domingo, 31 de março de 2019

Opinião do dia: Democracia não exalta ditaduras

“Ao determinar ao Ministério da Defesa a retomada das comemorações relativas ao golpe militar de 31 de março de 1964, o presidente Bolsonaro reafirmou a sua obsessão em dividir o Brasil em dois lados – esquerda e direita, patriotas e não patriotas, bons e maus.

O esforço de reconciliação nacional proporcionado pela Lei da Anistia e pela Constituição Cidadã de 1988 é ignorado e, ao invés de o poder público apostar em pedagogias de unidade, leva aos cidadãos e às famílias preconceitos e valores de ódio e intolerância.

No dicionário do presidente, conceitos como paz, tolerância, debate, liberdade, direitos inalienáveis, humanismo são substituídos por violência, arma e sangue, se necessário. Projeto para o futuro, comum a todo partido democrático, dá lugar na concepção do presidente a projetos para o passado.

Traz à baila interpretações a partir de visões do anacrônico antiglobalismo e alucinações de um suposto marxismo cultural que engole a tudo e a todos, como um buraco negro do qual nem a luz escaparia.

Desenvolvimento, reformas, incentivo ao empreendedorismo, reconhecimento do livre mercado, políticas públicas, justiça social, estado eficiente e não perdulário – eis uma pauta que unifica o Brasil. Ditaduras ou governo que as elogiam podem até conseguir alguns sucessos econômicos conjunturais, mas não dão estabilidade e a segurança jurídica que uma Nação demanda em sua marcha por mais riqueza, democracia e felicidade.

Temos o respeito histórico pelas Forças Armadas brasileiras e reconhecemos sua luta e dedicação pela integralidade do nosso território e na defesa dos interesses nacionais.

Entretanto, é forçoso reconhecer que o regime inaugurado em 1964, e que perdurou por 21 anos, foi um equívoco histórico, resultado de embates internos nas Forças Armadas que remontam ao tenentismo na década de 1920, à emergência dos países socialistas com a revolução russa de 1917, à guerra fria que se instalou no mundo a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, ao conceito de segurança nacional formulado pela hegemonia norte-americana. Ao contrário do que se afirma, não veio para impedir a ascensão ao poder dos comunistas – uma falácia, pois as correntes socialistas nunca tiveram no Brasil força para implantar unilateralmente seus projetos.

O golpe de 1964, como ocorreu em muitos países da América Latina e em outras partes do mundo, apenas obedeceu a um alinhamento cego ao poder americano e de suas corporações econômicas. Rasgou a Constituição, fechou o Congresso, forçou ao exílio dezenas de brasileiros, censurou, prendeu, torturou, matou, foi ineficaz no combate à corrupção, gerou privilégios não republicanos.

Ao reconhecer os equívocos das Forças Armadas, também reconhecemos os equívocos de modo geral das esquerdas brasileiras, particularmente daqueles segmentos avessos à democracia que acreditaram ser possível derrubar o regime por meio de ações violentas e armadas. Felizmente, caminho que nunca foi seguido pelas formações políticas que estão na raiz do PCB/PPS e, agora, Cidadania.

É do reconhecimento de equívocos históricos que se constrói a unidade de um país, dentro da pluralidade das ideias e da alternância democrática de poder.

É legítimo a todos discutir fatos históricos, à luz de suas concepções e conceitos. É deplorável e inconstitucional o Executivo conclamar instâncias e instituições republicanas a exaltar fatos que colidem com o regime democrático.

É grave quando um presidente da República insiste em governar um país com revanchismos e por meio de fantasmas e não pela Constituição.”

Elizane Gama, Roberto Freire, Daniel Coelho
Líder do Cidadania no Senado – Presidente do Cidadania – Líder do Cidadania na Câmara

Sergio Fausto*: Sobre a admiração dos Bolsonaros por Pinochet

- O Estado de S.Paulo

O regime do general chileno foi não apenas uma ditadura, mas das mais brutais da região

Os presidentes da Câmara e do Senado chilenos, Ivan Flores e Jaime Quintana, recusaram convite para comparecer a jantar com Jair Bolsonaro organizado pelo presidente Sebastián Piñera. Incivilidade? De modo algum. Bolsonaro jamais poupou elogios ao ditador Augusto Pinochet. Razão de sobra para não comparecerem ao encontro.

Em sua recente visita a Santiago, o presidente brasileiro mostrou-se mais cauteloso, disse que não estava ali para discutir Pinochet, mas não perdeu a ocasião de uma vez mais pôr em dúvida que no Cone Sul (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai) tenha havido uma série de regimes ditatoriais liderados por militares nas décadas de 1960 a 1980. Falsificação histórica comparável à de chamar democrática a Venezuela chavista.

O regime de Pinochet foi não apenas uma ditadura, mas uma das mais brutais da região. Por quase duas décadas manteve fechado o Congresso, banidos todos os partidos políticos, proscritos todos os sindicatos de oposição, controlado o Poder Judiciário e a imprensa. Pinochet presidiu o Chile sem jamais ser submetido ao teste das urnas. Quando teve de enfrentá-lo, no plebiscito de 1988, o povo chileno disse-lhe não e a ditadura viu-se obrigada a reconhecer que havia chegado ao fim.

Depois do retorno do Chile à democracia, duas comissões – uma presidida por um respeitado jurista e político de centro, Raúl Retting, e outra pelo então bispo auxiliar emérito da Arquidiocese de Santiago, Sergio Valech – deram números tão precisos quanto possível à sistemática violação de direitos humanos durante a ditadura pinochetista: cerca de 30 mil pessoas presas e submetidas a sevícias de toda sorte e 3 mil mortas ou desaparecidas em centenas de centros clandestinos de detenção e tortura.

A matança começou logo após o golpe de 11 de setembro de 1973, com a decretação do “estado de guerra” e a organização das chamadas caravanas de la muerte. Sob o comando do general Sergio Stark, destacamentos militares puseram em marcha a execução sumária de uma centena de líderes políticos e sindicais ligados ao governo deposto de Salvador Allende. Depoimentos feitos anos mais tardes por alguns dos participantes relatam fuzilamentos seguidos de esquartejamento, com requintes de crueldade, e desaparição dos corpos.

Roberto Romano*: Auto de fé e linchamento

- O Estado de S.Paulo

... Que não joguem livros à fogueira, como Savonarola, sobretudo o volume da Constituição

Quem deseja salvar a Pátria deve pesar as próprias forças e fraquezas. Caso contrário pode acabar nas fogueiras. Após impor em Florença um regime de medo para vencer os corruptos, Savonarola foi às chamas sob vaias. No afã de eliminar todo o luxo, o frade jogou livros ao fogo e abriu sendas para fatos espantosos do século 20 na Alemanha. Profeta cuja arma era o terror, ele não contou com o cansaço popular em sua higiene política.

