segunda-feira, 11 de março de 2019

Ricardo Noblat: Cargos em troca de votos

- Blog do Noblat / Veja

É dando que se recebe

Líderes de partidos começaram a ser avisados desde ontem que o presidente Jair Bolsonaro finalmente caiu na real e se dispõe a ceder cargos no segundo e demais escalões do governo para quem o apoiar dentro do Congresso.

Tudo pela aprovação da reforma da Previdência, e de outras coisitas mais. Haverá também generosa liberação de verbas previstas nas emendas dos parlamentares ao Orçamento da União. Foi para o brejo a história de um banco de talentos com nomes indicados por políticos.

Um governo carente de votos e de articulação política não poderá dar-se ao luxo de pedir apoio em troca de nada. É sua sobrevivência que está em jogo.

Bolsonaro, um presidente fake
Jair Messias Bolsonaro, como assina, está descobrindo que Bolsonaro, presidente do Brasil há menos de 100 dias, é apenas uma caricatura de si mesmo.

Durante 33 anos, ele fez a vida na política criticando adversários porque, dizia, mentiam, distorciam, manipulavam e falsificavam histórias sobre situações, lugares e pessoas, especialmente quando se tratava das que fizeram parte ou estiveram aliadas ao regime militar – o mesmo que o processou e mandou para reserva por indisciplina.

Jair Messias Bolsonaro já coleciona material suficiente, que ele mesmo tem publicado nas redes sociais, demonstrando que o presidente Bolsonaro, em menos de 100 dias no poder, se tornou a imagem e semelhança dos adversários políticos que tanto abominava.

Na caricatura poderia identificar o perfil comum aos políticos habituados a usar cargos, subvenções e instrumentos financiados pelo povo para mentir, distorcer, manipular e criar histórias, com o único objetivo de assassinar reputações de seus críticos.

Se olhar no espelho com olhos de ver, talvez perceba que o presidente Bolsonaro se tornou a uma velocidade relâmpago uma representação malfeita de tudo aquilo que Jair Messias Bolsonaro sempre disse deplorar.

Fareed Zakaria: Diversidade pode salvar a democracia

- The Washington Post, O Estado de S.Paulo

A Índia é um exemplo de como a diversidade impediu que algum partido se tornasse excessivamente grande

O relatório do promotor especial Robert Mueller, que deve ser publicado em breve pelo secretário de Justiça, será um grande teste da democracia americana. Como os americanos vão lidar com ele? De maneira partidária ou de modo a fortalecer o sistema constitucional?

Tem sido muito observado que estamos numa era de democracia iliberal. Governos e líderes popularmente eleitos – em países distintos como Venezuela, Polônia e Filipinas – vêm corroendo as instituições independentes, violando normas e acumulando poder excessivo. Em muitas dessas nações o equilíbrio de poderes perdeu força à medida que a proteção dos direitos enfraqueceu, os partidos se acovardaram, os tribunais se tornaram complacentes e a imprensa foi subjugada.

Nos EUA a história é ambivalente. O sistema político tem funcionado mediocremente, controlando os excessos do presidente Trump só de acordo com as visões partidárias. Isto se deve em grande parte ao fato de os republicanos terem se rendido a Trump, mesmo quando líderes do partido achavam que ele tem arruinado a democracia.

Senadores que passaram a vida atacando as tentativas de usurpação do poder pelo Executivo endossaram submissamente a falsa emergência nacional decidida pelo presidente. E silenciosamente deixaram que o poder central do Congresso, em termos de gastos financeiros, fosse subvertido à vontade pela Casa Branca.

Por outro lado, algumas instituições americanas reagiram contra isso. O Judiciário manteve sua independência. As várias esferas do poder investigativo demonstraram que servem ao país e à Constituição acima do atual ocupante da Casa Branca. A imprensa tem conseguido resistir à extraordinária pressão de um presidente que ataca e ameaça sua liberdade e sua independência.

Cida Damasco: Jair e Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Presidente é chamado a entrar no jogo da reforma. Mas “qual” presidente?

O enredo parece inspirado em “blockbusters” que de vez em quando ganham as telas de todo o mundo: enquanto a população se distraía com as festas de fim de ano e as férias de verão, sorrateiramente dois governos se instalavam no Planalto. Mas, ao contrário do que costuma acontecer nesses filmes, não havia nenhum impostor sentado na cadeira presidencial.

