domingo, 7 de julho de 2019

Fernando Henrique Cardoso*: Vinte e cinco anos do Real

- O Estado de S.Paulo / O Globo

De novo o País está em perigo. Mãos à obra, a começar pela reforma da Previdência

Neste mês de julho de 2019 o Plano Real comemora 25 anos. As novas gerações não se lembram, mas a inflação foi um flagelo. De dezembro de 1979 a julho de 1994, a inflação acumulada atingiu aproximadamente 12 trilhões por cento.

A renda do trabalhador era corroída pela alta crônica e crescente dos preços. Sofriam principalmente os trabalhadores mais pobres, sem organização sindical a maioria. Onde o sindicato era forte havia greve a toda hora: as empresas concediam aumentos salariais, mas os repassavam ao consumidor, alimentando a espiral inflacionária. Protegiam-se melhor dela os bancos, os grandes aplicadores, as empresas capazes de impor seus preços ao mercado e o governo, que tinha suas receitas indexadas e contava com a inflação para ajustar o valor real dos seus gastos. Daí o aumento da pobreza e da desigualdade provocado pela inflação.

O governo defendia o seu caixa, mas não conseguia planejar as suas ações. Nem as empresas, muito menos os pequenos empreendedores, as famílias e as pessoas. A inflação era um flagelo especialmente para os mais pobres, mas infernizava o País como um todo.

Foi nesse contexto que ouvi, perplexo, em Nova York o presidente Itamar Franco me perguntar pelo telefone se eu aceitaria trocar o Ministério das Relações Exteriores pelo Ministério da Fazenda. Estávamos em maio de 1993. Seria o quarto ministro da pasta em sete meses de governo. Disse-lhe que não deveria trocar o então ministro, Eliseu Rezende, mas que, ausente do Brasil, não sabia avaliar a situação. Ele respondeu que conversaria com o ministro e me informaria. Mais tarde mandou avisar que não precisava mais falar comigo. Fui para o hotel desanuviado, até ser despertado de manhã por minha mulher, Ruth, desgostada por eu haver sido designado para pasta tão difícil.

Voltei ao Brasil com meu chefe de gabinete, embaixador Sinésio Sampaio Góes. Disse-lhe que precisaria dele no novo ministério, pois não conhecia bem os funcionários de lá. Voei pensando no discurso de posse do dia seguinte. Repeti o mantra de José Serra: o Brasil tem três problemas; o primeiro é a inflação, o segundo também e terceiro, idem. Mas “com que roupa” poderia dirigir o Ministério da Fazenda? Sou sociólogo, embora haja trabalhado na Cepal e iniciado a carreira universitária na Faculdade de Economia da USP. Só havia um jeito: convocar uma boa equipe de economistas e cuidar da política. Tinha recebido carta branca de Itamar.

Merval Pereira: O negro na ABL

- O Globo

A Academia se preocupa com a representatividade, não apenas dos negros, mas também das mulheres e das regiões do país

A propósito da entrega, pela Faculdade Zumbi dos Palmares, da foto de Machado de Assis negro, “o Machado real”, ao presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi, que foi tema de reportagem do “The New York Times” e de diversos jornais na América Latina, travou-se, em reunião plenária recente, uma bela discussão sobre a presença do negro na ABL.

Lucchesi ressaltou o “gesto simbólico” de que estava revestido aquele acontecimento, lembrando a distribuição de livros pela ABL nos quilombos, nos presídios, e do trabalho que faz junto aos movimentos negros, pela necessidade de ter um observatório dos negros nas prisões, “porque 70% são jovens, negros e de periferia”.

Uma ação social “que não é de política, não é de partido, mas de compreensão profunda de cidadania brasileira”. A escritora Nélida Piñon destacou que ter Machado de Assis ao lado em termos raciais e étnicos “dá, certamente, um ânimo e um alento a uma juventude negra abandonada, desprovida da educação”.

O historiador José Murilo de Carvalho, falando como diretor do Arquivo Múcio Leão, disse que essa questão em algum momento deve chegar ao Arquivo, que detém muitas fotos de Machado de Assis. A foto entregue à ABL do que seria “o Machado real” será incorporada ao acervo, mas disse que não se pode alterar as fotos que estão no Arquivo, “pois seria falsificar um documento”.

O ex-presidente da ABL Domício Proença Filho lembrou que, ao ser eleito, respondeu a um repórter que na ABL ele não é “um negro escritor e sim um escritor negro”. Para uma repórter mais incisiva, que questionava se ele seria a voz da etnia na Academia, respondeu que não, “por não ser representante e sim representativo”. E desejou que se amplie essa representatividade com alguma urgência. O historiador Alberto da Costa e Silva, Prêmio Camões de Literatura, citou alguns grandes negros do alto mundo da cultura brasileira membros da Academia Brasileira de Letras, como Evaristo de Moraes Filho, Octavio Mangabeira e José do Patrocínio, entre outros. Para Alberto da Costa e Silva, a história subterrânea do mestiço no Brasil precisa ser escrita com seriedade, sem viés político.

Ascânio Seleme: Bolsonaro traidor

- O Globo

O presidente do Brasil perdeu mais uma disputa no Congresso. Dessa vez na comissão que aprovou o relatório da reforma da Previdência. Depois de ser chamado de traidor por policiais civis, federais e rodoviários e por agentes penitenciários, Jair Bolsonaro correu para tentar mudar o teor do relatório de modo a garantir proteção a estes também. Era tarde demais. O relator da reforma ignorou o presidente e a comissão retirou da reforma apenas policiais militares e bombeiros, até porque esta fatura cairá na conta dos estados.