Quem condena sem as regras do Direito morre sem direitos. Maquiavel fala contra os justiceiros: a corrupção é fato constante mesmo entre pessoas educadas para o bem. “Em todas as cidades e povos há e sempre houve os mesmos desejos e humores, sendo fácil para quem examina com diligência o passado prever o futuro de toda república e aplicar os remédios empregados pelos antigos ou, caso não se encontre nenhum usado por eles, imaginar outros novos segundo os acontecimentos” (Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, livro I).

Ética é o sistema de atitudes e hábitos que se tornam “naturais”. O povo adere a valores positivos ou negativos. Ainda segundo Maquiavel, para mudar hábitos arraigados o governante deve fingir que o costume permanece mesmo quando a sua mudança é querida nos palácios. “Quem deseja reformar o estado de uma cidade, ser aceito e manter a satisfação de todo mundo, necessita manter pelo menos a sombra dos modos antigos, de tal jeito que possa parecer ao povo que não houve mudança nas ordens, embora as novas sejam inteiramente distintas das velhas. A grande maioria dos homens se contenta com as aparências como se fossem realidades e amiúde se deixa influenciar mais pelas coisas que parecem do que por aquelas que são” (Discursos, livro I).

Gabriel Naudé usa a mesma tese para justificar os golpes de Estado.

No Brasil surgem fogueiras acesas por êmulos de Savonarola. Real ou imaginária, a corrupção é amaldiçoada por hábito, não pelos fatos. Quem estuda o empreendimento italiano chamado Mãos Limpas sabe do que falo. De tanto exorcizar a corrupção, a massa hipnotizada se contenta em moer pessoas, sem buscar novas saídas políticas e jurídicas. Brasileiros em massa assumem costumes hostis à democracia e ao Estado de Direito. Um deles é o vezo de atacar, antes do julgamento legal, reputações de acusados.

Daniel Aarão Reis: Fantasmas à direita e à esquerda

Ilustríssima / Folha de S. Paulo

À luz de determinação de Bolsonaro para que o golpe de 1964 seja comemorado, historiador questiona mitos sobre a ditadura militar e analisa a força do autoritarismo na sociedade brasileira

A orientação do presidente Jair Bolsonaro para que unidades militares comemorem neste domingo o golpe de 31 de março de 1964, que iniciou a ditadura no país, suscitou polêmicas que merecem análise mais equilibrada, evitando-se “histórias oficiais” à direita e à esquerda.

Vamos por partes. Em fins de março de 1964 instaurou-se no país uma ditadura através de um golpe de Estado. Trata-se de um fato objetivo. Um presidente legítimo, João Goulart, foi deposto pelas armas, ao que se seguiu um regime de exceção, em que o direito da força prima sobre a força do direito. Em outras palavras: em que a vontade do poder se sobrepõe, ou nega, à existência das leis, (re)criando legislações a seu bel-prazer.

Entretanto, a ditadura não se tornou vitoriosa apenas pela ação militar. Foi um golpe civil-militar. Houve apoio social, que se exprimiu nas Marchas da Família com Deus e pela Liberdade no país, na força das tradições conservadoras e autoritárias.

Naquele momento encontramos as raízes que explicam, ao menos em parte, a ascensão atual da extrema direita no país. Além disso, dirigentes civis, políticos, empresários e religiosos participaram do golpe, além instituições, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e as principais mídias.

A simpatia suscitada pelo golpe era consequência do medo de uma ditadura comunista. A chamada Guerra Fria, entre os EUA e a União Soviética, estava no auge. Na América Latina, a Revolução Cubanaacontecera. No Brasil, um amplo movimento reformista propunha mudanças estruturais, visando a “democratização da democracia”.

Aparentemente, havia ali um equilíbrio de forças, contribuindo para o acirramento das contradições.

Assim, a vitória fulminante do golpe de 1964 foi uma surpresa, mesmo para os golpistas mais otimistas.

Como compreender a derrota das esquerdas? Seria resultado de vacilações de suas lideranças mais importantes, que temeriam enfrentamentos imprevisíveis? De organizações populares muito dependentes do Estado e de suas iniciativas? De dúvidas de militantes acerca de engajar-se ou não numa luta decisiva para defender aquela República? Um pouco de tudo isto? O fato é que, até hoje, a derrota das esquerdas carece de melhor compreensão.

Muitos que apoiaram a instauração da ditadura a desejavam de curta duração. Ela eliminaria as forças de esquerda e as eleições do ano seguinte se realizariam. Aí houve uma surpresa. Os chefes militares apropriaram-se do poder por longo tempo, afirmando a preeminência indisputada das corporações (Exército, Marinha e Aeronáutica). Daí ser exato conceituar o regime como uma ditadura militar.

O primeiro governo ditatorial, chefiado pelo general Castelo Branco, apostou numa orientação liberal. A ideia era enterrar as heranças varguistas e a cultura política nacional-estatista. A aposta foi perdida. A propósito deste governo, brotou a formulação de que teria sido uma ditadura branda, uma “ditabranda”.

Elio Gaspari*: 1964 é uma unha encravada

- Folha de S. Paulo / O Globo

O golpe se tornou hoje uma espoleta disparadora de radicalismos

Hoje, há 55 anos, um general em fim de carreira rebelou-se em Juiz de Fora (MG), onde comandava mesas. Em pouco mais 24 horas o governo constitucional do presidente João Goulart estava no chão. Em 1944 ninguém discutia o golpe militar de 1889, e em 1985 não se discutiu a deposição do presidente Washington Luiz. Em 2019 discute-se 1964 porque ele virou um par de unhas encravadas nos pés da direita e da esquerda, uma espoleta disparadora de radicalismos. Na sua versão recente, Jair Bolsonaro (PSL) falou em "comemorar" a data. Depois corrigiu-se, com um "rememorar".

Bolsonaro tem uma visão pessoal da história. Ele disse que "não foi uma maravilha regime nenhum. E onde você viu uma ditadura entregar pra oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil. Então, não houve ditadura."

Nesse caso, também não houve ditaduras no Chile e na Espanha. De certa maneira, não teria havido ditadura nem na União Soviética.

A deposição de Jango em 1964 foi um golpe que desembocou numa ditadura constrangida que escancarou-se em 1968. Goulart foi apeado por uma revolta militar vitoriosa e pelo presidente do Congresso, que declarou a vacância do cargo enquanto seu titular estava no Brasil. A posse do presidente da Câmara, no meio da madrugada de 3 de abril, foi enfeitada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, mas não tinha amparo na lei. (Dilma Rousseff foi deposta de acordo com o devido processo legal.)

A deposição de Jango foi pedida e saudada por quase toda a grande imprensa e por multidões que foram à rua festejando-a. Havia mais povo na Marcha da Família realizada em São Paulo no dia 19 de março do que no comício janguista do dia 13.

Se Jango foi deposto para que fosse preservado o regime democrático, esse sonho durou uma semana e se acabou quando os chefes militares baixaram um Ato Institucional que cassou mandatos, suspendeu direitos políticos e demitiu juízes, generais e servidores civis.