É como se Jair estivesse no comando de um dos governos e Bolsonaro, de outro. Sim, apenas uma fantasia, mas uma fantasia mais real do que a realidade insólita exibida nos dois meses e meio de mandato do capitão – e, mais grave, até pouco tempo atrás “comprada” com naturalidade por determinadas parcelas da sociedade, especialmente pelos mercados e por setores produtivos da economia.

Enquanto Jair e a ala arquiconservadora do ministério atendiam a uma parte do eleitorado, com declarações e atitudes controvertidas, principalmente na chamada pauta social e de costumes, Bolsonaro e a equipe econômica atendiam à outra parte, com o discurso insistente de prioridade absoluta à reforma da Previdência e outros projetos dentro do campo do liberalismo, como as mudanças na legislação sindical e trabalhista.

Roberto Livianu*: Em nome do patriotismo

- O Estado de S.Paulo

É preocupante a ideologização da educação, para um viés como para outro

Quando criança, uma vez por semana eu e meus colegas de escola tínhamos de nos posicionar em fila e entoar em postura de respeito cívico o Hino Nacional brasileiro e, muitas vezes, o hino da escola. Vivíamos o tempo da ditadura militar e nenhum dos alunos ousaria questionar o porquê daquilo. Eu, particularmente, gostava de cantar os hinos.

Eis que quase 40 anos depois disto, precisamente 34 anos passados desde o processo de redemocratização, o ministro da Educação do governo eleito em outubro manda uma surpreendente carta às escolas do País determinando que todas as crianças cantem o Hino, sejam filmadas cantando, sob os auspícios de Deus acima de todos, reproduzindo-se o slogan de campanha do presidente da República a que serve.

Não é necessário ter doutorado em Direito para enxergar as derrapadas cometidas pelo nosso ministro da Educação, originário da Colômbia, nosso país-irmão no continente, que pode até ter tido boas intenções, mas elas são insuficientes para gerir essa tão complexa e importante pasta e as respectivas políticas públicas.

Não se revoluciona a educação no Brasil com a agenda de costumes. Exige-se ousadia para valorizar e capacitar os professores, além de rever métodos ultrapassados de ensino, coragem para lidar com um cenário em que estudantes abandonam a escola cedo demais (25% não terminam o ensino fundamental e 41% não concluem o ensino médio antes dos 19 anos).

No Brasil, mais de 50% não sabem ler nem escrever até os 9 anos e 7% não adquirem o conhecimento necessário em Matemática ao fim do ensino médio. Infelizmente, no ranking da qualidade da educação 2018, divulgado pelo Fórum Econômico Mundial, de 137 países avaliados, o Brasil ocupa a triste posição 119.

Portanto, o problema não se restringe a questões jurídicas, já que, obviamente, crianças não podem ser filmadas sem autorização dos pais, nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Não é só o desrespeito à Constituição, que desde 1891 proclama o Brasil um Estado laico, sendo inadmissível menoscabar os adeptos de quaisquer credos ou religiões, assim como os ateus ou agnósticos.

Deus acima de todos pode ser um chamariz de campanha política e uma opção religiosa individual, mas é ideia que não pode ser imposta aos ateus e agnósticos nem nortear a política pública da educação, já que aqueles que não creem têm o mesmo direito à educação que os que creem, mesmo que estes sejam maioria – numa democracia a vontade da maioria prevalece para a escolha do governante, que governa para todos.

É preocupante a ideologização da educação – tanto para um viés como para outro. Todos têm direito a ela, que transforma as pessoas, sendo inadmissível ser utilizada como instrumento para manipulação política, para formar massa de manobra eleitoral.

E neste ponto vale refletir sobre a necessidade de reinserção das disciplinas de Educação Moral e Cívica (EMC) e Organização Social e Política do Brasil (OSPB) na grade curricular escolar, que durante algum tempo cheguei a pensar ser algo razoável e positivo.