Tratando o Congresso sempre de forma intransigente e reiterando que não negocia com parlamentares por entender que negociação política é loteamento de cargos, o presidente achou que bastavam dois telefonemas a líderes de partidos aliados e uma postagem em rede social para resolver o problema. Quebrou a cara. Sorte do Brasil. Imaginem do que ele seria capaz se soubesse negociar e tivesse habilidade política.

O apoio ao presidente veio de apenas alguns fiéis e dos partidos de esquerda. PT, PCdoB, PDT, PSOL e Rede votaram a favor de estender um regime complacente também aos policiais. Votaram assim, não por convicção, mas para torpedear o projeto da reforma. E o quadro pitoresco que se viu foi Jandira Feghali defendendo no plenário da comissão o mesmo que Jair Bolsonaro pregava em redes sociais e entrevistas: mais privilégios especiais.

Míriam Leitão: Salles em conflito com dados e fatos

-O Globo

Com números, fatos e conceitos imprecisos, ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, monta teses insustentáveis ao falar sobre o tema

O ministro Ricardo Salles gosta da frase “não é bem assim” para responder a qualquer argumento do qual discorde. Mas a frase é perfeita para o que ele diz. Segundo Salles, havia um terço de ONGs no Comitê Orientador do Fundo Amazônia. É falso. Ele diz que o desmatamento “se estabilizou” entre 2004 e 2012, mas na verdade despencou 70%. Afirma que está havendo muita liberação de agrotóxicos porque nos anos anteriores eles ficaram retidos por ineficiência da Anvisa. No ano passado, de janeiro a 24 de junho, foram 193 produtos liberados. Este ano, no mesmo período, foram 239. Houve aumento, mas nada estava parado nos últimos três anos.

Com números e fatos imprecisos, o ministro monta teses insustentáveis. Numa entrevista na Globonews, diante de uma pergunta sobre o desmatamento, ele respondeu: —Vamos lá, o Brasil tem 5 milhões de quilômetros na Amazônia. A quantidade de quilômetros desmatados no ano passado foi ao redor de oito mil. Dá zero vírgula zero vírgula dois por cento. Percentualmente, já temos um desmatamento zero. É a terceira casa decimal depois do zero. Isso tem que ser dito com todas as letras —respondeu. É preciso dizer, com números e letras, o quanto o ministro errou aqui. Inventou duas vírgulas seguidas depois do zero. Não é a terceira casa decimal. Depois, ele corrigiu para 0,16%, mas o problema é que a ideia é toda descabida. Nas redes sociais, foram feitos cálculos sobre o absurdo do raciocínio, mostrando que se a mesma conta for feita com os 61 mil homicídios pelos mais de 200 milhões de habitantes o país teria homicídio zero. Dá para fazer sumir todos os problemas se a gente quiser brincar com os números.

Dorrit Harazim: Rachel Carson, urgente

- O Globo

Seu livro demonstra que pesticidas não apenas envenenam insetos e ervas daninhas, como desencadeiam uma cascata de mutações destruidoras da vida

O fazendeiro americano Ezra Taft Benson serviu ao presidente Dwight Eisenhower como secretário da Agricultura ao longo de oito anos (1953-61), antes de tornar-se influente profeta da Igreja Mórmon. É dele uma pergunta que encapsula os preconceitos culturais, a ignorância científica e os interesses que predominavam no pós-Segunda Guerra Mundial: “Por que uma mulher solteira, sem filhos, está tão preocupada com a genética?”, quis saber. Ou melhor, nem quis saber, pois ele mesmo forneceu a resposta: essa mulher era comunista. Teria dito mais se soubesse, à época, que a personagem, mesmo não sendo comunista, manteve até o final da vida uma extraordinária amizade amorosa com outra mulher.

Taft Benson referia-se a Rachel Carson, autora de “Primavera silenciosa”, o seminal livro que desarrumou para melhor as até então inexistentes políticas ambientais nos Estados Unidos e obrigou o mundo a despertar para a frágil interconectividade da vida no planeta. Obra-libelo para que se investigue e regulamente o uso de pesticidas, o livro serviu de referência para a criação da primeira agencia federal de proteção do meio ambiente (EPA, na sigla em inglês), da aprovação da Lei do Ar Puro (1963), Áreas Selvagens (1964), Água Limpa (1972), Espécies em Extinção (1973), e despertou a consciência ambiental moderna.

*Elio Gaspari: A privataria ameaça a UFRJ

- O Globo / Folha de S. Paulo

Hospital em declínio é símbolo de uma época em que a universidade sonhava

O hospital Sírio-Libanês retifica: “Não está nos planos atuais da instituição abrir uma filial do hospital no Rio de Janeiro.” (Em 2015 esteve, com gente boa conseguindo promessas de doações, mas isso é passado.)

A Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) trabalha, com o BNDES e o banco Fator, na modelagem de uma licitação para conceder, por até 50 anos, 485 mil metros quadrados de terrenos na ilha do Fundão e na praia Vermelha (onde fica o falecido Canecão).

Quem desenhou a girafa foi Deus. Só Ele sabe o que sairá da modelagem que estão cozinhando. Felizmente, o BNDES e a UFRJ garantem que tudo será feito às claras, em processo licitatório, com o devido debate.

Segundo a universidade, o cessionário disporá dos terrenos de acordo com seus interesses e a “vocação imobiliária” das áreas: “Provavelmente essas vocações estão associadas à ocupação para residências, comércio ou serviço. Há possibilidade de haver centros de compras ou de convenções, supermercados ou hotéis.”

O edital que licitou o pregão que contratou o banco Fator foi mais claro. Em duas ocasiões mencionou a possibilidade de uso dos terrenos para “condomínios corporativos, (...) redes de hotéis, redes de hospitais e redes de ensino”.