A ditadura foi desafiada por um surto terrorista e reagiu instituindo a tortura e a execução de dissidentes como política de Estado. A isso Bolsonaro chama de "probleminhas" e o general Hamilton Mourão, de "guerra".

A ditadura brasileira está mal digerida porque de um lado alimentam-se teorias como a dos "probleminhas" e a da "guerra". De outro, chamam-se ações terroristas de "luta contra a ditadura", quando o objetivo de algo como mil militantes de organizações de esquerda era a implantação da ditadura deles.

Aqui vão dois casos ilustrativos dessas duas fantasias:

Míriam Leitão: Direita festiva em negação

- O Globo

É triste ver as Forças Armadas ainda em negação, 55 anos depois. Já Bolsonaro é um caso clínico com sua reverência a ditadores

Hoje é 31 de março. Podia ser um dia qualquer, mas o presidente Jair Bolsonaro o transformou em mais um ponto de atrito, desgaste e divisões no país. Quando o presidente deu a ordem para as “comemorações devidas”, ele reabriu feridas e incomodou até os militares. Eles tentaram encontrar um tom, na ordem do dia e nos eventos, que reafirmasse sua versão sobre os fatos históricos, mas que evitasse a provocação sempre presente nas palavras e atitudes do presidente. Não conseguiram, e o general Leal Pujol acabou repetindo que o Exército de nada se arrepende.

Quando alguém festeja um regime autoritário é porque gostaria que ele se repetisse. Essa é a sombra que fica deste momento direita festiva. A apologia da ditadura foi de uma constância monótona na carreira política de Bolsonaro. Dentro dos quartéis, há pessoas que evoluíram o entendimento para considerar que aquele foi um período triste da história do Brasil, que feriu brasileiros, que não pode se repetir. O problema é que a instituição jamais admitiu qualquer erro. Preferiu cristalizar uma versão que impede a necessária e saudável autocrítica.

A nota do ministro da Defesa e dos comandos militares foi branda. Faz uma digressão histórica, passa por eventos, chega à Guerra Fria para dizer que tanto o “comunismo quanto o nazifacismo passaram a constituir as principais ameaças à liberdade e à democracia”. Diz que nesse ambiente é que se inseriu 1964. E conclui que as Forças Armadas apenas atenderam ao clamor popular e da imprensa. No início da nota, descreve de forma tão pálida os tórridos acontecimentos de 31 de março de 64 que eles ficam irreconhecíveis. O que houve, segundo o texto, foi assim: o Congresso em 2 de abril declarou a vacância do cargo de presidente, no dia 11, Castelo Branco foi eleito presidente e tomou posse no dia 15. No fim, diz que, passados 55 anos, o que as Forças Armadas têm a dizer é que elas “reafirmam o compromisso com a liberdade e a democracia, pelas quais têm lutado ao longo da História.”

Hélio Schwartsman: Foi golpe mesmo

- Folha de S. Paulo

Ruptura da ordem constitucional em 1964 não deve ser descrita de outra forma

A mente de cada indivíduo constitui um universo próprio, que opera sob um conjunto único de paixões, condicionamentos e preferências. Além disso, em termos filosóficos, demonstrar a existência de uma realidade externa objetiva e cognoscível permanece um desafio irrealizado. Nesse contexto, em que até o estatuto de verdade das ciências duras se torna precário, o da historiografia desmancha no ar.

Isso significa que devemos abraçar de vez o relativismo? Está autorizado o vale-tudo hermenêutico, que permite descrever o mesmo conjunto de eventos como golpe ou como sucessão dentro da lei? Eu não iria tão longe.

Pragmaticamente, creio que faz sentido supor que palavras e definições conservam valor mais ou menos estável, que acessamos através de uma intersubjetividade comum. Nem todos concordarão sempre com tudo, mas não é desprezível o número dos que aceitam bem aquilo que se convencionou chamar de fatos, isto é, juízos empiricamente verificáveis, como o de que a água ferve a 100°C ao nível do mar.

Janio de Freitas: Todo dia é aquele

- Folha de S. Paulo

O golpe e a ditadura são lembrados todos os dias por cada um de nós

A ordem de comemorar os 55 anos do golpe de 64 seria, vinda de qualquer cabeça antidemocrática, uma provocação tola e de mau observador. No caso de Jair Bolsonaro, a incompreensão da realidade é, claro, muito maior. Inclui até a falta de percepção do que tem sido sua vida.

Comemorar —relembrar com outros— o golpe e a ditadura em data determinada é redundância. Mais do que eventualmente inesquecíveis, o golpe e a ditadura são lembrados todos os dias, por cada um de nós, sem depender de vontade. Os restos de autoritarismo, apodrecidos mas ainda criminosos; os cacos de legislação, os privilégios e impunidades; as discriminações, boicotes e perseguição aos que não rezam pelo conservadorismo; as preocupações e temores com o golpismo latente —tudo isso integra ainda a vida neste país.

Todos os dias são ainda lembranças e dejetos do 31 de março e do mais autêntico 1º de abril, com suas reproduções cotidianas por 21 anos.

Muitos milhares têm a agradecer o que receberam da ditadura, por via direta ou pelas circunstâncias. Por isso mesmo, também para esses beneficiados os dias são derivações do golpe. Entre os beneficiados, está Bolsonaro. Em posição particular e, por ironia, conquistada por meio da ditadura já na incipiente democracia.

Ricardo Noblat: Meninos, eu vi!

- Blog do Noblat / Veja

Resistir é preciso

Sem entender direito o significado da cena, vi uma tropa do Exército cercar o Palácio do Campo das Princesas, no Recife, para depor e prender o governador Miguel Arraes na tarde do dia 31 de março de 1964. Eu tinha apenas 15 anos de idade e era aluno do Colégio Salesiano.

Quatro anos depois, vi 300 soldados da Força Pública de São Paulo prenderem pouco mais de setecentos jovens reunidos em um sítio ermo de Ibiúna durante mais um congresso da proscrita União Nacional dos Estudantes. Eu estava entre eles na condição de aluno do curso de jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco. Chovia muito e fazia frio.

Como repórter da revista “Manchete”, vi o líder comunista Gregório Bezerra ser libertado no Recife no dia seis de setembro de 1969 para ser trocado pelo embaixador norte-americano sequestrado no Rio de Janeiro. Gregório e mais 15 presos políticos foram deportados para o México. No mesmo dia fui preso. O embaixador foi solto no dia seguinte.

Vi ser preso em 1981 o líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva. Ele foi trancafiado em uma sala do DOPS paulista onde 13 anos antes eu fora interrogado e fichado como subversivo. Escrevi sobre a prisão de Lula já como editor assistente da revista “Veja”. E um ano mais tarde, cobri seu julgamento na Auditoria Militar.

Ainda estava na “Veja” quando o último general-presidente do ciclo de 64, João Figueiredo, acovardou-se diante do terrorismo de direita que tentava minar o processo de abertura política do país. Mas foi como chefe de Redação do “Jornal do Brasil” em Brasília que o vi abandonar o Palácio do Planalto pelas portas dos fundos.