Não tenho dúvida da importância de se falar na escola sobre valores éticos, humanismo, cidadania, Estado e suas funções, direitos e deveres de cada um e cada uma. Mas tenho sérias dúvidas se a melhor forma é a reintrodução dessas matérias, porque nos tempos em que elas eram ensinadas os respectivos conteúdos eram impostos arbitrariamente pelo governo militar, que dava as cartas à época, o que nos autoriza a imaginar que poderemos correr riscos de ver conteúdos manipulados transmitidos nas aulas dessas disciplinas, distantes do verdadeiro, nobre e humanista espírito educativo apartidário.

A carta do ministro da Educação reforça e reaviva a preocupação, não obstante fazer ele parte de um governo eleito democraticamente. Também o foram Trump nos Estados Unidos, Putin na Rússia, Erdogan na Turquia, Orbán na Hungria, objeto de análise dos professores de Ciência Política de Harvard Ziblatt e Levinsky, autores da festejada obra Como as Democracias Morrem, em que mostram como instituições democráticas podem ser dinamitadas pelo mau uso das próprias regras do jogo democrático e por posturas ditatoriais. Por minha conta acrescento o caso Hugo Chávez na Venezuela.

Celso Rocha de Barros*: A centro-esquerda hoje

- Folha de S. Paulo

Há um risco real de a mesma situação vivida nos EUA acontecer no Brasil

Em artigo recente publicado na revista Época, o historiador Gabriel Trigueiro mostrou como a reação a Trump fez renascer um forte movimento socialista —no sentido europeu, social-democrata— nos Estados Unidos.

Lideranças como o senador Bernie Sanders e a deputada recém-eleita Alexandria Ocasio-Cortez já desafiam a direção do Partido Democrata, ainda formada por herdeiros da esquerda “neoliberal” dos anos Clinton.

A esquerda neoliberal é a centro-esquerda que defende a utilização dos mecanismos de mercado para atingir objetivos social-democratas, quando for possível utilizá-los. É a turma que foi hegemônica no Partido Democrata americano durante a era Clinton e no trabalhismo britânico durante a era Blair.

Pois agora um dos expoentes da esquerda clintonista parece disposto a abrir negociações e ceder espaço à nova guarda.

Em entrevista ao site americano Vox, o excelente economista Brad De Long propôs que economistas da esquerda “neoliberal” dialoguem e se deixem liderar por seus companheiros à esquerda, ao menos nesta fase atual.

Gaudêncio Torquato*: A liturgia no brejo

- Folha de S. Paulo

Um presidente deve separar o público do privado

Tem motivos o presidente da República para se indignar com uma cena escatológica, dessas que assustam o interlocutor que a ela teve acesso? Sim, a indignação é uma reação natural a quaisquer atitudes ou cenas que fogem ao senso comum e que, pelo inusitado dos fatos nelas descritos, entram no dicionário das aberrações. Tem motivos o mandatário número um do país para passar adiante a cena que tanto o indignou, massificando a imagem junto a mais de 3,4 milhões de seus seguidores em uma rede social? Não.

Jair Bolsonaro espalhou junto ao contingente que o segue em uma das redes sociais o vídeo em que um homem dança sobre um ponto de ônibus após introduzir um dedo no próprio ânus, seguido de outra cena em que um deles abre a calça e urina na cabeça do outro. Sob o argumento de “expor a verdade” à população, acentua: “É isto que tem virado muitos blocos de rua no Carnaval brasileiro”.

A atitude do capitão reformado gera inconvenientes. Permite a milhares de seguidores, entre os quais jovens, acesso a um vídeo que não teria sido visto por eles. Que impacto a imagem causaria a esse público?

Usar o Twitter como meio oficial de transmissão de informações, diretrizes e interpretação pessoal sobre o cotidiano constitui uma decisão incompatível com a posição de um dirigente de nação.

O poder, como se sabe, é exercido por um conjunto apreciável de mandatários e participantes das estruturas do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Todos integram a esfera governativa, mas o comandante do Poder Executivo é quem detém o cargo de maior proeminência. Guia-se por um liturgia, um exercício que o obriga a cumprir ritos, cerimônias e atos variados, não podendo a eles escapar sob pena de gerar desvios na rota que lhe é imposta.

Leandro Colon: Não há mais tempo para erros no governo Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Planalto jogou cinco semanas no lixo e precisa colocar bola no chão para reforma

Com a posse do novo Congresso, em 1º de fevereiro, criou-se a expectativa de que o jogo para o governo de Jair Bolsonaro começaria para valer depois de um janeiro bem morno, de escassas medidas.