O que se cozinha é um amplo projeto capaz de botar dinheiro nos magros cofres da universidade. Coisa de bilhão de reais. Começa pela cessão dos terrenos, por até 50 anos. Essa seria a parte fácil. Ela complica-se porque modela-se um projeto pelo qual o cessionário, ou seus parceiros, devem dar contrapartidas à UFRJ, construindo prédios, restaurantes e alojamentos.

Talvez fosse mais simples não misturar gravata com abacate, mas vá lá. Serão duas bolas no ar.

Está na panela também a eventual criação de um “Fundo de Investimento Imobiliário” que ficaria encarregado de gerir o ervanário resultante das operações.

Assim, o malabar tem três bolas. (Esse fundo poderia ficar parecido com a Harvard Corporation, que cuida do patrimônio da universidade. Caso ele venha a ter investidores particulares, arrisca-se a misturar Boston com Borel.)

O projeto imobiliário ganhou um nome de fantasia —”Viva UFRJ”— e na essência desenhará o futuro da universidade. Shoppings, redes de hotéis e de hospitais muita gente faz, universidades são coisa para gente grande.

Quando ficar pronta a modelagem, tudo poderá ser discutido. Até agora, sem que o banco Fator tenha algo a ver com isso, saiu uma fumaça cinzenta do “Viva UFRJ”.

Apesar de se sonhar com recursos, redes de hotéis e de hospitais (privados), a universidade já esclareceu que “o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho não entrou nas contrapartidas pois estimativas preliminares indicaram que o custo da obra não cabe no projeto.”

O Clementino Fraga é um grande hospital, público, símbolo de uma época em que a UFRJ sonhava grande. Hoje ele é o retrato de uma realidade ruinosa. O doutor Clementino, tio-avô de Armínio Fraga, foi um grande reitor da universidade no ano bicudo de 1968.

Ele não merece que seu hospital público seja o que é, enquanto a centenas de metros do seu gabinete da Praia Vermelha reluza um grande hospital para endinheirados.

Janio de Freitas: Provas reais

- Folha de S. Paulo

No governo, Moro prossegue na transgressão às normas judiciais

Em menos de um mês, Sergio Moro já recorre à terceira linha defensiva, na confrontação com as revelações do The Intercept Brasil por seu site e pela imprensa. A alegação de desimportância e normalidade das mensagens expostas mais confirmou sua conduta desregrada do que o defendeu.

Logo depois, “Não reconheço toda a autenticidade das frases” foi uma dubiedade necessária, mas invalidou a intenção de desacreditar as conversas. Agora, em audiência na Câmara, Sergio Moro apelou para a cansada evasão político-sentimental: é “vítima de revanchismo”. De quem?

Dos que difundem as mensagens, claro. Da Folha, do jornal O Globo e da TV Globo, do Estado de S. Paulo, da Veja, dos que por quase cinco anos o trataram como o herói perfeito, intocável e eleitoral?

Não há motivo para revanche nessa relação de gratidões mútuas, sem ressentimentos. A Lava Jato, seus métodos e suas consequências não seriam como foram, e são, sem as contribuições da imprensa e parte das TVs, em projeção e em tolerância.

Ainda agora, as revelações do Intercept Brasil associadas à imprensa são publicadas, na maioria das vezes, de maneira que nega revanchismo. É comum terem jeito de mera obrigação. O que, mesmo sem tal motivo, protege Moro das proporções de fato merecidas pelo escândalo de sua ação.

As conversas não surpreendem quem teve liberdade crítica na observação a Moro, aos procuradores e delegados da Lava Jato. Mas é espantoso, isso é, que Moro prossiga na transgressão às normas judiciais, a que dizia estar dedicado. Espantoso e provado.

Bolsonaro deu ordem a Moro de investigar todos os partidos. Os traços de Estado policial nessa ordem —percepção do repórter exemplar que é Rubens Valente, na Folha de 5/6— começam, porém, em outra irregularidade grave: a ordem de Bolsonaro seguiu-se ao recebimento de cópia, entregue por Moro, da investigação sobre os “laranjas” do PSL.

Moro transgrediu o segredo de Justiça aplicado ao inquérito. Com a mesma conduta de infidelidade judicial, o mesmo método de ação subterrânea, o mesmo ânimo transgressor que as mensagens comprovam.

Várias vezes indagado na Câmara a respeito de investigações contra o jornalista Glenn Greenwald, do Intercept Brasil, Moro teve duas reações: ou não respondeu, ou disse que sua relação com a Polícia Federal é apenas a de lhe proporcionar condições de trabalho. Não tinha a resposta, pois.

Não é verdade. Além do notório acompanhamento que faz da atividade da PF, o que Moro entregou a Bolsonaro foi um relato sigiloso de que tinha conhecimento, assim como das investigações da PF para a Justiça Eleitoral.

Sergio Moro pode seguir na escalada de escapismos. Mas não detêm impulsos transgressores nem restauram sua imagem fantasiosa. Resta-lhe satisfazer-se com os serviços que prestou e tentar, com eles, a retribuição de uma vaga no Supremo.

*Angela Alonso: Protesto a favor

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

Manifestações domingueiras perderam o aconchego do antipetismo

“Si hay gobierno, soy contra”. O dito anarquista fez carreira no Brasil. Sempre tivemos manifestações de combate ao governo, desde a Colônia e para todos os gostos: contra governos fortes, caso de Floriano Peixoto, e fracos, como o de Prudente de Moraes; os de direita, vide Collor, e os de esquerda, qual o de Jango.

O país se vê como apático, mas é mobilizado. Há sempre quem ponha a boca no trombone. Apenas se foge da rua quando ocupá-la põe em risco o pescoço. Daí se contesta de outro jeito, caso da guerrilha no governo Médici.

