas no Supremo e fora dele. A mais recente, essa de que a Receita Federal investiga o casal Mendes à semelhança da Gestapo nazista, é a primeira a ter ao menos uma utilidade. Está na exposição, pelo ministro, da sua crença de haver nestes tempos brasileiros “uma estratégia deliberada de ataque reputacional a alvos predeterminados”.

Descontado o ataque de Gilmar Mendes, com aquele “reputacional”, ao estilo vernacular, sua frase coincide com duas suspeitas comuns aqui fora. Uma, a de haver, mesmo, a “estratégia de ataque” a alvos escolhidos. Sem apresentar, necessariamente, justificativa real para essa espécie de extermínio moral, político, existencial, ou todos a um só tempo.

Não a Receita Federal acusada pelo ministro, mas Sergio Moro e os procuradores dalagnóis de Curitiba cometeram, com o amparo superior, arbitrariedades e ilegalidades mais do que suficientes para indicar a “estratégia de ataque a alvos predeterminados”. Numerosos trabalhos de juristas e advogados as provam.

O outro sentimento comum aqui fora, e coincidente com a frase do ministro, é de que Gilmar Mendes vem dando importante contribuição, às vezes decisiva, ao ataque exterminante a “alvos predeterminados”. Não importa se consciente desse papel, ou não, para o desenrolar da estratégia que aponta. Com votos e pedidos de vista, Gilmar Mendes impediu ou dificultou a presunção de inocência e outros direitos.

Se verdadeiras as ilegalidades da Receita no exame financeiro do casal Mendes, seria grave, ainda que não faltem precedentes remotos e nem tanto. Mas não seria de todo injusto que o ministro do Supremo experimentasse, afinal, o tratamento e as consequências a que os não privilegiados estão expostos — e milhões recebem, por diferentes formas.

Clóvis Rossi: Um olhar sobre as bobagens de Matteo Salvini

- Folha de S. Paulo

Um dos modelos favoritos do bolsonarismo é um governo extremamente tóxico

O bolsonarismo tem adoração publicamente manifestada por Matteo Salvini, ministro do Interior da Itália e principal líder da Liga, o xenófobo grupo que nasceu como Liga Norte.

Vale a pena, pois, dar uma espiada no que está acontecendo na Itália de Salvini, para o caso de que os Bolsonaros resolvam imitar as besteiras que Salvini pratica.

A mais recente é insólita e inédita desde junho de 1940, quando o embaixador francês, André François-Poncet, teve que deixar precipitadamente a Itália, após a declaração de guerra do fascismo italiano, que então ocupava o poder, à França.

Agora, é a França que chama de volta seu embaixador em Roma, Christian Masset, devido ao que a chancelaria francesa chama de “acusações repetidas”, “declarações ofensivas”, “ataques sem fundamento” e “ingerências sem precedentes” desde o fim da guerra (a de 1939-45).

Tudo praticado pelos dois vice-presidentes do Conselho de Ministros italiano, o tal de Salvini e seu colega Luigi Di Maio, do Movimento 5 Estrelas, também populista, mas de outra cepa.

A gota d’água foi o apoio dos dirigentes italianos ao movimento dos “coletes amarelos” que estão se manifestando repetidamente na França, protestos que geralmente terminam em quebra-quebra.

Sem entrar no mérito do movimento, que ainda não está bem decodificado, pergunto: como reagiria o bolsonarismo se Nicolás Maduro mandasse um representante (ou algum de seus paramilitares) para apoiar uma invasão qualquer do MST?

É isso que faz a Liga que a turma do presidente brasileiro tem como parte de sua futura fraternidade universal. Gente disruptiva por excelência, certo?

Elio Gaspari*: As mineradoras precisam chamar os oncologistas

- Folha de S. Paulo / O Globo

O diretor da Agência de Mineração mostrou a fonte do desastre de Brumadinho: a barragem do cartel das empresas

Eduardo Leão, diretor da Agência Nacional de Mineração, reconheceu numa entrevista ao repórter Nicola Pamplona que "tanto a questão de barragens quanto a questão das multas já foram pauta no Senado e realmente não andaram". Ele acredita que "tenha tido algum lobby para arquivar esses projetos".

Ex-funcionário da Vale, Leão acrescentou: "Infelizmente, tem empresas sérias, que a gente conhece, que em algum momento acabam formando um cartel que não permite esses avanços".

Não podia ter sido mais claro. As mineradoras blindaram-se. Um projeto que elevaria o teto das multas para R$ 30 milhões foi arquivado, e elas continuaram fazendo o que acham melhor, com multas de R$ 3.600. (Um motorista que bebeu paga R$ 2.934.)

Num paralelo que vem do comportamento das empreiteiras quando começou a Lava Jato, o cartel das mineradoras precisa se livrar do pessoal da gastrite, ouvindo os oncologistas.

Os poderosos empresários tinham dores no estômago e tratavam da gastrite até que foram todos para a cadeia. Diante da realidade da Lava Jato, foram aos oncologistas e tiveram outro diagnóstico: "Os senhores têm câncer no estômago, precisam passar por uma cirurgia e em seguida irão para a quimioterapia. Será um sofrimento e não posso dizer que ficarão curados".