Fevereiro deveria ter sido o mês para o Planalto estabilizar uma base parlamentar aliada decente, ajustar os pontos frágeis de sua articulação política, após a entrega da reforma da Previdência, e entrar em março tinindo para o que der e vier.

Não foi o que vimos. O governo meteu os pés pelas mãos e jogou cinco semanas no lixo. Encalacrou-se na crise dos laranjas do PSL, que levou à queda de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência e transformou o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, em um morto-vivo na Esplanada, apenas à espera de uma demissão inevitável.

No Congresso, sobraram críticas à capenga articulação política governista, visivelmente confusa e sem uma estratégia desenhada para garantir um apoio mínimo para o pontapé da reforma previdenciária.

Bolsonaro botou gasolina no fogaréu das redes sociais ao compartilhar em sua conta pessoal um vídeo obsceno no último dia de carnaval.

Vinicius Mota: Governo Bolsonaro está fadado à metamorfose

- Folha de S. Paulo

Redução do núcleo ideológico é apenas uma de várias fases pelas quais vai passar a gestão, recheada de instabilidade


É cedo e arriscado dizer que o presidente da República absorveu lições da série de atritos iniciais da gestão. Observam-se sinais nesse sentido.

Após Jair Bolsonaro ter atuado como líder da oposição à reforma da Previdência, ter enfiado o pé na jaca nos tuítes carnavalescos e ter cometido ato falho sobre o papel dos militares na democracia, nota-se um esforço de correção de rota.

Nunca foram tão frequentes suas manifestações pessoais pela mudança previdenciária. Ter aparecido sob escolta de dois generais na sessão ao vivo da quinta (7) pareceu uma cautela contra a tendência à autoimolação da retórica presidencial.

Na Educação, ensaia-se um expurgo dos meninos que queriam brincar de talibãs com os estudantes brasileiros. Algo parecido ocorrera nas relações exteriores. As que envolvem custos e riscos palpáveis foram logo subtraídas do chanceler viajandão.

Nestes 70 dias, a primeira escolha de Bolsonaro diante de uma crise tem sido a caserna. Se há problema, busca nos militares a solução. Foi reduzida, embora esteja longe de ter sido anulada, a influência da banda lunática, que esperneia.

Marcus André Melo*: Os barões da federação e as reformas

- Folha de S. Paulo

Presidente e governadores se enfraqueceram gerando déficit de coordenação

Para muitos analistas os governadores jogarão papel fundamental na reforma da Previdência: muitos estados estão quebrados e eles/elas ganharão e muito com as reformas. Para além da questão fiscal, podem beneficiar-se da transferência dos custos reputacionais de reformas impopulares para o governo federal (processo conhecido na ciência política como “blame shifting”).

Por outro lado, a vulnerabilidade de muitos executivos estaduais torna-os potencialmente presa fácil na troca de ajuda federal por apoio político às reformas. Mas as expectativas de protagonismo dos governadores estão ancoradas em uma percepção equivocada sobre seu papel nas relações executivo-legislativo. Os governadores podem ter interesse nas reformas, mas isso não implica que tenham a capacidade de influenciar de forma decisiva o processo legislativo através de bancadas estaduais.

A percepção equivocada deve-se à resiliência da imagem dos governadores como barões da federação que refletia o status quo dos anos 80 e 90, mas que mudou radicalmente nas duas últimas décadas.

Com a volta das eleições diretas para governadores em 1982, os executivos estaduais adquiriram inédita legitimidade porque eram os únicos atores diretamente escolhidos pela população. Detinham também autonomia fiscal e financeira e converteram-se em protagonistas da barganha política da transição (vide Covas, Tancredo, Arraes ou Pedro Simon).

Bruno Carazza*: O triste cenário das mulheres na política

- Valor Econômico

Antes de discutir cotas, precisamos nivelar o jogo a todos

Nas eleições de 2018, o Partido Progressista (PP) baixou uma resolução disciplinando a distribuição do dinheiro recebido do Fundo de Campanha. Entre as diversas regras - algumas bem interessantes, como a que concedia um bônus para premiar a fidelidade partidária -, uma aberração: candidatos homens deveriam fornecer nome e dados bancários de mulheres para a sigla conseguir cumprir a cota feminina de 30% determinada pelo TSE.