Assim, é descabida a tese de que “o brasileiro acordou” para a política em 2013 —e que antes ia à rua apenas em Carnaval e Copa. A norma são manifestações “contra tudo o que está aí”. Desvio é o oximoro “protestar a favor”.

Os bolsonaristas são pródigos em invencionices, mas carecem de ineditismo no quesito. Nossa única presidente suscitou gritos de “fica” —embora na prorrogação do segundo tempo e com muitos constrangidos, dados seus slogans anteriores contra o ajuste fiscal.

A manifestação do último domingo (30) nada teve de constrangida. Faltou-lhe, ao contrário, comedimento, vide os sopapos entre manifestantes. Tabefes são rotineiramente trocados entre adversários e com a polícia. Mas o campo patriota é mestre no inusitado, como festejar com a polícia em vez de fugir dela.

Julio Wiziack: De Bolsonaro a Erdogan

- Folha de S. Paulo

Sob o escudo da 'despetização', governo Bolsonaro ataca princípios democráticos

Em um evento com parlamentares ligados ao agronegócio, Jair Bolsonaro voltou a repetir que seu governo precisa “desfazer o que foi feito para depois fazer”. Mas sob o pretexto de “despetizar” a administração federal, seu governo já faz: ataca as instituições públicas.

Somente na semana passada, o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, afirmou que os índices de desmatamento na Amazônia são manipulados, jogando lama no Inpe, centro de excelência em pesquisas espaciais.

Na Justiça, o próprio presidente disse que o ministro Sergio Moro vazou para ele informações de uma investigação sigilosa da Polícia Federal. Colocou em xeque a independência do órgão, que deve investigar até o ministro se for preciso.

No início de sua gestão, Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, acusou o Ibama de forjar contratos de aluguel de veículos. Foi apoiado por Bolsonaro, que prometeu nas redes sociais expor o esquema de corrupção. Nada havia de errado com os contratos, como se provou depois.

Vinicius Torres Freire: Brasil petroleiro, segunda tentativa

- Folha de S. Paulo

Reabertura do setor e melhora da Petrobras vão levar petróleo para o centro da economia

O principal produto de exportação do Brasil é o grupo da soja. O segundo? Petróleo e derivados. Sim, combustíveis já estiveram algumas vezes na vice-liderança desde 2008. Mas nunca antes tiveram tanto peso nas exportações: 14,2% do total, ante 15,9% da soja, 11% de material de transporte (veículos, aviões e suas peças) e 10,2% de minérios metalúrgicos (quase tudo ferro e algum cobre).

Afora no caso de colapso do volátil preço do barril, é bem provável que petróleo venha a ser em breve o principal produto da exportação brasileira e algo ainda maior no ambiente doméstico. O pouco notado recorde de produção de maio pode ser um aviso da mudança. O Brasil já é o nono maior produtor mundial.

A reabertura do mercado, em 2016, as privatizações de partes enormes do conglomerado Petrobras e a abertura do mercado de gás devem mudar a paisagem da economia e a propriedade do capital, em especial no setor de energia, além de estimular investimentos pesados a partir de 2020. Falta análise, porém, de quem vai se divertir mais nesse remelexo do setor.

A produção de petróleo e gás foi recorde em maio, embora em termos anuais tenha praticamente estagnado desde 2017. Atualmente, extraem-se 2,73 milhões de barris por dia, sem contar o equivalente a 700 mil barris por dia em gás.

No “Plano Decenal de Expansão de Energia 2027” do governo, publicado em dezembro passado, previa-se que o país estaria produzindo 3,3 milhões de barris por dia neste 2019.

A previsão vai dar chabu, é óbvio, mas os investimentos começaram a voltar e vão aumentar ainda mais depois dos enormes leilões de áreas de exploração, em novembro próximo.

Se a produção chegar ao previsto pelo Plano Decenal e caso funcione a abertura do mercado de gás, o setor de petróleo vai para o centro da economia brasileira.

Em 2016, a lei de reabertura do mercado desobrigou a Petrobras de investir em qualquer campo do pré-sal, o que emparedava investimentos da concorrência e não favorecia os novos negócios da petroleira nacional.

Desde 2015, a empresa se recupera do desastre, voltando a elevar suas despesas de capital.

O setor ficou sem leilões e, pois, sem a perspectiva de aceleração do investimento, entre 2008 e 2013, graças ao revertério regulatório dos governos petistas, afora as desgraças causadas por maluquices, incompetências e pela roubança na Petrobras.

Endividada, em desordem e sem crédito, a empresa se desfez e se desfaz de suas grandes controladas, movimento acelerado pelo Cade, que quer acabar com os quase monopólios da estatal, e por Paulo Guedes.

A Petrobras vende suas empresas de transporte de gás. Vai vender a Liquigás, a BR Distribuidora e 8 de suas 13 refinarias, responsáveis pela metade de capacidade de refino da companhia (mais de 1 milhão de barris por dia).

Tudo isso deve entrar em liquidação pelos próximos dois anos, no máximo. São negócios de dezenas de bilhões de reais, talvez centena, a maior privatização desde FHC 1.

A privatização e a abertura devem, claro, também mudar a política do capital. Basta lembrar o que aconteceu com a ascensão da soja e dos oligopólios das carnes.

A diferença agora é que a maioria da novidade será estrangeira, embora a finança e antigos canavieiros devam levar nacos do negócio. Como se não bastasse, preços livres em um mercado volátil como o de energia podem causar turumbambas, de consumidores empresariais ao povo miúdo, vide o caminhonaço.

Luiz Carlos Azedo: Entre a modernidade e a nostalgia

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“A política brasileira tem duas linhas de força que podem convergir na direção de um processo de renovação ou derivar para o autoritarismo”

A ideia da revolução como força transformadora do mundo é coisa dos jacobinos. Os revolucionários que surpreenderam a nobreza europeia ao liquidar o absolutismo francês mudaram até o calendário gregoriano, símbolo do cristianismo e do Antigo Regime, para mostrar que nada seria como antes. O ano I, iniciado em 1792, era o ano da adoção da Constituição, que havia instituído o sufrágio universal, a democratização.