Assustei-me ao saber na noite de 14 de março de 1985 que o primeiro presidente civil eleito pelo Congresso, Tancredo Neves, baixara ao hospital a doze horas de tomar posse. Sete vezes operado em menos de um mês, morreu sem ter governado um único dia. Velei seu corpo na madrugada mais triste da história do Palácio do Planalto. E no dia seguinte o segui para o enterro em São João Del Rey.

No final de fevereiro de 1986, testemunhei o entusiasmo das pessoas convocadas por um político de direita, o presidente José Sarney, para vigiar o congelamento de preços lacrando, se necessário fosse, supermercados, e dando voz de prisão a gerentes. Estava no Rio um ano depois no dia em que Sarney foi ali vaiado e apedrejado porque seu plano econômico fracassara.

Assisti ao espetáculo do crescimento de Fernando Collor nos corações e mentes dos brasileiros. Escrevi algumas dezenas de vezes no “Jornal do Brasil” que ele era uma fraude e um perigo para a incipiente democracia do país. Não vi seu governo agonizar e morrer porque trabalhava em Angola no intervalo de uma das mais cruéis guerras do mundo. Fora demitido do jornal cinco dias depois que Collor se elegeu.

Em 1994, vi uma preciosa fonte de informações que sempre cultivara virar presidente da República e deixar de ser fonte. Nem por isso Fernando Henrique Cardoso se tornou refratário a jornalistas. Meus oito anos como Diretor de Redação do “Correio Braziliense” coincidiram com os oito dele como presidente. Ele perdeu o emprego dois meses depois que perdi o meu.

Da Bahia, como Diretor de Redação do jornal “A Tarde”, acompanhei à distância a estreia na função de presidente da República do ex-líder metalúrgico que um dia eu vira preso no DOPS a fumar, nervoso, um cigarro atrás do outro. Voltei a Brasília depois de 11 meses interessado em não perder um único lance da experiência de um governo eleito pela esquerda governar pela direita. E eu que pensava que já vira tudo!

Ainda veria Lula eleger e reeleger sua sucessora, Dilma Rousseff; Dilma acabar cassada pelo Congresso antes de concluir o segundo mandato; seu vice, Michel Temer, assumir o cargo e escapar de duas denúncias de corrupção para só mais tarde ser preso e solto quatro dias depois; Lula mofar numa cela de Curitiba condenado por corrupção e impedido de se candidatar a presidente pela sexta vez; e por fim, ou por ora, um capitão tosco chegar à presidência da República cercado por militares.

Vi o eclipse da liberdade que durou 21 anos. Vi a democracia ser finalmente restaurada. Faço votos para que ela resista aos anos que estão por vir.

Luiz Carlos Azedo: A Redentora, 55 anos

- Nas entrelinhas/Correio Braziliense

“A ideia de que o Estado pode tudo e cabe a ele promover as grandes transformações está sempre acompanhada da certeza de que a sociedade é atrasada e incapaz”

O golpe militar de 1964, autodenominado Revolução Redentora, continua sendo um grande trauma para a sociedade brasileira. Essa conclusão é óbvia, diante das declarações do presidente Jair Bolsonaro e das “rememorações” dos militares nos quartéis. A principal razão é o fato de os protagonistas da crise que levou à destituição do presidente João Goulart, à direita e à esquerda, não terem feito a devida autocrítica. O primeiro passo para isso seria admitirem que o golpe poderia ter sido evitado, porque legitimar suas causas justifica as terríveis consequências de 20 anos de ditadura.

Sim, havia um processo de radicalização política em curso desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Com o interregno do governo de Juscelino Kubitschek, que também enfrentou ameaças de golpe, a crise se aprofundou, depois da surpreendente renúncia de Jânio Quadros, em 1961. O vice-presidente eleito, João Goulart, representava as forças que haviam apoiado o general Henrique Teixeira Lott e foram derrotadas nas eleições de 1960. Jango só tomou posse porque houve uma ampla mobilização popular, liderada por seu cunhado e então governador gaúcho, Leonel Brizola, por meio de uma cadeia de rádios, e mediante o compromisso de governar com o Congresso, que havia adotado o parlamentarismo como regime de governo. Esse era o ponto de equilíbrio, fragilíssimo, que havia. O plebiscito que restabeleceu o presidencialismo, em 1963, rompeu-o, irremediavelmente. Daí em diante, a crise somente se aprofundou.

O golpismo faz parte da gênese da política brasileira, desde a Constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I, depois de fechar a Assembleia Constituinte de 1823 a golpes de sabre, na Noite da Agonia. É uma decorrência do fato de que a formação do Estado nacional antecedeu à própria nação. A ideia de que o Estado pode tudo e cabe a ele promover as grandes transformações econômicas e sociais está sempre acompanhada da certeza de que a sociedade é atrasada e incapaz. No nosso caso, remonta aos 30 anos da regência do Marquês de Pombal, no século XVIII, e se tornou uma característica permanente da vida nacional após a chegada da família real, com Dom João VI, em 1808.

“O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada”, escreveu Aristides Lobo, jornalista republicano, no Diário Popular de 18 de novembro de 1889, a propósito da proclamação da República pelo marechal Deodoro da Fonseca, à frente da jovem oficialidade positivista formada na antiga Escola Militar da Praia Vermelha. Positivismo que também contaminaria visceralmente a esquerda brasileira devido à liderança do ex-capitão Luiz Carlos Prestes e outros integrantes do movimento tenentista que aderiram ao comunismo.

Leandro Karnal: A queda de João Goulart

- O Estado de S. Paulo

Diante da certeza de que não haveria governo Jango no Rio Grande ou em qualquer lugar, ele se retirou para o Uruguai

O clima de instabilidade já era forte há três anos. Todo o governo de João Goulart se assentava em um acordo que mantinha um verniz fino de normalidade feito em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros. Porém, entre 1963 e 1964, a tensão crescera exponencialmente. De um lado, Jango e uma parte dos políticos, militares e da sociedade civil, que advogavam a legalidade do mandato e que as reformas de base sairiam por bem ou por mal. No outro extremo, um grupo majoritário que acusava o presidente de comunista. Na noite de 30 de março de 1964, contrariando alertas de seus conselheiros, o presidente fez um discurso veemente no Automóvel Club do Rio de Janeiro, por ocasião dos 40 anos da Associação de Subtenentes e Sargentos da PM.

Tancredo Neves, líder do governo na Câmara, homem de reputação moderada, quando questionado sobre o que achava do discurso, respondeu a Jango que era muito bonito, mas que lhe custaria o mandato. Na fala, ele acusou setores da sociedade de estarem financiando ou instrumentalizando um golpe, defendeu seu mandato e a Constituição, e garantiu que cumpriria as reformas de base e traria mais justiça social. Foi aplaudido, mas boa parte de seus opositores via esses temas como sinal de adesão do presidente a um regime comunista.