A prevalência de uma lógica estritamente masculina na política, explícita nessa regra interna do PP, parece ser dominante entre os partidos brasileiros, como atesta o escândalo do laranjal do PSL. Não é à toa que o Brasil seja um dos países com maior desigualdade de gênero na política.

De acordo com a Inter Parliamentary Union, nós ocupamos a 133ª posição no ranking mundial de participação feminina no Parlamento. É verdade que estamos melhorando: o percentual de mulheres na Câmara dos Deputados subiu de 10,1% para 15% de mulheres. Na comparação internacional, porém, temos o pior indicador das Américas.

Nas Assembleias Legislativas a situação não é diferente: apenas 15,5% das vagas foram ocupadas por mulheres. O Amapá, com 33,3% de deputadas estaduais, é o único Estado brasileiro que supera o patamar de 30%, considerado o mínimo razoável pelos especialistas em igualdade de gêneros na política.

Cacá Diegues: Confetes tardios

- O Globo

Até semana passada, brincávamos nas ruas o carnaval. Mesmo que fossem apenas reações de mentes protegidas pela data, contra aquilo que vivemos todos os dias. Não se tratava de esquecer o mundo como ele é; mas de lembrar como ele podia ser. A vida se tornou, por pouco tempo, uma sólida memória de nós mesmos.

Tínhamos só que pensar no quefazer coma lembrança dos afogados nas barragens rompidas, dos meninos queimados no contêiner tornado alojamento, do helicóptero em cham as como jornalista exemplar, dos que rolaram morro abaixo com suas casas na lama da chuva, dos tuítes intempestivos do presidente, de tanta coisa.

Se você faz circular uma cena como a dos homens pornográficos no carnaval de São Paulo, queira ou não está sendo conivente com ela. Tanto que a dupla aproveitou a divulgação e sua repercussão, fazendo passar um cínico manifesto em defesa do que fizeram, como se aquilo fosse uma “mensagem de artistas”.

Agora vamos supor. Suponha, por exemplo, que o ato sobre palco improvisado acima de todas as cabeças, sem nada a ver com o bloco que desfilava, tenha sido mesmo encenado por artistas pornô, como se declaram no tal manifesto. Suponha que tenham sido contratados por um terceiro que registrou a cena, mas não aparece no vídeo. E que esse personagem estava no lugar da selfie que os protagonistas deveriam fazer, se fosse projeto deles divulgar seu horror particular. Por que então não divulgaram, eles mesmos, nas redes sociais, o que o presidente acabou fazendo?

E mais uma coisa que não me ficou clara, porque não foi dita por ninguém: onde o presidente encontrou o vídeo? Viajando pela internet? Ou foi enviado diretamente a ele? Suponha que sim: então por quê?

Cuide de nós todos, presidente, os que votaram e os que não votaram no senhor, é disso de que precisamos. Vamos nos empenhar na solução para a Previdência e em mais coisas importantes para nossas vidas. Deixe o exibicionismo dos atores pornô pra lá, já sabíamos que isso não presta. Concordando ou não com o dito nos blocos e nas escolas, o carnaval deste ano foi um dos mais politizados dos últimos tempos, e temos que comemorá-lo. Pois é uma prova de que o povo está pensando no Brasil, além da diversão. Isso não é bom pra todo mundo?

Fernando Gabeira: O fim da picada

- O Globo

O Brasil é surpreendente, mas jamais pensei numa situação dessas: um presidente postar um vídeo pornográfico

Passei o carnaval entre Juazeiro, na Bahia, e Juazeiro do Norte, no Ceará. De Juazeiro a Juazeiro. Uma bela viagem, sugestão do fotógrafo Orlando Brito.

Apesar da intensidade do trabalho, tentei acompanhar o carnaval brasileiro. Confesso que, nessa época, pouco tenho a ler nos jornais. Não me levem a mal, mas falam de pessoas que não conheço, fazendo confissões que não me interessam. Sou um pouco fora do ar em certos temas do show business.