A Revolução Francesa (1789-1799) nos legou a universalização dos direitos sociais e das liberdades individuais a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Também serviu de base para o regime republicano, inspirado nas ideias iluministas. A crítica aos excessos jacobinos resultou na democracia representativa. A política tal como a conhecemos hoje, inclusive as ideias liberais e os conceitos de esquerda e direita, além do nacionalismo, são heranças daqueles 10 conturbados anos.

Iniciado com a Queda da Bastilha, a famosa prisão de Paris, o processo revolucionário francês só foi finalizado com o Golpe de 18 de Brumário, organizado por Napoleão Bonaparte, que logo depois restabeleceu a monarquia e o calendário gregoriano. O calendário revolucionário francês seria reutilizado somente nos dois meses de vigência da Comuna de Paris, em 1871. Era complicadíssimo.

O poeta Fabre d’Eglantine buscou inspiração nas quatro estações do ano para definir os meses, remetendo-se, por exemplo, à colheita das uvas (Vindimário), às brumas (Brumário) e às geadas (Frimário), no Outono; à germinação (Germinal), à floração (Floreal) e às pradarias (Plarial), na Primavera. O matemático Gilbert Romme manteve a divisão do ano em 12 meses, compostos por 30 dias, divididos em semanas de 10 dias, que foram chamadas de decêndios. Instituiu-se cinco dias de feriados, os dias dos sans-culottes, mantendo-se o dia bissexto a cada quatro anos. Cada dia tinha 10 horas, de 100 minutos; cada minuto, 100 segundos. A base de cálculo era decimal, mas nem assim a mudança colou.

A Revolução Francesa mudou , contudo, muitas outras coisas, inclusive a compreensão sobre a História, que passaria a ser orientada para a emancipação humana. Quem se opusesse à marcha do progresso passaria a ser considerado reacionário. Com o tempo, porém, constatou-se que nem todos os adversários dos jacobinos eram reacionários. Muitos consideravam a derrocada do absolutismo francês inexorável, mas não o Terror (Benjamin Constant, Tocquevlle); alguns foram mais longe, criticaram liberais e socialistas por se pressuporem capazes de prever a direção da História (Edmund Burke).

Não faltam os exemplos de revoluções que deram marcha à ré, talvez o mais significativo seja o caso da Revolução Russa de 1917, com a dissolução da antiga União Soviética, que endossa a crítica ao chamado “determinismo histórico” dos comunistas. Mas há um tipo de pensamento particular sobre a Revolução Francesa que renasceu das cinzas na virada do milênio: o anti-iluminismo. O Iluminismo, ao pôr a razão acima da fé, seria origem de todos os atuais problemas do mundo.

Eliane Cantanhêde: Foco no Senado

- O Estado de S.Paulo

Enquanto Bolsonaro se atrapalha com filhos, armas, índios, é o Senado que vai pegar a reforma da Previdência para dar rumos à bagunça

Quanto mais se aproxima o recesso parlamentar e mais a reforma da Previdência avança na Câmara, mais os holofotes atravessam o Salão Verde do Congresso para se concentrar no Senado, que costuma ter políticos mais experientes e fazer menos barulho, mas já impôs três derrotas ao governo Jair Bolsonaro.

O plenário derrotou os "cacos" no Código Florestal e os dois projetos de armas, depois retirados da Câmara pelo Planalto para evitar nova derrota pessoal de Bolsonaro. E o presidente, Davi Alcolumbre, devolveu a medida provisória que empurrava a demarcação de terras indígenas justamente para a Agricultura. É inconstitucional editar MP sobre tema já derrotado no Congresso no mesmo ano.

Alcolumbre é uma dupla surpresa. Assim como Bolsonaro se elegeu presidente da República como o anti-PT, ele se elegeu presidente do Senado como o anti-Renan Calheiros, graças ao apoio do chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, do baixo clero do qual fazia parte, da divisão do MDB e do racha das esquerdas (PT ficou com Renan). Ninguém dava um tostão pelo sucesso dele. Um engano.

Apesar do apoio do Planalto, Alcolumbre não admite o desdém de Bolsonaro pela política e as instituições e assumiu, com Rodrigo Maia e Dias Toffoli, a trincheira da resistência. Continua próximo de Onyx, mas tem lado, o lado do Parlamento. Mesmo sendo um inexpressivo senador do distante Amapá, ou talvez exatamente por isso, ele circula bem na direita, na esquerda, entre governistas e oposicionistas, entre caciques e índios. Sabe ouvir, negociar, decidir.

Affonso Celso Pastore: A perspectiva é de uma recuperação muito lenta

- O Estado de S. Paulo

Para retomar o crescimento não basta a aprovação da reforma da Previdência

A economia internacional não para de causar surpresas. Desacelerações no crescimento estão ocorrendo em países avançados e emergentes, mas os preços dos ativos estão em alta. Nos EUA, depois de queda em 2018, os preços das ações voltaram a crescer, e as taxas das treasuries despencaram ao lado da expectativa de iminente corte na taxa de juros. Contudo, se nos EUA há espaço para um afrouxamento monetário, o mesmo não ocorre na Europa, onde o BCE está preso ao zero-bound. A economia mundial atravessa um período de taxas de juros e de crescimento econômico baixos, que pode não ser a secular stagnation descrita por Larry Summers, mas estará conosco por um bom tempo. Afinal, as taxas reais neutras de juros no mundo caíram, e por trás desse movimento também estão as causas da desaceleração do crescimento mundial.