Passava das 22h quando Jango saiu do evento e se dirigiu ao Palácio das Laranjeiras. Enquanto dormia (será que dormiu?), o general Olímpio Mourão Filho ordenava que suas tropas se movimentassem para o Rio. Eram 4h da madrugada. De Belo Horizonte, o general Carlos Guedes ordenou movimento similar a seus homens. Era manhã do dia 31 de março quando o presidente soube da sublevação, porém foi convencido pelo general Assis Brasil, chefe da Casa Militar, de que o movimento golpista seria rapidamente sufocado. O ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro, encontrava-se hospitalizado, mas mandou ler na Rádio Nacional uma mensagem alertando para o perigo dos sublevados, que estavam se deixando enganar por detratores da democracia. Deixava claro que reagiria de maneira dura contra uma tentativa de golpe.

Jango, ainda no Rio, tentava costurar uma aliança que evitasse o inevitável, pois temia uma guerra civil. O general Armando Âncora recebeu ordem direta do presidente para prender Castello Branco, visto (com imprecisão) como artífice militar da coisa toda, todavia não a cumpriu. Os militares que estavam ao lado de Jango, como o chefe dos Fuzileiros Navais, almirante Aragão, queriam uma ordem direta para resistir, armar a população se fosse necessário. Coronel Rui Moreira Lima sobrevoou a coluna golpista com um jato para observá-la. Diante de um único avião, os soldados, temendo o bombardeio, correram para o mato. Moreira Lima concluiu que seria fácil debelá-los. Jango hesitou. JK, senador à época, foi ao encontro do presidente no Palácio das Laranjeiras e, no quarto de Jango, sugeriu que o amigo deveria levar o movimento a sério, rechaçar qualquer ideia de comunismo, exonerar seu ministério e substituí-lo por um mais conservador, anistiar os militares golpistas e punir os marinheiros que haviam desafiado a autoridade do ministro da Marinha. Realpolitik mineira não funcionou para o gaúcho de São Borja.

Merval Pereira: O dissenso necessário

- O Globo

Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de nicho da direita radicalizada

Aproximando-se o ciclo dos cem primeiros dias do governo Bolsonaro, já é possível constatar uma maneira de governar no mínimo heterodoxa, estimulada por embates permanentes com o uso das novas mídias sociais e baseada fundamentalmente em questões morais. Os pontos centrais, na Economia as reformas e as privatizações, na Justiça, a lei anticrime, têm atitudes dúbias por parte do presidente, cujo passado interfere nas supostas ideias atuais.

Mais do que ser o presidente de todos, Bolsonaro parece pretender ser o representante de um nicho da direita radicalizada, o que já lhe valeu uma queda acentuada de popularidade, principalmente entre a classe média, que foi fundamental para sua eleição.

O analista Fabio Lacombe, do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (Ebep), diz que a hipervalorização da animação ou reanimação dos “seguidores” estabelece limites muito estreitos para o exercício da convivência política, que requer muito mais do que um agrupamento em torno de determinadas ideias, pois prevê exatamente questioná-las. A desconvocação da cientista política Ilona Szabó de um conselho sobre segurança pública é exemplo disso.

Como Freud mostrou, diz Fabio Lacombe, as exigências morais, uma vez se impondo, se tornam cada vez mais rígidas, em vez de abrirem espaço para possibilidades que ainda não se revelaram. E a realidade política, diferente da postura moralista, está sempre promovendo essas aberturas.

“A questão do agendamento, se não estiver submetida ao propriamente político, é porque se presta mais, por suas dimensões exíguas, a colocar os cidadãos numa marcha onde o pensamento se recolhe às dimensões de reprodução das ordens agendadas”, analisa Lacombe, que lembra que Clausewitz, grande teórico da guerra, avaliou que ela se impõe quando os recursos políticos se esgotaram.

“Apoio político deve ser a adesão a um conjunto de ideias que manifestam a expectativa de que sua aplicação vai promover um estado de coisas que visam ao bem comum”, afirma o analista do Ebep. Delas não emerge nada parecido com um conjunto de regras que devem ser obedecidas sem serem questionadas.

Se, diante da desilusão de certos setores de eleitores que votaram em Bolsonaro mais para se livrar do PT do que propriamente em favor de suas propostas, surge um desapontamento com algo que emergiu, só se pode valorizar esse “desapontamento”, pois gera uma possibilidade de reflexão.

Ascânio Seleme: Os Bolsonaro, um bloco

- O Globo

As posições deles são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos

A queles que ainda pensam ser possível separar o presidente Jair Bolsonaro de seus filhos, mesmo que apenas na gestão do país, é melhor ir logo tirando o cavalinho da chuva. Os Bolsonaro são um bloco único, monolítico, inseparável e inquebrantável. Suas posições são resultado de um pensamento único, elaborado ao longo de anos, e nenhum dos seus membros sobrevive sem os demais, explica Dado Salem, economista, mestre em Psicologia do Desenvolvimento e sócio da Psiconomia, empresa especializada em gerir questões complexas e sensíveis envolvendo famílias e negócios.

Salem fez um estudo sobre a família do presidente tomando por base entrevistas que cada um deu ao longo dos anos e suas manifestações nas redes sociais. Com esses elementos e com o apoio de um relatório contendo as nuvens de palavras mais repetidas por cada Bolsonaro no Twitter, elaborado em 2016 pela cientista política Mariana Cartaxo, foi possível escrutinar a raiz comum do raciocínio de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo.

Os Bolsonaro são o que Salem chama de “família simbiótica indiferenciada”. Eles pensam, sentem e agem como um bloco. São vulneráveis quando separados e se sentem ameaçados pelo mundo externo, o que os torna ainda mais fechados. Têm tendência ao isolamento e possuem uma enorme capacidade de deteriorar relações muito rapidamente. São governados por suas reações emocionais ao ambiente e acabam gerando neles próprios uma previsível ansiedade crônica.

Em famílias assim, o pai não toma qualquer decisão sem ouvir os filhos. O que parece ser o caso de Bolsonaro. Seus filhos, por sua vez, detestam os que se aproximam demais do pai, sobretudo se enxergam nessa aproximação uma tentativa de manipular o patriarca. No caso da família em questão, os filhos têm ciúmes dos que se aproximam para ganhar luz e aparecer aos olhos do público. E torpedeiam sistematicamente o intruso.

Dorrit Harazim: Passado, presente, futuro

- O Globo

‘Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira’, disse Bertrand Russell, que anda fazendo falta no mundo de 2019

É conhecida a eletricidade intelectual do filósofo, matemático, historiador e crítico social Bertrand Russell, também chamado de “poeta da razão”. Recebeu o Nobel de Literatura em 1950 como poderia ter recebido o da Paz, pois a fundamentação dos jurados para agraciá-lo foi a de que seus escritos “promovem ideais humanitários e a liberdade de pensamento”. Sua vastíssima obra é marcada por um ceticismo de raiz.