Sinto-me como se estivesse nos versos de Manuel Bandeira: “Lá a existência é uma aventura/ De tal modo inconsequente/ Que Joana a Louca de Espanha/ Rainha e falsa demente/ Vem a ser contraparente/ Da nora que nunca tive.”

Nas noites do sertão, foi possível ler a análise que Milan Kundera faz do romance “A montanha mágica”, de Thomas Mann.

Tem tudo a ver com uma certa decadência no ar; baixarias, memes sobre dependência química, falta de compaixão com avô que perde o neto.

O livro de Thomas Mann é sobre o confronto de ideias. Brilhantes intelectuais terminam querendo se matar. Os outros personagens também mergulham num clima de irritação e agressividade.

O que o autor parece revelar é que o confronto de ideias é apenas uma máscara que esconde as emoções irracionais e violentas.

Kundera afirma sobre “A montanha mágica”: “É um grande romance de ideias mas ao mesmo tempo uma terrível dúvida sobre as ideias, um grande adeus à época que acreditou nas ideias e na sua faculdade de dirigirem o mundo.”

O romance se passa nas vésperas da Primeira Guerra. Depois disso, vieram o fascismo, o nazismo e o comunismo, que, no fundo, afirmam a mensagem da “Montanha mágica”, que se desenrola em Davos, na Suíça.

Envolto nesse clima de desalento com o poder das forças obscuras e irracionais, chego ao Rio para seguir as notícias sobre o aumento da violência, um tema importante para nós e sempre muito destacado na imprensa internacional. Só aí soube do vídeo lançado na rede por Bolsonaro.

Demétrio Magnoli: O Itamaraty, segundo Ernesto

- O Globo

Durante quase 14 anos, nos governos lulopetistas, o diplomata Paulo Roberto de Almeida experimentou o que chama de “exílio involuntário”. Excluído pela chefia de qualquer atividade, instalou seu “escritório de trabalho” numa mesa da biblioteca do Itamaraty. O intervalo entre um “exílio” e outro durou menos de dois anos. Exonerado da direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ele se prepara para seguir rumo à Sibéria: “Vou ter de voltar à biblioteca para poder trabalhar”. O bolsonarista Ernesto Araújo imita Celso Amorim, chanceler lulista, rebaixando o Itamaraty ao estatuto de ferramenta de uma facção.

“Personalidades autoritárias não apreciam espíritos libertários como o meu”. O diagnóstico aplica-se tanto a Araújo como a Amorim. Nos tempos do segundo, ondas de expurgos afastaram dezenas de diplomatas experientes que não aceitavam a condição de sabujos do ministro de turno. Hoje, a pretexto de promover jovens diplomatas, o primeiro cerca-se de bajuladores dispostos a aplaudir com igual fervor suas asneiras retóricas e suas insanas iniciativas de política externa. A corrupção moral não figura no Código Penal, mas suas consequências são tão danosas quanto a corrupção política.

Na democracia, uma fronteira nítida separa a conquista do governo da colonização partidária do Estado. O bolsonarismo aprendeu com o lulopetismo a ultrapassar a linha divisória, excluindo os “espíritos libertários” para não ouvir vozes dissonantes. Daí, nasce o governo de facção, isolado numa concha de certezas ideológicas, protegido da crítica por espessos cordões de puxa-sacos. A demissão de Almeida é mais um sintoma de que a eleição presidencial produziu um giro de 360 graus, colocandonos de volta no ponto de partida.

Crise renitente: Editorial / Folha de S. Paulo

A despeito da reforma da CLT e do fim da recessão, informalidade cresce no mercado de trabalho do país

Mesmo finda a recessão e apesar da muito discreta melhoria no mercado de trabalho, o número de trabalhadores do setor privado sem registro formal ainda mostrou crescimento neste início de ano.

Trata-se aqui não apenas dos empregados sem carteira assinada, mas também de empregadores e trabalhadores por conta própria sem inscrição no CNPJ. Esse é um dos aspectos do que se chama informalização, que também pode ser abordada pela proporção dos trabalhadores que contribuem para a Previdência Social.

Seja qual for o enfoque, o quadro geral é de precarização, de manifestos sintomas de fraqueza econômica e preocupantes efeitos sobre a capacidade e a intenção de consumir. Obviamente, tal situação degradada tem também impacto sobre a receita tributária, a previdenciária em particular.