Sofreram o diabo, mas estão soltos.

Horas depois do desastre de Brumadinho, o presidente da Vale, FábioSchvartsman, deu uma entrevista na qual admitiu que não sabia porque as sirenes da barragem ficaram em silêncio. Sete dias depois, informou que "a sirene foi engolfada pela queda da barragem antes que ela pudesse tocar". Schvartsman entrou no modo gastrite, pois sirenes tocaram dois dias depois, quando houve risco de rompimento de outra barragem.

Os doutores da gastrite não põem a cara na vitrine e escalam os marqueses para o papel de bobo. Essa atitude decorre de um sentimento de onipotente impunidade. (Quem se lembra das respostas arrogantes de Marcelo Odebrecht no início da Lava Jato sabe o que é isso.)

Na sua primeira entrevista, Schvartsman mostrou que a empresa alemã Tüd Sud atestou em dezembro a estabilidade da barragem de Brumadinho. Era verdade, e o laudo jogou a Tüd na lama. Agora, o engenheiro Makoto Namba, signatário do parecer, diz que se sentiu pressionado pela Vale para assiná-lo. Até aí, tudo seria uma questão subjetiva. A Polícia Federal mostrou a Namba uma troca de mensagens inquietantes de funcionários da Vale para colegas da Tüd, ocorrida dois dias antes do desastre, e perguntou-lhe o que faria se o seu filho estivesse na barragem. Ele respondeu: “Após a confirmação das leituras, ligaria imediatamente para seu filho para que evacuasse do local bem como que ligaria para o setor de emergência da Vale responsável pelo acionamento do Plano de Ação de Emergência de Barragens de Mineração para as providências cabíveis".

A Vale está atarantada no varejo porque seu comportamento no atacado orienta-se pelo protocolo da gastrite. O problema das empreiteiras estava no câncer do cartel, acima do varejão das propinas. Felizmente, quem usou a palavra demoníaca pela primeira vez foi o diretor da Agência Nacional de Mineração.

Luiz Carlos Azedo: O coração das trevas

- Correio Braziliense

“O Brasil é violento, ao contrário do que desejaria o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. A banalização da morte é uma realidade, mesmo quando causa comoção popular”

O mais famoso dos romances do ucraniano Joseph Conrad (1857-1942), todos escritos em inglês, tem apenas 150 páginas e foi publicado em 1902, a primeira vez em três fascículos: O coração das trevas (Companhia das Letras), que serviu de inspiração para o filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola. A bordo da escuna Nellie, o capitão Charles Marlow aguarda uma maré vazante no Rio Tâmisa para seguir viagem e começa a divagar sobre a história da Inglaterra e seu papel na África. Nesse contexto, conta sua viagem pelo rio Congo em busca do enigmático Sr. Kurtz, um traficante de marfim, no interior daquele continente.

Marlow se depara com atrocidades e brutal exploração da população local, vive um choque entre os valores civilizatórios das missões europeias e seus reais interesses mercantis na África. Os fins justificariam tudo; o bem se torna um disfarce do mal. O livro é uma visão da condição humana na sua travessia inversa, da civilização para a barbárie. No filme, entretanto, Coppola não adaptou o livro, se inspirou nos personagens e nos temas que Conrad aborda, mudando o contexto para a guerra do Vietnã, na fronteira com o Camboja.

Interpretado por um obeso Marlon Brando, Kurtz é um coronel do Exercito norte-americano que enlouqueceu, desertou e vive em uma fortaleza na selva. Martin Sheen interpreta o obstinado capitão Willard, designado pelo alto-comando do Exército dos Estados Unidos para eliminar o coronel Kurtz, que se tornara um problema. No começo do filme, em cena antológica, Robert Duvall comanda um ataque aéreo contra civis vietnamitas ao som da Cavalgada das Valquírias, de Wagner. Tanto o livro quanto o filme foram libelos contra a banalização da violência e a lógica de que os fins justificam os meios.

O Brasil é uma sociedade violenta, ao contrário do que desejaria o “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda. A banalização da morte é uma realidade, mesmo quando causa grande comoção popular. A tragédia de Brumadinho, com151 mortos e 157 desaparecidos, é um exemplo. Não deveria ter ocorrido, se a tragédia de Marina tivesse servido de alerta para as autoridades e para a Vale, mineradora responsável pela barragem do Córrego do Feijão. Os fins justificaram os meios para os executivos da empresa. A morte de 10 garotos no Ninho do Urubu, o centro de treinamento do Flamengo, no Rio de Janeiro, é outro exemplo dessa lógica perversa. Os alojamentos não tinham alvará de funcionamento nem autorização dos bombeiros. O sonho dos garotos não justifica a ganância de empresários e a ambição de dirigentes esportivos.