No Brasil assistimos algo semelhante, com os preços dos ativos em acentuada valorização ao lado de uma economia muito deprimida. Se não fosse o impulso aos preços dos ativos vindo do mercado financeiro internacional, seria difícil explicar por que, diante da estagnação econômica, o Ibovespa superou os 100 mil pontos, e continua crescendo. Seria também difícil explicar a totalidade da queda na inclinação da curva de juros, jogando as taxas das NTN-B de 2030 e 2040 para 3,5% ao ano. Em contrapartida, temos de nos conformar que a queda no crescimento mundial acentua a tendência depressiva da economia brasileira, piorando ainda mais as condições para a retomada do crescimento.

Para retomar o crescimento não basta que o Congresso aprove a reforma da Previdência. Ela exige que, além de melhorar a eficiência do lado da oferta, é preciso elevar a demanda agregada, e embora o Banco Central tenha todas as condições para reduzir a taxa de juros, não há esperança de que tal movimento seja suficiente para nos tirar da depressão.

Ricardo Noblat: Logo com quem o capitão foi arranjar encrenca

- Blog do Noblat / Veja

Fechou o tempo

Quem disse?

“A situação da Amazônia é um triste paradigma do que está acontecendo em muitas partes do planeta: uma mentalidade cega e destruidora que favorece o lucro à justiça; coloca em evidência a conduta predatória com a qual o homem se relaciona com a natureza.”

E quem respondeu?

“O Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer”.

Quem disse foi o Papa Francisco, na manhã de ontem, durante o do 2º Fórum das Comunidades Laudato que acontece em Amatrice, cidade italiana do Lácio, na mesma região de Roma. Quem respondeu à noite, em Brasília, de saída do Palácio da Alvoras para uma recepção no Clube da Marinha, foi o presidente Jair Bolsonaro, quando abordado por jornalistas a respeito do que o Papa dissera.

Francisco lamentou a retirada de povos indígenas de suas terras nativas e afirmou: “O homem não pode permanecer um espectador indiferente diante dessa destruição, nem a Igreja deve ficar em silêncio”. Sem citar o Papa, Bolsonaro devolveu: “Você sabe o que é Triplo A? Andes, Amazônia, Atlântico. São 136 milhões de hectares. O primeiro mundo quer para eles a administração dessa área.”

Na semana passada, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais detectou aumento de 88% no desmatamento da Amazônia comparando junho de 2019 com junho de 2018. São 920 quilômetros quadrados de florestas a menos. Em recente viagem ao Japão, Bolsonaro garantiu que entre Boa Vista e Manaus não há um só quilômetro quadrado desmatado. E desafiou o presidente francês a sobrevoar a região para conferir.

Pois foi exatamente no trecho citado por Bolsonaro que o MapBiomas identificou sérios problemas. Ali, foram mais de 2,1 mil alertas ou focos de desmatamento nos últimos seis meses (janeiro a junho). Cada ponto equivale a uma área de 213 quilômetros quadrados. Segundo os pesquisadores, mais de 95% foram desmatamentos ilegais.

Alon Feuerwerker: Previdência é sinal da estabilidade do ornitorrinco

- Blog do Noblat / Veja

O fim da Era Geisel. E o “supostas”

Era previsível, e foi previsto, que a previdência teria tráfego suave no Congresso. O governo Jair Bolsonaro caminha para liquidar o principal item desta primeira etapa sem precisar ceder espaço político real no Executivo. A promessa formal de execução orçamentária vem sendo suficiente para disciplinar a base potencial. Se o prometido acontecer, serão 10 milhões de reais extras anuais por parlamentar, e 20 milhões para os líderes. Este ano é o empenho, no próximo começa a execução.

Dois fatores adicionam tranquilidade. A opinião pública considera vital a reforma da previdência, e também por isso absorve melhor o que em outra circunstância seria tratado como escândalo de “fisiologismo”. E a maioria esmagadora do Congresso desde sempre orienta-se à direita do centro. Para ela, votar a favor neste caso tem custo político-social aceitável. Uma reforma da previdência custa muito menos para Bolsonaro do que seria para Fernando Haddad.

O governo tem estabilidade porque é um ornitorrinco, aquele animal meio ave e meio mamífero. Controla a base radical com a agenda conservadora nos costumes, a agressividade verbal contra os demais poderes e a exploração da grife Sérgio Moro, o algoz judicial do petismo. E com a retórica antiglobalista. E encanta a direita autonomeada “civilizada”, com a adesão prática ao liberal-globalismo na política econômica, o alinhamento aos Estados Unidos e o acordo Mercosul-UE.

Se PSDB e PT, este nos primórdios, propuseram encerrar a Era (Getúlio) Vargas, o bolsonarismo parece pretender pôr fim a Era (Ernesto) Geisel. Por razões econômicas mas também político-ideológicas. Une o supostamente útil ao certamente agradável. Os economistas prometeram a Bolsonaro que desmontar o Estado vai alavancar o crescimento econômico e portanto produzir empregos. E menos Estado, para o bolsonarismo, é também menos base objetiva para um renascimento socialista.

Geisel era nacionalista, industrialista e, em algum grau, terceiro-mundista. Não podia ser acusado de simpatias à esquerda. Uma prioridade dele foi a eliminação, inclusive física, das cúpulas comunistas, operação executada entre 1974 e 1976. Mas era um governo que enxergava para o Brasil um papel não caudatário, e tomou providências nesse sentido. Uma parte da oposição democrática a ele, inclusive, centrava a crítica na “denúncia” do “sonho de um Brasil-potência”.