Desde o início de 2016, das profundezas da recessão, o número de pessoas ocupadas cresceu apenas 1%. No setor privado, o resultado se mantém negativo em 1,9%. Entre os celetistas, a baixa chega a 7%, segundo dados do IBGE.

A quase estagnação econômica, a capacidade ociosa, os custos de contratação e a incerteza decerto têm grande peso na explicação dos péssimos indicadores.

Mas é possível também que, considerados perdas e ganhos, parte dos trabalhadores simplesmente opte pelo regime autônomo e, muitas vezes, totalmente informal.

A redução do número de pessoas empregadas e a degradação da qualidade dos postos de trabalho abatem de modo considerável a receita previdenciária.

‘Compliance’ dos partidos: Editorial / O Estado de S. Paulo

Cabe aos partidos uma parte bastante significativa da responsabilidade pela crise moral que o País atravessa. E tanto as legendas ditas tradicionais como os políticos de carreira sentiram nas urnas, na forma de derrotas acachapantes para novatos em geral, todo o peso do profundo desapreço dos eleitores pelas práticas deletérias que conspurcaram a atividade política nos últimos anos. Por essa razão, essas agremiações e seus caciques deveriam ser os mais interessados em mudar sua imagem perante os cidadãos. No entanto, reportagem recente do Estado constatou que nenhum dos partidos que têm políticos investigados, denunciados ou condenados pelos mais diversos crimes puniu qualquer desses parlamentares.

Os casos não chegam nem mesmo a mobilizar o chamado “conselho de ética” dessas legendas. Considerando que 160 deputados e 38 senadores estão com alguma pendência judicial – as acusações incluem corrupção, lavagem de dinheiro, assédio sexual, estelionato, improbidade administrativa com dano ao erário e enriquecimento ilícito –, é possível dimensionar a leniência dos partidos com correligionários problemáticos.

O único episódio em que o “conselho de ética” de um partido foi acionado foi o do senador Acir Gurgacz, do PDT de Roraima. Condenado a quatro anos e seis meses de prisão em regime semiaberto por crime contra o sistema financeiro, o senador foi considerado inocente por seus pares no “conselho de ética” do PDT. Ou seja, para o PDT, um correligionário condenado pela Justiça, malgrado ter tido todas as garantias de ampla defesa, não merece qualquer punição por parte do partido. A explicação, dada pelo presidente do PDT, Carlos Lupi, é singela: “Mergulhei no caso do senador Acir, que foi o único condenado por um empréstimo feito pela empresa da família dele. Não houve corrupção nem dolo. Por unanimidade, entendemos que ele é inocente e que o julgamento foi equivocado”.

Comemorações perdidas: Editorial / Valor Econômico

Entre um tuíte polêmico e outro, na última semana, o presidente Jair Bolsonaro usou sua rede social preferida também para comemorar o resultado primário positivo registrado pelo governo central, de R$ 30,2 bilhões em janeiro passado. O superávit elevado não é algo mesmo a ser desprezado, mas Bolsonaro exagera, e muito, ao usar o dado como uma suposta prova de que sua gestão já está mudando a cara das contas públicas brasileiras.

"Nós estamos mudando o Brasil! Resgatar o crescimento de nossa economia é um dos primeiros passos rumo à prosperidade. Se tudo correr como planejamos, avançando nas mudanças necessárias, o Brasil aumentará consideravelmente seus investimentos. Ganha a população brasileira", disse o presidente em sua postagem no Twitter.

A realidade é que o número forte verificado em janeiro não tem qualquer relação com a nova gestão do país, ainda que o chefe da Economia, o ministro Paulo Guedes, esteja, desde a campanha eleitoral, prometendo zerar o déficit primário neste ano.

Os dados de janeiro refletem, como admitiu o próprio secretário do Tesouro Nacional, Mansueto Almeida, na entrevista coletiva para comentar aquele resultado, uma sazonalidade favorável para o período. Lembrou que o número tradicionalmente bom do mês "não significa coisa nenhuma, pois o que interessa é o resultado do ano".