Ascânio Seleme: Presidente enfermo, precedentes

- O Globo

É justa a preocupação de muitos com a saúde do presidente Jair Bolsonaro. O vai-e-vém dos boletins médicos informa pouco. Sabe-se que o presidente passou por uma cirurgia bem sucedida de reconstrução do intestino, reassumiu rapidamente o mandato, mas em seguida teve febre e náuseas, depois melhorou e passou a despachar do hospital. Aí piorou de novo, suspendeu os despachos e em dois dias melhorou. Depois piorou outra vez e teve febre de novo, seguido de pneumonia bacteriana. Na sexta, melhorou, comeu gelatina e tornou a despachar. Difícil dizer como estará amanhã. Sua volta a Brasília teve dois adiamentos. Era para ele sair na semana passada, depois sairia amanhã, agora fica internado até quinta.

Não é por outra razão que as redes sociais estão infestadas de boatos sobre a cirurgia de Bolsonaro. Alguns desses boatos falam em doenças, mas a maioria discorre sobre teorias conspiratórias. Estranho? Nem um pouco. Fake news é modelo de ação política bem conhecida da turma de Bolsonaro. E também de seus adversários de esquerda, claro. Não seria diferente com nenhum outro recém eleito presidente. Imaginem como seria com Lula, se ele fosse internado dias depois de tomar posse de seu primeiro mandato. Seria um deus-nos-acuda, com redes sociais ou sem elas.

O Brasil já passou por algumas experiências difíceis de presidentes em hospitais. A mais dramática delas foi a internação de Tancredo Neves, primeiro presidente civil depois da ditadura, na véspera de sua posse. Os mais velhos se lembram muito bem dos 36 dias de agonia de Tancredo no Hospital de Base, em Brasília, depois no Incor, em São Paulo. Tancredo passou por sete cirurgias. Todas as tentativas foram feitas para que ele superasse um leiomioma, câncer de intestino. Até médicos americanos especialistas foram trazidos para inutilmente tentar salvar a vida do presidente Tancredo.

Bernardo Mello Franco: Ciro vai à guerra

- O Globo

‘Para a cúpula do PT, o inimigo não é o Bolsonaro. Sou eu’, diz Ciro. ‘O Lula é um político preso. Preso político é o Mujica, que nunca foi acusado de corrupção’, provoca

Ciro Gomes vai à guerra. Terceiro colocado na corrida presidencial, ele pretende liderar a oposição ao governo Bolsonaro. Não está disposto a dividir espaço com o PT, que agora descreve como adversário direto.

Na quinta-feira, o pedetista reapareceu em Salvador, onde bateu boca com militantes que defendiam o ex-presidente Lula. Foi um aviso. Daqui para a frente, ele quer distância dos ex-aliados, mesmo que isso signifique manter a esquerda fragmentada.

“Para a cúpula do PT, o inimigo não é o Bolsonaro. Sou eu”, justifica. “A disputa agora não é de projeto, é de hegemonia. Eles envelheceram. A tática do PT é me empurrar para a direita, como fizeram com o Brizola e com o Arraes. Só que eu não vou”, desafia.

Ciro se considera rompido com o ex-presidente, que foi condenado pela segunda vez nesta semana. “O Lula continua conspirando de dentro da cadeia, na politicagem mais rasteira. Nós temos que tratá-lo como ele é: como um adversário”, afirma.

Ele diz que “não comemora” a situação do petista, mas se recusa a endossar sua defesa incondicional. “Lula não é um preso político. É um político preso. Preso político é o Mujica, que nunca foi acusado de corrupção”, provoca. “Vamos olhar a realidade ou ficar navegando na maionese?”.

Para o ex-ministro, o PT se deixou aprisionar com seu líder em Curitiba. “A tese do ‘Lula Livre’ foi derrotada. Se continuarem insistindo nisso, vão ser derrotados de novo”, avisa.

Ciro diz que a estratégia dos petistas está errada. “Conhecendo o Judiciário, acho uma aberração pensar que vão ajudar o Lula com campanha de rua. Isso funciona pelo oposto”.

Ele não se arrepende de ter virado as costas para Fernando Haddad no segundo turno. O petista ficou esperando seu apoio, mas o ex-ministro escolheu viajar de férias para a Europa.

Dorrit Harazim: Cacofonia nacional

- O Globo

Chama a atenção nas tragédias do Rio o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada

Pelas normas brasileiras, o instituto do luto oficial de oito dias ocorre somente em caso de morte de presidente. Quando o morto é um cidadão que prestou serviços considerados relevantes ao país, como foi o caso do vice-presidente (2003-2010) José Alencar, a homenagem dura sete dias. De resto, são três dias, sempre seguindo um ritual ao qual à nação costuma ficar indiferente: hasteamento da bandeira a meio mastro em todas as repartições públicas federais, estaduais ou do município que decretou a medida.

Não importa a natureza do que se pranteia nem a extensão de cada tragédia. Pode ser Brumadinho, com seus 157 mortos até agora (sem contar a mortandade ambiental), ou o município do Rio de Janeiro, onde o dilúvio-arrastão de quarta-feira arrancou entranhas de parte da cidade e fez sete mortos. E desde sexta-feira, três dias a mais de bandeiras a meio pau, desta vez em repartições estaduais para dar conta de dez adolescentes carbonizados no incêndio no Centro de Treinamento do Flamengo, em Vargem Grande.