O que faz um estadista: Editorial / O Estado de S. Paulo

Quem ambiciona ser estadista deve ter clara visão de mundo e deve se perguntar se essa visão é mesmo a melhor para o país que pretende governar. Há pessoas que, diante dessa questão, respondem, sem espírito crítico, que sua visão é não só a melhor, como é inquestionável. Na verdade, quem assim se apresenta não é um estadista, mas um político medíocre, que mede o mundo pela régua curta de seus preconceitos e não tem, como consequência, rigorosamente nada de grande a oferecer ao país em termos de política, de economia e do bom funcionamento das instituições.

Um verdadeiro estadista não é o que manda, mas o que governa – e governar é tomar decisões depois de ouvir as forças políticas e sociais legítimas e procurar saber quais são as autênticas prioridades das gerações atuais, mas, principalmente, das futuras. Desse modo, é capaz de inspirar os cidadãos, mesmo aqueles que não o escolheram como presidente, a trabalhar por um país melhor. Essa é a diferença entre um projeto de construção e um projeto de destruição. Um dos grandes males do Brasil após a redemocratização tem sido a política de terra arrasada: quem assume o poder anuncia que fará tábula rasa do que veio antes, sem se importar se aquilo que veio antes é essencial para o crescimento do País.

O museu nacional de obras públicas paralisadas: Editorial / O Globo

O cemitério de canteiros fechados representa um investimento de R$ 144 bilhões em deterioração
O Brasil se tornou um grande museu de obras públicas paradas. Mais de 14 mil empreendimentos custeados com recursos federais estão paralisados. Essa foi a conclusão do Tribunal de Contas da União ao consolidar, no mês passado, auditorias em 38.412 empreendimentos financiados pela União nos últimos dez anos. Somam investimento de R$ 725 bilhões e estão registrados nos bancos de dados mantidos por Caixa Econômica Federal, Ministério da Educação, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Dnit) e Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

A análise dessa amostra, que concentra a maioria dos projetos federais, indicou 37% de obras públicas totalmente paralisadas, inacabadas. Juntas, representam investimento de R$ 144 bilhões.

O maior volume de desperdício está nas obras do PAC, legado dos governos Lula e Dilma com inúmeros casos de corrupção. Dos R$ 663 bilhões previstos, tem-se R$ 127 bilhões em obras paralisadas. As de maior custo estão em Goiás (44%), Ceará (42%), Piauí (35%), São Paulo (33%) e Minas (31%).

Censo sem bom senso: Editorial / Folha de S. Paulo

Debate em torno do questionário reduzido em 2020 está politizado em excesso

A controvérsia a respeito do Censo Demográfico 2020 levantou dúvidas relevantes a respeito do questionário a que os brasileiros vão responder no ano que vem, mas a opinião pública permanece pouco esclarecida quanto à pertinência de inovações e críticas.

Instituições costumam ser refratárias a mudanças, mesmo no caso de burocracias de competência e integridade reconhecidas, como o IBGE. Por outro lado, a nova direção do órgão agiu com atropelo intransigente, à maneira do atual governo. A polêmica acabou politizada além do razoável.

O comando do instituto determinou a diminuição do número de questões no censo em cerca de um terço. Argumentou que uma pesquisa enxuta favorece o aumento da cobertura (mais casas recenseadas) e a qualidade das respostas.

Segundo o raciocínio, os temas eliminados podem ser tratados por meio de levantamentos amostrais, registros administrativos e tecnologias de processamento de dados.

Rosa Luxemburgo: um século

Pensadora marxista foi morta há cem anos em um dos eventos que acompanharam o nascimento da República de Weimar

Marcelo Godoy/ O Estado de S.Paulo / Aliás

Uma coronhada na cabeça. Desfalecida, Rosa Luxemburgo foi colocada em um carro por um soldado, antes que lhe disparassem um tiro no crânio. O corpo foi jogado de uma ponte – e só encontrado meses depois. O assassinato da pensadora marxista em 1919 foi um dos eventos dramáticos que acompanharam a derrubada da monarquia alemã dos Hohenzollern e o nascimento da República de Weimar há cem anos. Ele tornaria irremediável a divisão entre social-democratas e comunistas na década que antecedeu a ascensão do nazismo.

No centenário de sua morte, a memória de Rosa Luxemburgo ainda é objeto de disputa. Essa polonesa de Zamosc, que deixou sua família judia para estudar em Zurique (Suíça), conquistou um lugar na história das ideias do século 20. Doutora em economia política, a vida e a obra da pensadora é o tema de três livros – duas biografias – lançados no Brasil. Em Rosa Luxemburgo, os Dilemas da Ação Revolucionária, a professora de filosofia Isabel Loureiro mostra que escrever sobre essa mulher é também mostrar a política, não como cálculo, mas como tragédia.

Rosa se deixou levar pelo destino com a firmeza de um Lutero, diante da Corte Imperial de Worms. O “hier stehe ich, ich kann nicht anders” (aqui estou, não posso agir de outro modo) de Rosa a fez apoiar uma rebelião em 1919, em Berlim, que sabia não ter futuro. Sem outra saída, se não buscar na ação a formação da consciência política, fez o que lhe pareceu um imperativo moral ditado pelo seu objetivo – o socialismo. A derrota seria um momento necessário à vitória.

Loureiro mostra em seu livro o percurso intelectual e político de Luxemburgo, cuja morte representou ainda o fim de qualquer possibilidade de o partido comunista alemão se opor ao atrelamento e à sujeição a Moscou. Crítica do terror bolchevique, Rosa não via o partido como substituto da consciência de uma classe. “A práxis stalinista confirmou de maneira sangrenta a crítica de Rosa Luxemburgo à teoria da organização (do partido) de Lenin”, conforme escreveu Jürgen Habermas em seu Teoria do Agir Comunicativo.

Carlos Drummond de Andrade: Sentimento do mundo

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.