Menos conhecida é uma de suas conferências transformada em livreto —“Pensamento livre e propaganda oficial” —, proferida na bicentenária Conway Hall Ethical Society de Londres. Naquele discurso Russell pregou a vontade de duvidar como essência do pensamento livre.

“Nenhuma de nossas crenças é inteiramente verdadeira. Todas contêm alguma penumbra de imprecisão, de erro”, disse. E entre as várias formas de aproximação da verdade, destacou “o controle de nossos próprios preconceitos através do debate com quem tem preconceitos contrários”. Também indicou que a classificação “livre” é vazia, a menos que se esclareça do quê algo ou alguém se libertou.

Bertrand Russell anda fazendo falta no mundo de 2019. Nos Estados Unidos, coube a um congressista reeleito pela sétima vez inaugurar novo patamar de retórica do ódio. Steve King, cuja afeição por supremacistas brancos é conhecida, postou um meme vislumbrando uma segunda Guerra Civil no país: um mapa dos Estados Unidos em forma humanoide, com dois soldados em combate, um azul e outro vermelho representando estados que votam Republicano ou Democrata. A legenda dizia tudo: “Um lado tem oito trilhões de balas, enquanto o outro lado sequer sabe qual banheiro usar. Adivinhem quem vai vencer ...” Pressionado, o parlamentar deletou a postagem, mas a palavra amaldiçoada — guerra civil — já havia impregnado as redes sociais.

Bernardo Mello Franco: No Supremo, tempo é poder

- O Globo

O STF levou dois anos para decidir que uma manobra de Temer e Moreira foi ilegal. Enquanto o tribunal cochilava, a dupla trocou o palácio pela cadeia

Na quarta-feira, o Supremo considerou inconstitucional a medida provisória de Michel Temer que criou um ministério para Moreira Franco. O tribunal levou quase dois anos para julgar a ação. Enquanto ela adormecia na gaveta, os dois amigos desfrutaram de mais 18 meses no poder.

O episódio ilustra uma das maiores distorções no funcionamento da Corte. Ao não decidir em tempo razoável, os ministros também decidem. Neste caso, a inércia favoreceu os emedebistas.

O Supremo deu a primeira ajuda à dupla em fevereiro de 2017. Na semana em que a delação da Odebrecht foi homologada, Temer ressuscitou a Secretaria-Geral da Presidência. A canetada blindou seu velho parceiro com o foro privilegiado.

O ministro Celso de Mello não considerou o ato ilegal. Numa situação semelhante, seu colega Gilmar Mendes havia anulado a nomeação de Lula para a Casa Civil, às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff.

Três meses depois, Temer renovou a “MP do Moreira”, que corria o risco de ser derrubada pelo Congresso. A manobra atropelou o artigo 62 da Constituição, que proíbe o governo de editar duas MPs com o mesmo teor.

A Procuradoria-Geral da República pediu a anulação do texto, mas o Supremo não se mexeu. Quando os juízes resolveram trabalhar, Temer e Moreira já haviam deixado o palácio e experimentado a vida na cadeia.

Eliane Cantanhêde: Construir, não destruir

- O Estado de S.Paulo

Guerra contra o establishment significa ataque ao Legislativo, ao Judiciário e à mídia?

Muita coisa começou a fazer sentido quando o jovem Filipe Martins, assessor internacional da Presidência e amigo dos filhos do presidente Jair Bolsonaro, publicou no Twitter: “O establishment acusou o golpe. Eles estão com medo. É hora de continuar batendo no sistema sem parar, sem precipitar e sem retroceder”.

O que é o “establishment” a ser combatido? O Congresso, o Supremo e a mídia independente. Isso lembra alguma coisa? Sim, lembra a Venezuela de Hugo Chávez, com sinal trocado.

Chávez, coronel da reserva do Exército, aliou-se às Forças Armadas e a parte da esquerda para combater o establishment e implantar um regime ao seu gosto. Bolsonaro, capitão da reserva, atraiu os militares, a direita e os conservadores para criar uma “nova era”.

Logo, não se trata de direita e esquerda. Em duas democracias cheias de problemas e vícios, a liga política pró-Chávez e pró-Bolsonaro foi possível em torno de costumes, nacionalismo e combate à corrupção. Só que a guinada aqui conta com um arsenal de guerra mais poderoso que os Sukhoi russos de Chávez e Maduro: as redes sociais.

A destruição da Venezuela começou com ataques frontais e uma intensa propaganda contra parlamentares, funcionários, ministros da Alta Corte, jornalistas, e aqui tudo isso é ainda mais rápido, mas as instituições são mais sólidas. Lá, não sobrou nada. A Venezuela vai demorar décadas para se recuperar.

Como Chávez, Bolsonaro também se alia estrategicamente com o capital e as forças de combate à corrupção. Entram aí as figuras decisivas de Paulo Guedes e Sérgio Moro, que são legítimos integrantes do establishment, mas ampliam aliados e conferem grandeza e bons propósitos ao regime.

Vera Magalhães: Não vai mudar

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro não mudará e o entorno já acha formas de se adaptar – em alguns casos, alienando o presidente das discussões

“Ele não vai mudar.” Sem nuances, este foi o diagnóstico que colhi na minha ida a Brasília na última semana, relativo a Jair Bolsonaro, feito com a mesma convicção por ministros, assessores do presidente e parlamentares.

Havia uma expectativa, durante a campanha e ainda depois das eleições, de que a Presidência trataria de conferir certa noção de institucionalidade a Bolsonaro, cuja trajetória sempre foi de “outsider" nas corporações (Exército, Congresso, partidos) às quais pertenceu.

Não vai acontecer, e o entorno já começa a encontrar formas de se adaptar a isso – em alguns casos, alienando o presidente de discussões importantes de seu governo.

As análises segundo as quais Bolsonaro moldaria suas declarações, ideias e ações aos limites do cargo foram classificadas pelos seus opositores mais radicais como tentativas de setores da imprensa, da sociedade e do eleitorado de “normalizá-lo”.

É um dilema de difícil resolução. Nos Estados Unidos, já se vão quase três anos de Presidência de Donald Trump, e ele e a imprensa seguem numa relação para lá de conflituosa. Mas o caminho de expor as inverdades e de confrontar os insultos do presidente tem sido adotado com mais convicção por veículos antes perplexos com sua retórica incendiária.

O aprendizado americano serve para o Brasil. Quando um presidente eleito democraticamente insiste até hoje em questionar o sistema de urnas eletrônicas, investe contra a imprensa propagando fake news nas redes sociais e propõe a comemoração, no dia de hoje, de um golpe militar que instituiu uma ditadura, querendo rever e debochar da História, a imprensa tem se imbuído de seu papel de expor, checar, propor o contraditório e criticar essas práticas.

Para Bolsonaro, esse exercício equivale a questionar a legitimidade de sua eleição. Para os opositores mais radicalizados, a imprensa pecou justamente ao não fazê-lo. Eis um dos muitos exemplos de como a polarização política doentia na qual o Brasil mergulha a cada dia apenas interdita o debate.