Todos estavam dormindo no momento em que o fogo se espraiou pela estrutura de tipo contêiner. Seus nomes agora são conhecidos por estarem mortos, não pelo que sonharam mostrar em campo. E é com este luto não oficial, íntimo e sem prazo nem regras para acabar, que famílias, amigos e torcedores vão ter de aprender a conviver. O moderno local de cinco mil metros quadrados não possuía o certificado do Corpo de Bombeiros que atesta o funcionamento dos dispositivos contra incêndio. O que chama a atenção nas duas tragédias da semana fluminense é o despreparo das autoridades para atender às expectativas mínimas de uma coletividade desnorteada. O general Dwight Eisenhower não criou apenas um bon mot ao assegurar que “planos não são nada, planejamento é tudo”, referindo-se à invasão do Dia D na Segunda Guerra. É quando tragédias ocorrem, sejam elas um ataque terrorista, uma tempestade bíblica, um incêndio de grandes proporções, que lideranças se constroem ou se esboroam.

Vinicius Torres Freire: Um país de morte

- Folha de S. Paulo

Brasil tem números aberrantes de perversão social e acredita em soluções de papel

Quase todo morticínio brasileiro tem firma reconhecida. Até no assassinato em massa somos cartoriais, por assim dizer. Depois de uma desgraça, costuma aparecer um documento qualquer, a prova do descaso homicida, que, no entanto, apodreceu em uma gaveta da burocracia. Nada se fez.

Por vezes, se descobre em empresas um email que registra gambiarras mortais ou propina para abafar risco de mortandades. Ou, então, apresentam-se laudos de fancaria ou um papelório santarrão sobre "responsabilidade social", "valores", cinismos para camuflar negligências criminosas.

Está aí a tristeza infinita dos horrores no Flamengo ou na Vale da morte para demonstrar o caso.

É um país em que jacus ignaros, autoritários e populistas fazem propaganda do endurecimento de penas para assassinos. Mas não tomam atitudes para fazer com que o Estado saiba por onde andam os criminosos e os prenda, quando não contratam milicianos. São marqueteiros da letra morta da lei no papel.

Apenas 2% ou 5% ou 8% dos homicídios são esclarecidos (sim, os números são vários porque nem sabemos direito o que não sabemos). Mesmo que a cana dura tenha efeito dissuasivo, no nosso caso isso é irrelevante, pois a expectativa de cumprimento de pena é mínima.

É um país de papel. "Na minha pátria/ Onde os mortos caminhavam/ E os vivos eram feitos de cartão", versos de Ezra Pound, que também não valia nada, mas escreveu grandes poemas. Por que a gente é assim?

Míriam Leitão: Guedes falha na comunicação

- O Globo

Paulo Guedes tem falhado na comunicação. Tem falado muito, mas sempre de improviso e sem contraditório. Em vez de esclarecer, provoca ruídos

O ministro Paulo Guedes terá que mudar radicalmente sua forma de se comunicar se quiser convencer os brasileiros das muitas reformas que planeja conduzir no país. Durante a transição, e em pouco mais de um mês de governo, ele não deu qualquer entrevista coletiva organizada. Fala em rápidas intervenções quando parado pelos repórteres. Faz apresentações a empresários e nelas solta frases fortes. Pela falta do contraditório, consegue apenas gerar mais confusão.

Foi assim com o Sistema S, com as reformas da previdência, trabalhista e a da desvinculação. A da Previdência permanece envolta nas brigas internas do governo. Não se sabe o que ela será, mas o que tem vindo a público está desconjuntado. Pode ser ou não aproveitada a reforma do governo Temer, pode ser idade mínima igual para homens e mulheres, ou diferente, pode haver um estímulo à natalidade embutido na reforma, os militares podem ou não ser incluídos. Quando há informação para todo o gosto, o nome disso é ruído.

Na quarta-feira, ao falar para uma plateia de empresários reunidos pelo site Poder 360, ele disse que conhece mais viúva que viúvo. “Elas duram mais”. Então concluiu: a idade tem que ser igual. Mas pode também ser diferente, pelo que explicou. “Se teve um filho, fica um ano a menos. Um ano a menos até determinado limite. Tem que tomar cuidado com Dona Maria que pode ter 13 filhos, não queremos estimular isso.”

A proposta é toda ruim. Confirma a ideia de que cuidar dos filhos é obrigação da mulher e não do casal, como modernamente se entende. O subsídio beneficiará a classe média, que tem menos filhos e tem registro profissional. “O Bolsonaro acha que as mulheres deveriam ter 60 anos”, disse o ministro, nessa mesma apresentação. Isso é pior do que a reforma do governo Temer. Vários países hoje igualam a idade de aposentadoria.

Ricardo Noblat: O silêncio vergonhoso dos culpados

- Blog do Noblat | Veja

Esperanças destruídas

Digamos que um pico de energia, na noite do temporal que afogou parte do Rio na semana passada, provocou o incêndio que torrou vivos os 10 garotos alojados nos contêineres do Campo de Treinamento do Flamengo. E daí? O clube seria menos culpado pelo que aconteceu?

Quantos picos de energia foram registrados naquela noite? Em que pontos da cidade? Quantas vezes os bombeiros foram acionados para apagar incêndios? Há dispositivos que impeçam a passagem de fogo de um aparelho de ar condicionado para outros? Havia algum no Campo de Treinamento do Flamengo?