É vital avançar na proteção às mulheres: Editorial / O Globo

Lei Maria da Penha e delegacias especializadas são instrumentos importantes, mas não bastam

Os números costumam ser contundentes, mas, por trás deles, existem rostos, em geral profundamente marcados. Como o da paisagista Elaine Caparroz, de 55 anos, espancada durante quatro horas em seu apartamento, na Barra da Tijuca, em 16 de fevereiro, por Vinícius Serra, de 27, que está preso por tentativa de feminicídio.

O caso teve enorme repercussão, mas é só um exemplo entre centenas. Menos de um mês depois, outras histórias dramáticas ocupam o noticiário. Como a da vendedora Jane Cherubim, de 36 anos, espancada e abandonada numa estrada em Dores do Rio Preto, no Espírito Santo, no último dia 4. O principal suspeito é o namorado, Jonas Amaral.

Não se sabe se esses casos estão tendo maior visibilidade agora devido a uma tomada de consciência ou porque de fato eles estão aumentando. Mas pouco importa. Não faltam números para traduzir a gravidade e o horror da situação. Mais de 500 mulheres são vítimas de violência a cada hora no país, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O perigo está por toda parte. No ambiente real ou virtual. Como mostrou reportagem publicada sexta-feira, no GLOBO, dentro da plataforma Celina — que reúne conteúdo sobre mulheres, gênero e diversidade —, uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública com o Datafolha revelou que casos de violência contra a mulher praticados via internet vêm aumentando: de 1,2 % das 1.051 entrevistadas em 2017 para 8,2% das 1.092 que responderam à enquete este ano.

Eduardo Escorel: Antídoto para o Carnaval – injustiças humanas

-  Revista Piauí

Com premissa louvável, documentário sobre os crimes do franquismo tem narrativa pouco coesa e informações em excesso

“Este filme é para todos que acreditam no impossível!” Com essa dose alta de mistificação Elizabeth Chai Vasarhelyi, codiretora de Free Solo, encerrou seu agradecimento ao receber com seu parceiro Jimmy Chin, em 24 de fevereiro, o Oscar de Melhor Documentário de Longa-Metragem.

Diante de milhões de telespectadores, Vasarhelyi preferiu enfatizar uma noção mística – a crença em milagres –, em vez de repetir sua preocupação ética por terem exposto o solista livre (free soloist) Alex Honnold e a equipe de filmagem ao risco de morrer. Confirmava-se assim o oportunismo, assinalado na coluna da semana passada, subjacente à estratégia de marketing do lançamento de Free Solo, baseada na exploração do dilema entre desempenho perfeito e morte.

A semana anterior ao Carnaval teve início, portanto, com os ecos de boas intenções travestidas de proselitismo místico, postura lamentável vinda de qualquer documentarista, ainda mais de uma dupla premiada e de tamanho sucesso comercial quanto Vasarhelyi e Chin.

Na mesma toada enganadora, dois dias depois, o presidente Bolsonaro homenageou “nosso general Alfredo Stroessner”. Responsável durante 35 anos (de 1954 a 1989) por prisões arbitrárias, torturas e desaparecimentos, o ditador paraguaio teria sido, nas palavras do presidente, “um homem com visão, um estadista que sabia perfeitamente que seu país, o Paraguai, só poderia continuar progredindo se tivesse energia”. Faltou mencionar a corrupção, pedofilia, e os estupros praticados por Stroessner, conforme a revista Época divulgou.

Vindo de quem veio, a apologia do ditador, falseando o passado, não deveria causar o menor espanto. Merece registro, porém, pois dias depois dessa apologia ao autoritarismo, outra ditadura, a do general Francisco Franco, começou a ser posta em questão na tela dos nossos cinemas.

Marcada para quinta-feira, dia 28, a estreia do documentário espanhol O Silêncio dos Outros parecia oferecer ao mesmo tempo um antídoto eficaz para a folia invasiva do Carnaval e um sinal de alerta diante das tapeações dos dias anteriores. Inesperado foi descobrir que o filme adere sem ressalvas à expectativa duvidosa de obter o que parece impossível.

William Shakespeare: Há quem diga

Há quem diga que todas as noites são de sonhos...
Mas há também quem diga nem todas...
Só as de verão...
Mas no fundo isso não tem muita importância...
O que interessa mesmo não são as noites em si...
São os sonhos...
Sonhos que o homem sonha sempre...
Em todos os lugares, em todas as épocas do ano...
Dormindo ou acordado...