Bruno Boghossian: O troco do caixa

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro pode ceder a pedidos que rasgariam cartilha liberal do economista

Paulo Guedes só pensa no trilhão. O ministro fez uma cobrança agressiva quando ameaçou pedir as contas se Jair Bolsonaro não der apoio integral à reforma da Previdência. A equipe econômica aposta tudo no alívio gigantesco que o projeto deve levar aos cofres do governo, mas também deveria ficar de olho no troco do caixa do posto Ipiranga.

As negociações para a votação da reforma devem levar meses. O presidente, ao que tudo indica, parece perder influência na discussão da medida. Enquanto o assunto se desenrola no Congresso, o compromisso de Bolsonaro com a agenda econômica liberal de Guedes deve passar por outros testes.

A pressão de caminhoneiros por novos benefícios e proteções contra a variação no preço do diesel é o primeiro deles. Bolsonaro pegou carona na paralisação de maio de 2018 e apoiou a pauta de reivindicações. Só na última semana, ele falou duas vezes sobre o assunto, prometendo atenção aos pedidos, mas os motoristas continuam insatisfeitos.

Vinicius Torres Freire: Governo paralelo, castelos no ar

- Folha de S. Paulo

Cúpulas do Congresso querem ter 'pauta própria' e colaborar com 'parte do governo'

A cúpula do Congresso, Câmara e Senado vai trabalhar para que se aprove alguma reforma da Previdência, além de outros assuntos de grande consenso na elite econômica e de repercussão popular. Quanto ao mais, o governo que se vire.

No final da semana, esse parecia o saldo do arranca-rabo, explicitado em conversas com lideranças que se resignavam com o fato de Jair Bolsonaro ser mesmo o que sempre pareceu.

Não haveria patrocínio de tentativas de sabotagem do governo, que, no entanto, vai colher o que plantar caso provoque a massa parlamentar.

A reforma da Previdência será de certa forma um projeto do Parlamento, um roteiro adaptado, baseado na história original elaborada pelo Ministério da Economia. Será lipoaspirada. As dificuldades de aprová-la talvez sejam até maiores, mas o projeto não será largado pela cúpula do Congresso, como em 2017.

O plano, enfim, é governar com uma parte do governo (sic), em especial em economia e segurança pública. Seria uma espécie de parlamentarismo aéreo, um governo paralelo, quem sabe um castelo no ar.

Pode dar certo? No Brasil recente, viu-se coisa parecida no desastre de José Sarney (1985-1990) e no estágio terminal de Fernando Collor e Dilma Rousseff, que não foram sujeitos a governo paralelo, mas apenas neutralizados ou sabotados. A comparação não ensina grande coisa.

O 'aprendiz de presidente': Editorial / O Estado de S. Paulo

A mais recente edição da revista britânica The Economist publica um artigo intitulado Jair Bolsonaro, o aprendiz de presidente.

Depois de mencionar a crescente série de problemas enfrentados pelo País em razão da inação do governo Bolsonaro em todos os setores, especialmente em relação às reformas, a tradicional publicação comenta que “o maior problema é que o sr. Bolsonaro ainda não mostrou que entende seu novo trabalho”. E sentencia: “A menos que ele pare com suas provocações e aprenda a governar, seu mandato pode ser curto”.

A Presidência de Bolsonaro, diz a Economist, enfrenta um “teste crucial” com o encaminhamento da reforma da Previdência logo em seus primeiros meses, mas o próprio presidente parece não ter compreendido a dimensão desse desafio. Prefere antagonizar a imprensa, ao dizer, no Twitter, que “a mídia cria narrativas de que não governo, sou atrapalhado etc.” e, dirigindo-se a seus seguidores, acusa: “Você sabe quem quer nos desgastar para se criar uma ação definitiva contra meu mandato no futuro”. Ou seja, o próprio presidente Bolsonaro, como a reafirmar sua incrível inabilidade, trouxe à tona, em suas redes sociais, a sombria perspectiva de uma nova interrupção de mandato – e isso antes de se completarem cem dias desde a posse. A Economist disse, com razão, que “os democratas, por mais que abominem Bolsonaro, não deveriam querer que ele não completasse seu mandato”, mas o fato é que o presidente parece estar se esforçando para tirar o gênio da garrafa.

O clima de incerteza provocado pela falta de traquejo presidencial de Bolsonaro, que se reflete em uma relação hostil com o Congresso e em uma gritante falta de rumo administrativo, não autoriza otimismo de nenhuma espécie. Altos funcionários do próprio governo já não escondem de ninguém sua exasperação com o estilo de Jair Bolsonaro de governar – ou de não governar.

Coalizão ou impasse: Editorial / Folha de S. Paulo

Com sistema político rumo à paralisia, só ação concertada das lideranças pode evitar que o país afunde na recessão e na bagunça administrativa

A teoria é quase tautológica. Quanto mais partidos representativos houver numa democracia, maior é a propensão a que o governo seja uma coalizão entre duas ou mais legendas. Vale para o presidencialismo e o parlamentarismo.

A realidade é que começa a dificultar as coisas —e a realidade brasileira as complica especialmente.

Aqui se decantou, ao longo de 30 anos de vigência desta Constituição, a combinação peculiar entre um presidente da República forte, embora menos do que era na largada, e um Congresso cada vez mais poderoso como instituição mas, paradoxalmente, ultrafragmentado na sua composição partidária.

O presidente, para realizar a sua agenda, necessita do Poder Legislativo. A coordenação de deputados e senadores em maiorias estáveis, porém, tornou-se tarefa mais difícil com o passar do tempo.

Mais aposentados no campo do que agricultores: Editorial / O Globo

Há um número desproporcional de beneficiários do INSS em relação ao de trabalhadores rurais

É compreensível, mas não aceitável, que políticos, mesmo diante dos riscos de insolvência do próprio sistema de seguridade e, por consequência, do Tesouro, se oponham a algumas mudanças em nome da defesa dos mais “humildes”.

Sob esta chancela estão os atendidos pelo Benefício de Prestação Continuada (BPC), um salário mínimo para qualquer pessoa com 65 anos ou mais que se declare de baixa renda e/ou seja deficiente, mesmo que jamais tenha contribuído para o INSS.

Trata-se de uma ajuda de cunho social, de necessidade indiscutível. Pela proposta original da reforma, a pessoa poderá, já aos 60 anos, começar a receber R$ 400 e chegar ao salário mínimo integral aos 70. Políticos se insurgem contra o que consideram uma desumanidade, mas não se preocupam com a lisura das informações concedidas ao INSS, no enquadramento do beneficiário no BPC. Este é outro exemplo da clássica visão brasileira de que dinheiro público não tem dono nem custo, e por isso pode ser gasto sem cuidado. Sequer admite-se que a possibilidade de garantir um salário mínimo aos 65 anos é poderoso incentivo a que uma faixa da população deixe de contribuir para o INSS a partir de certa idade. E também não se reconhece a injustiça social de se pagar aposentadoria de um salário a quem contribui ou não.