Na ausência dos pais, o Flamengo era o responsável pela integridade daqueles garotos. Dava-lhes de comer. Dava-lhes abrigo. Zelava por sua higiene. Afinal, a quem por contrato eles serviriam no futuro caso fossem escolhidos para isso? Quem mais lucraria com o eventual sucesso deles?

O Flamengo não pediu autorização para instalar contêineres no Centro de Treinamento do clube. Quer dizer: descumpriu a legislação ao instalar os contêineres no Ninho do Urubu sem a prévia autorização legal. Oficialmente, aquele local não existia. Era uma área destinada a estacionamento.

O Centro de Treinamento foi fechado pela prefeitura em outubro de 2017. Fechado deveria estar, pois. O Flamengo ignorou a ordem e reabriu-o. Não satisfeito de desrespeitar ordem de autoridade pública, construiu um alojamento para os garotos sem nunca ter pedido licença para sua instalação.

Planalto age para combater ação de ‘clero de esquerda’

Militares detectaram que integrantes da Igreja aproveitarão Sínodo da Amazônia para criticar governo

Com base em relatórios de inteligência, o GSI avalia que setores da Igreja pretendem aproveitar o Sínodo sobre a Amazônia, em outubro, em Roma, para criticar o governo Bolsonaro, informa Tânia Monteiro. O temor é de que o chamado “clero progressista”, ligado a movimentos sociais, tome o lugar da oposição com a perda do protagonismo dos partidos de esquerda. Durante 23 dias, serão discutidos pelo Vaticano temas como situação dos povos indígenas e quilombolas e mudanças climáticas, considerados “agenda de esquerda” pelo Planalto. Na tentativa de neutralizar a ação, o governo vai procurar governadores, prefeitos e autoridades eclesiais, principalmente nas regiões de fronteira. “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”, disse o ministro do GSI, general Augusto Heleno. Bispos que preparam o Sínodo são contra a presença de representantes do governo.

Planalto vê Igreja Católica como potencial opositora

Tânia Monteiro | O Estado de S. Paulo

O Palácio do Planalto quer conter o que considera um avanço da Igreja Católica na liderança da oposição ao governo Jair Bolsonaro, no vácuo da derrota e perda de protagonismo dos partidos de esquerda. Na avaliação da equipe do presidente, a Igreja é uma tradicional aliada do PT e está se articulando para influenciar debates antes protagonizados pelo partido no interior do País e nas periferias.

O alerta ao governo veio de informes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e dos comandos militares. Os informes relatam recentes encontros de cardeais brasileiros com o papa Francisco, no Vaticano, para discutir a realização do Sínodo sobre Amazônia, que reunirá em Roma, em outubro, bispos de todos os continentes.

Durante 23 dias, o Vaticano vai discutir a situação da Amazônia e tratar de temas considerados pelo governo brasileiro como uma “agenda da esquerda”.

O debate irá abordar a situação de povos indígenas, mudanças climáticas provocadas por desmatamento e quilombolas. “Estamos preocupados e queremos neutralizar isso aí”, disse o ministro chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, que comanda a contraofensiva (mais informações nesta página).

Com base em documentos que circularam no Planalto, militares do GSI avaliaram que os setores da Igreja aliados a movimentos sociais e partidos de esquerda, integrantes do chamado “clero progressista”, pretenderiam aproveitar o Sínodo para criticar o governo Bolsonaro e obter impacto internacional. “Achamos que isso é interferência em assunto interno do Brasil”, disse Heleno.

‘Vamos entrar a fundo nisso’, afirma Heleno

Tânia Monteiro / O Estado de S. Paulo

O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno Ribeiro, afirmou que há uma “preocupação” do Planalto com as reuniões e os encontros preparatórios do Sínodo sobre a Amazônia, que ocorrem nos Estados.

“Há muito tempo existe influência da Igreja e ONGs na floresta”, disse. Mais próximo conselheiro do presidente Jair Bolsonaro, Heleno criticou a atuação da Igreja, mas relativizou sua capacidade de causar problemas para o governo.

“Não vai trazer problema. (O trabalho do governo de neutralizar impactos do encontro) vai apenas fortalecer a soberania brasileira e impedir que interesses estranhos acabem prevalecendo na Amazônia”, afirmou. “A questão vai ser objeto de estudo cuidadoso pelo GSI. Vamos entrar a fundo nisso.”

Tanto o ministro Augusto Heleno quanto o ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas, hoje na assessoria do GSI e no comando do monitoramento do Sínodo, foram comandantes militares em Manaus. O vice-presidente Hamilton Mourão também atuou na região, à frente da 2.ª Brigada de Infantaria de Selva, em São Gabriel da Cachoeira.

Bispos se opõem a políticos em evento

Organizadores argumentam que Sínodo sobre Amazônia, previsto para ocorrer em outubro, em Roma, não tem participação de governos

Felipe Frazão / José Maria Mayrink | O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O grupo de bispos brasileiros que prepara o Sínodo sobre Amazônia, previsto para ocorrer em outubro, em Roma, critica a presença de representantes do governo federal no evento. O cardeal e arcebispo emérito de São Paulo, d. Cláudio Hummes, um dos mais próximos do papa Francisco, foi indicado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para levar ao Vaticano o pedido do Planalto para participar do encontro, mas ele sugeriu à equipe do presidente Jair Bolsonaro buscar outro interlocutor. “Sugeri que o governo acionasse a Embaixada do Brasil na Santa Sé como contato, pois se trata de uma questão diplomática”, disse ele ao Estado.

Presidente da Comissão Episcopal para a Amazônia da CNBB e prefeito emérito da Congregação para o Clero em Roma, Hummes afirmou que a Igreja Católica não pretende prejudicar Bolsonaro nem dar uma “resposta” a repressões sofridas nos tempos do regime militar. “Deve-se ter a preocupação de não olhar para o passado, mas para o futuro, pois não é a mesma coisa agora”, disse, referindo-se a setores da Igreja que temem a repetição da conturbada relação do clero com a ditadura militar.

Um dos principais nomes da Igreja Católica em atividade na região Norte, o bispo emérito do Xingu (PA), d. Erwin Kräutler, reagiu com estranheza ao interesse do Planalto em influenciar o encontro religioso para tratar de temas como meio ambiente e índios. “Nós conhecemos a Amazônia muito melhor do que qualquer integrante do governo federal”, afirmou. “Como vão contribuir quando falarmos da situação da floresta, que vivemos há tantos anos?”, questionou.

Parlamentares tentam calibrar relação com redes sociais

Novatos começaram a testar, com ‘lives’ e enquetes, se a pressão popular ajuda ou atrapalha seus mandatos

Natália Portinari | O Globo


BRASÍLIA - Parlamentares eleitos com a ajuda das redes sociais já começaram a testar, na estreia do Congresso, se a pressão popular pode ajudar ou atrapalhar seus mandatos. Enquanto novatos contam com “lives” e enquetes para sondar seus seguidores, deputados experientes são mais céticos quanto à relação entre internet e plenário. Os deputados Joice Hasselmann (PSL-SP), Sargento Fahur (PSD-PR), Boca Aberta (PROS-PR) e o senador Jorge Kajuru (PSBGO) estão entre os que prometem fazer enquetes para definir voto. O método foi testado por Kajuru na eleição à presidência do Senado, no início do mês. Ele votou em David Alcolumbre (DEM-AP) após três enquetes no Facebook. —Não votei no Davi, quem votou foi o meu seguidor. Eu teria votado no Reguffe (Sem partido-DF). Decidi inaugurar uma nova forma de votações polêmicas —disse o senador, que se gaba de ter trinta contas oficiais nas redes.

‘SEM CONSISTÊNCIA’
À exceção de alguns estreantes, porém, a ideia sofre rejeição. O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), da bancada evangélica, lembra que “no caso de Jesus, o povo mandou soltar Barrabás e mataram o Cristo; nem sempre a maioria está com razão”. O próprio Kajuru reconhece que precisa melhorar o método para evitar “votos” de robôs. —Deputados sem nenhuma trajetória política foram eleitos sob o calor das redes sociais. Alguns vão querer dar continuidade ao mandato da forma como foram eleitos, mas isso não dá consistência. Eles precisam estudar os temas e ter posicionamentos sólidos para tomar posições —afirma André Figueiredo (CE), líder do PDT na Câmara. A deputada Tabata Amaral (PDT-SP), por exemplo, lançou o aplicativo “Poder do Voto”, em que é possível “verificar se o seu representante está votando de acordo com o que você pensa ou não”, mas acredita que a melhor forma de diálogo com a população é nas ruas, não com enquetes.

Kim Kataguiri (DEMSP), um dos dois deputados mais jovens dessa legislatura, também não vê futuro em se pautar pela pressão popular.

No Congresso, os filhos que encarnam o governo

Aliados já demonstram preocupação e recomendam cautela para evitar desgaste na base a partir de opiniões de Flávio e Eduardo

Bruno Góes | O Globo

BRASÍLIA - O novo Congresso foi empossado há apenas dez dias. Neste curto período, parlamentares já perceberam que uma associação será inevitável: tudo o que dizem os filhos do presidente da República, o senador Flávio Bolsonaro (PSLRJ) e o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSLSP), será diretamente relacionado ao governo. Para diminuir os riscos de turbulência, ambos já foram aconselhados por aliados a adotar tom de cautela.

Desde que começou o ano legislativo, ambos são assediados por aliados e pela imprensa. Alvo de uma investigação sobre transações financeiras atípicas, Flávio prefere não abordar o tema. Apesar dos conselhos, na última quarta-feira, depois de ignorar jornalistas durante a semana, Eduardo foi incentivado pela segunda condenação do ex-presidente Lula.

Foi ao plenário comemorar. Considerou a extinção do PT e apresentou a ideia de que o pacote do ministro Sergio Moro poderia ser “um termômetro” para a reforma da Previdência. No mesmo dia, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), sinalizou que a reforma é a prioridade.