Após crise, governo ameniza tom e quer manter indicações políticas

Ministro contesta termo 'velha política' e diz que aliados terão relação especial com o Planalto

Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Ministros e auxiliares de Jair Bolsonaro (PSL) iniciaram um movimento explícito de correção de rumos depois da crise aberta entre o Palácio do Planalto e o Congresso.

"Vamos nos levantar das nossas cadeiras e conversar com os parlamentares. Temos que dar crédito para o nosso Congresso", disse à Folha o general Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo.

Apesar dos ataques do presidente ao que chama de "velha política", o governo vai receber indicações para cargos federais com critérios técnicos, distribuir verba para as bases de parlamentares e ampliar a interlocução com deputados e senadores.

O movimento dos articuladores do Planalto inclui um desagravo aos políticos.
"Pelas minhas conversas, para quase a totalidade dos políticos, o interesse não é pessoal. O interesse é por políticas públicas."

Em conversas reservadas e declarações públicas, integrantes da cozinha do palácio tentam amenizar o discurso adotado por Bolsonaro ao rechaçar qualquer tipo de negociação com o Congresso.

"Os termos 'velha política' e 'nova política' não refletem bem a intenção", declarou Santos Cruz. "Você não pode achar que só tem exemplo no pessoal mais novo e não tem no pessoal mais velho. Não é bem por aí."

Apesar do tom adotado ao longo do confronto, o ministro Santos Cruz declarou que o governo aceita indicações políticas para espaços na administração federal, desde que sejam nomes qualificados.

Desafios no caminho do governo

Trégua entre Bolsonaro e Maia será testada em votações de propostas espinhosas na Câmara

Bruno Góes e Eduardo Bresciani / O Globo

BRASÍLIA — Depois da troca de ataques semana passada, os acenos de paz entre o presidente da República, Jair Bolsonaro , e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), serão testados, na prática, por um arsenal de propostas espinhosas para o governo que estão na pauta do Legislativo. A anunciada trégua ocorre em um ambiente político que segue conturbado. Deputados reclamam da falta de diálogo com o Palácio do Planalto, que se traduz na dificuldade de construção de uma base aliada.

Um dos primeiros projetos da fila é a reparação aos estados que foram prejudicados pela Lei Kandir, que deu benefício para exportadores ao reduzir impostos estaduais. Se o texto que tramita na Câmara for aprovado, a União terá de repassar R$ 39 bilhões por ano aos entes da federação. Maia diz que o tema só entrará na pauta se for discutido antes com a equipe econômica. Mas não descarta levar o assunto adiante.

Outra proposta em discussão pelos líderes visa a flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal para os municípios. A ideia é aprovar um projeto de lei complementar, do deputado Édio Lopes (PR-RR), que retira dos cálculos de descumprimento da LRF as despesas com pessoal referentes à execução de programas federais e estaduais. Geralmente os municípios têm despesas muito maiores nesses programas do que os repasses recebidos da União.

Em meio a essa pauta bomba, em um gesto de boa vontade, Maia anulou, na última sexta-feira, a convocação do ministro Sergio Moro (Justiça) para prestar esclarecimentos à Comissão de Legislação Participativa. Ele falaria sobre o decreto que facilitou a posse de armas e também detalharia o pacote anticrime, enviado à Câmara em fevereiro. Já o acordo para o ministro Paulo Guedes (Economia) ir à Comissão de Constituição e Justiça da Casa, discutir a Reforma da Previdência, permanece.

Ceticismo
Apesar das tratativas de paz e da perspectiva de que Guedes ajude na articulação política para a aprovação da reforma, há um clima de ceticismo no Congresso. Líderes partidários não estão seguros de que o ministro consiga conciliar a agenda técnica da reforma com as negociações com o Congresso.

Dividida, oposição tenta afinar atuação em meio à crise política

PT está voltado para o ‘Lula Livre’ e demais partidos disputam espaço entre si

Eduardo Bresciani / O Globo

BRASÍLIA — Enquanto o governo Jair Bolsonaro se envolve em crises quase todos os dias, a oposição está dividida e ainda buscando a melhor forma de agir no cenário político. Com o PT amarrado à bandeira “Lula Livre”, os demais partidos se dividem na disputa por cargos de destaque no Congresso e ainda não têm uma atuação conjunta. A ideia da maioria, porém, é de que os partidos anti-Bolsonaro precisam ter cautela em seus posicionamentos para evitar serem usados pelo centrão no momento em que há desgaste com o governo e, posteriormente, serem abandonados.

Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, argumenta ser preciso aproveitar as fragilidades do governo para começar a apresentar propostas:

— Justamente pela inexistência de governo é que o papel da oposição se torna mais importante do que nunca. Cabe a ela ajudar a tirar o país da paralisia, discutindo políticas públicas e alternativas. O desafio que está colocado para a oposição é enorme.

A preferência é centrar os debates em temas como a Reforma da Previdência. Os partidos de esquerda que apoiaram a reeleição de Rodrigo Maia (DEM-RJ) para a Presidência da Câmara — PDT e PCdoB —, negociaram com ele o adiamento da pauta de costumes para enfrentar primeiro a econômica. 

Os deputados dessas siglas entendem que, como o Congresso está mais conservador em costumes e essa postura encontra ressonância em vários setores da sociedade, seria melhor adiar os enfrentamentos nessa área. Essa estratégia coincide com a do governo, que decidiu priorizar a Reforma da Previdência.

Construir coalizão não é sinônimo de corrupção, dizem políticos e analistas

Para eles, discurso de Bolsonaro contra ‘velha política’ trava articulação do governo, que enfrenta dificuldades no Congresso

Natália Portinari / O Globo

BRASÍLIA — Em meio à troca de farpas com o Congresso na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro usou a expressão “ velha política ” para se referir a práticas de parlamentares que, segundo ele, são perversas. A empresários, disse que “não vai jogar dominó com Lula e Temer no xadrez”, como uma possível consequência por negociar cargos no governo para formar uma base aliada. Antes, chegou a perguntar: “O que é articulação?”.

O GLOBO ouviu acadêmicos e políticos experientes para responder a essa pergunta. A resposta remonta à classificação criada pelo cientista político Sérgio Abranches, em 1988: o regime brasileiro é um “presidencialismo de coalizão”.

Trata-se, segundo ele, de um sistema em que o Poder Executivo precisa do apoio de maioria de diversos partidos no Congresso para poder governar. Existem casos parecidos na Europa, mas a dispersão de siglas no Brasil seria única.

— Quando o presidente vai ao Congresso e negocia uma coalizão, ele vai receber apoio de alguns, e outros vão dizer: esse negócio aqui eu não toco. É uma negociação legítima. Acertando um programa de governo com o qual a coalizão vai colaborar e estabelecendo como vai colaborar, ela compartilha do poder de governo. Não é um ato de corrupção.

Pablo Neruda: Esperemos

Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.