Um deputado do DEM próximo ao ministro Onyx Lorenzoni criticou o fato de Eduardo ter usado a tribuna para atacar Lula. O parlamentar ponderou que o filho do presidente precisa compreender o papel de quem é governo e trabalhar para pacificar o plenário. Disse ainda que o desejo do governo é que os filhos atuem com discrição para evitar crises na base.

Eleito senador por São Paulo, Major Olímpio (PSL), parlamentar próximo a Eduardo, acredita que a associação com o pai foi intensificada durante a campanha eleitoral. Segundo ele, após o atentado sofrido por Jair Bolsonaro, Eduardo percorreu as ruas representando também o pai.

— Houve uma identificação da população do Eduardo com a figura do Bolsonaro. Aquele negócio de fazer uma selfie, milhares de pessoas acompanhando. Aí explodiu o assédio e a vinculação de ativistas de direita — diz o senador, que participou da campanha. Olímpio reconhece que a conexão dos filhos com o governo é algo evidente: — São sabedores de que têm uma influência diferenciada porque estão na intimidade do presidente. Na confusa eleição para presidência do Senado, durante a primeira votação, Flávio Bolsonaro contrariou seus eleitores ao decidir pelo voto fechado.

EXPLICAÇÕES
“Sou a favor do voto aberto, mas nessa ocasião específica, por ser filho do chefe de outro poder, optei por não abrir meu voto, para evitar especulações com intuito de prejudicar o governo. Que o eleito, independentemente de quem for, apoie as pautas que o Brasil necessita”, escreveu no Twitter.

Maia afirma que não dará ‘sala’ para o governo na Câmara

Presidente da Casa nega pedido da equipe de Onyx e diz que Planalto ‘tem de se organizar’ para aprovar Previdência

Adriana Fernandes, Camila Turtelli e Mariana Hauber | O Estado de S.Paulo

Reeleito presidente da Câmara com 334 votos e sem a ajuda do Palácio do Planalto, o deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) deu o primeiro troco no governo dias após ser reconduzido ao cargo. Ele negou pedido da equipe do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que queria ter uma sala nas dependências da Casa para despachar diretamente com os deputados. A tentativa do Planalto de fazer um “puxadinho” na Câmara foi classificada por Maia como algo “bobo”.

Fortalecido pela expressiva votação, Maia demonstrou em entrevista ao Estado que inaugura uma nova fase. Ele negou que vai adotar o estilo “bateu, levou”, mas mandou vários recados. Disse que foi traído pelo PT e avisou o Tribunal de Contas da União (TCU)que nem tente legislar sobre a Lei Kandir. “Deixo eles sem orçamento até 2022”, afirmou.

• A saúde do presidente Jair Bolsonaro pode atrasar a reforma da Previdência?

Não acho, porque, pelo prazo do encaminhamento da reforma, pelas previsões, o presidente já não vai estar mais no hospital. Então, ele pode tomar a decisão final sobre qual texto ele vai querer encaminhar.

• A articulação política para aprovar a reforma fica prejudicada?

Ninguém vai votar nada de Previdência daqui a duas semanas. Então, é importante que o Onyx (Lorenzoni, ministro da Casa Civil) vá organizando a base e, quando o presidente tiver condições, pelo menos dê o sinal de que aquilo que o Onyx organizou está “ok” para ele. Claro que a presença do presidente ajuda, mas não atrapalha nem atrasa.

• Os líderes estão reclamando da falta de diálogo com os ministros.

Não acho que a política esteja sendo surpreendida pela forma como o presidente organizou o primeiro escalão do governo. Não era isso que ele falava na campanha? Ele dizia que ia escolher quadros técnicos. Ninguém se surpreendeu com isso.

• Na sua primeira entrevista, após a sua eleição, o senhor colocou em dúvida a capacidade do governo de reunir 308 votos para aprovar emenda constitucional com essa nova postura.

Sempre me perguntavam se eu achava que ia ter voto ou não. Falei que eu não sei porque é uma forma nova de governar. Não quer dizer que não vai dar certo. Agora, tem de organizar. Até porque o presidente foi eleito, mas o Parlamento também foi eleito.
Até agora não deu certo...

Não sei, ainda não teve nenhuma votação.

PT completa 39 anos em busca de papel na oposição

Após deputados ajudarem a reeleger Maia e governador apoiar pacote anticrime de Moro, partido se reúne para afinar discurso

Sérgio Roxo | O Globo

BRASÍLIA - Sob impacto de mais uma condenação judicial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e em meio a um clima de caça às bruxas em razão da divisão do partido na eleição para a Presidência da Câmara, o PT celebrou ontem os seus 39 anos em busca de um rumo para a sua atuação na oposição ao governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Na semana passada, o lançamento do projeto anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, expôs as dificuldades do partido em encontrar unidade no discurso. Presente ao encontro em que o ex-juiz da Lava-Jato tornou o texto público, o governador petista da Bahia, Rui Costa, disse que dava o seu “apoio conceitual" à proposta. No mesmo dia, dirigentes disparam uma série de críticas às medidas pelas redes sociais.

Na eleição da Câmara, o partido também ficou dividido. Embora a sigla tenha definido apoio a Marcelo Freixo (PSOL-RJ), a contabilidade interna indica que 15 dos 54 deputados petistas não votaram nele. Freixo levou 50 votos.

Lideranças, como o senador Lindbergh Farias e o ex-governador Tarso Genro, criticaram os que não seguiram a orientação partidária e optaram por Rodrigo Maia (DEM-RJ). Alguns parlamentares usaram o Twitter para garantir que votaram no deputado do PSOL.

Para tentar achar uma linha de atuação no novo quadro político do país, o PT deve bater o martelo hoje, último dia da reunião da executiva nacional, em São Paulo, sobre a realização de um congresso interno, no começo do segundo semestre, e definir a data da eleição de uma nova direção.

O teste de Moro: Editorial | Folha de S. Paulo

Projeto do Ministério da Justiça endurece a legislação penal e abre caminho para violência policial sem modernizar a segurança pública

Poucos dias antes de tomar posse como ministro da Justiça, Sergio Moro disse que decidira aceitar o posto por causa dos limites impostos à sua atuação como juiz.

Ao trocar a magistratura por um lugar no governo Jair Bolsonaro (PSL), argumentou, teria melhores condições de promover as reformas necessárias para tornar mais eficaz o combate ao crime.

Com o ambicioso pacote legislativo apresentado na última semana, ainda a ser submetido ao exame do Congresso, chegou a hora de testar a capacidade de Moro de aproveitar a oportunidade.

O texto endurece aspectos da legislação penal, em tentativa de oferecer resposta à justificada sensação de insegurança da população.

A proposta prevê tratamento rigoroso para delitos de maior gravidade, impondo regime fechado para crimes de colarinho branco e mantendo trancados por mais tempo os condenados mais violentos.

O consenso sobre as reformas: Editorial | O Estado de S. Paulo

Os pronunciamentos feitos na sessão solene de abertura do ano legislativo no Congresso Nacional, na segunda-feira passada, deixam claro que finalmente se formou no mundo político um consenso a respeito da necessidade de reformas. Hoje, com exceção dos irresponsáveis de sempre – aqueles que quase levaram o País à bancarrota quando estiveram no governo e que insistem em dizer, por exemplo, que não há déficit na Previdência –, todos os principais atores políticos e institucionais entendem que chegou a hora das reformas, a começar pela da Previdência – sem a qual o País corre sério risco de se tornar insolvente.

Nada disso significa, é claro, que as reformas a serem encaminhadas pelo governo serão satisfatórias nem que essas propostas serão aceitas pelo Congresso sem sofrer alterações. Tampouco significa que o Judiciário estará infenso à truculência de corporações que, na iminência de uma derrota legislativa que lhes casse privilégios, certamente recorrerão ao Supremo Tribunal Federal na expectativa de obter o amparo que tantas vezes alguns ministros daquela Corte lhes franquearam no passado recente.

Mas o fato é que hoje a ideia da necessidade de reformas se incorporou ao discurso político de uma forma mais ou menos generalizada. Em sua mensagem ao Congresso, o presidente Jair Bolsonaro disse que “o grande impulso” para melhorar o ambiente econômico “virá com o projeto da nova Previdência”. Bolsonaro salientou que sua proposta é “moderna e, ao mesmo tempo, fraterna”, conjugando “o equilíbrio atuarial, com o amparo a quem mais precisa”. A expectativa, segundo disse o presidente, é que, ao reformar a Previdência, seja iniciado um “círculo virtuoso na economia”, com incentivos para os negócios e a geração de empregos. No texto lido no Congresso, Bolsonaro não citou outras reformas, o que é um indicativo claro da prioridade dada, neste momento, à reforma da Previdência.

Mecanismo de criação de desigualdades: Editorial | O Globo

Além de colocar as contas públicas no vermelho, sistema transfere renda de pobres para ricos

Para comprovar a afirmação de que é da discussão que nasce a luz, o atual debate sobre a Previdência, iniciado no governo Michel Temer, iluminou o aspecto deletério de o sistema funcionar como eficiente usina de produção de injustiças sociais. Não é difícil entender o mecanismo. Como cada sistema previdenciário acumula déficits crescentes, o Tesouro é obrigado a sacar do bolo de dinheiro que arrecada de todos os contribuintes para tapar os rombos existentes em cada seguridade. E, nesta redistribuição, privilegia alguns segmentos afortunados, com grande poder de pressão sobre Congresso, Executivo e Judiciário, e que por isso já ostentam grandes vantagens em aposentadorias e pensões. Um mecanismo de enorme capacidade de concentrar renda.

As cifras do valor médio das aposentadorias no INSS, Executivo federal, Ministério Público, Judiciário e dos funcionários do Legislativo iam, em 2017, de R$ 1.369,9 a R$ 26.823. Entende-se, então, por que os funcionários públicos aposentados estão no topo da pirâmide de distribuição de renda do país. Perfilam-se entre os mais ricos.

Johann W. Von Goethe (1740-1832): Epigrama

"Maus, para a esquerda! " mandará um dia o Juiz,
"E vós, Cordeirinhos, ficareis aqui à direita!"
Muito bem! Mas há uma coisa a esperar ainda dele; então dirá:
"A vós, Sensatos, quero-vos mesmo em frente!"