Morre João Gilberto, pai da bossa nova e lenda da música brasileira, aos 88 anos

Artista baiano redefiniu a música brasileira com batida revolucionária de seu violão

- O Globo

RIO - Responsável por uma revolução na maneira de cantar e tocar violão que mudou tudo na música brasileira, João Gilberto morreu neste sábado, 6, aos 88 anos. A causa da morte ainda não foi divulgada. Ele deixa três filhos, João Marcelo, Bebel e Luisa.

Nos últimos dez anos, aquele João Gilberto ícone da bossa nova foi aos poucos perdendo espaço para um personagem complexo. A decadência física, as questões de família, os problemas de dinheiro, os contratos mal feitos, enfim, um conjunto de episódios graves acabou soando mais alto do que o talento de um artista tão grande.

Grande e único. Graças a ele, a bossa nova se consolidou e a música brasileira teve portas abertas para conquistar seu lugar no mundo. A brilhante geração de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque não teria ido tão longe se não fosse a inspiração de "Chega de saudade", disco que João lançou em 1958.


São muitos os capítulos desta história. Primeiro, o do adolescente que cantava coisas do rádio no alto-falante da Praça da Matriz de sua cidade, Juazeiro (BA). Depois, o jovem que foi para Salvador sonhando em se profissionalizar.

Em seguida, a ida para o Rio como crooner do grupo vocal Garotos da Lua. Não deu certo. Demitido por faltar aos compromissos, ele tentou outros caminhos, gravou um disco que não aconteceu, chegou a participar de show de Carlos Machado, passou por maus pedaços no Rio, sem casa, sem trabalho, sem perspectiva. O cantor dessa fase é fã de Orlando Silva, tenta cantar como ele, mas fracassa.

De 1955 a 1957, não se ouviu mais falar em João Gilberto no Rio que o rejeitara. São os dois anos que ele passa em Porto Alegre, Diamantina e, por menos tempo, na casa dos pais em Juazeiro. Quando volta ao Rio, é outro homem, outro artista.

Consta que, durante ao seis meses em que morou com a irmã na cidade mineira, não saiu de casa, pouco falou, dia e noite abraçado ao violão em busca de ritmos e harmonias que acabariam dando forma definitiva a um estilo que logo seria visto por outros músicos como novo, quando não revolucionário. Novo estilo, nova bossa, bossa nova.

Embora muitos fatos relacionados a João Gilberto fossem criados, como se sua vida tivesse de ser tão extraordinária quanto sua arte, a transformação que ocorreu nos seis meses em Diamantina realmente aconteceram, num estranho processo de reinvenção difícil de explicar. Como terá chegado àquela batida de violão?

Por que mudou tão radicalmente o timbre de voz? E onde foi buscar a emissão, a divisão, a precisão, o jeito de cantar, de início aparentemente transgressor, mas, na realidade, preciso, adequado a todo tipo de canção, brasileira ou não? E de que forma voz e violão se integraram como uma coisa só, feitos um para o outro.

O fato é que o João Gilberto que volta ao Rio em 1957 vai, como diria Tom Jobim, influenciar “toda uma geração de arranjadores, guitarristas, músicos e cantores”. Aos 26 anos. Criou assim a bossa nova, fez seguidores, ficou famoso. Cultuado no Brasil e admirado no mundo inteiro, gravou discos aqui e nos Estados Unidos, excursionou à Europa, apresentou-se em festivais, foi aplaudido no México e no Canadá, na Alemanha e no Japão.

Com esporádica passagens pelo Brasil, João Gilberto fez de Nova York o seu pouso. Em 1979, volta em definitivo. A partir de então e até 2008, ano de seu último show, cada subida ao palco é um acontecimento. Ou quando acontece, sempre com lotação esgotada, ou quando não, como o do Canecão (em 1979), cancelado por problemas de som que só o preciosismo de seus ouvidos detectou.

Cancelou também um show no Municipal, em 2011, pelo qual seu produtor seria condenado a devolver mais de R$ 500 mil ao teatro. Cancelou ainda, por problemas de saúde, a excursão comemorativa de seus 80 anos.

A maioria de seus últimos shows no Brasil deu-se em seu formato preferido: ele sozinho, terno e gravata, banquinho e violão. Sua relação com a plateia tinha de ser mutuamente respeitosa. Em várias ocasiões, zangado ou com um simples “psiu”, obrigou o público a fazer silêncio para ouvi-lo.

Ruy Castro: João Gilberto teve uma vida dedicada a aperfeiçoar a perfeição

- Folha de S. Paulo

Seu 'Chega de Saudade', de 1959, está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz Caminha para o Brasil

Sua gravação do samba “Chega de Saudade”, de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, feita no Rio a 10 de julho de 1958 e distribuída sem alarde ou expectativa dois meses depois, tinha 1 minuto e 59 segundos de duração. Mas nunca tão pouco tempo de música significou tanto —dividiu a cultura brasileira em antes e depois. No mesmo espaço de tempo, João Gilberto, cantor e violonista baiano, 27 anos, saltou do nada para o centro das discussões.

Num país de comunicações precárias, aquele disco de 78 rpm alterou corações e mentes, a favor ou contra, onde fosse tocado. O canto a seco e sem ornamentos de João Gilberto não era propriamente novidade, mas, aliado ao violão que produzia um ritmo contagiante e inesperado —logo depois chamado de bossa nova—, à complexidade harmônica de Jobim e à sofisticação coloquial da letra de Vinicius, resultaram num todo revolucionário.

Meses depois, ainda em 1958, novo 78 rpm de João Gilberto, contendo o samba “Desafinado”, de Jobim e Newton Mendonça, consolidou a proposta. Havia uma nova música no ar, e João Gilberto era seu intérprete. Outras faixas, de novos e velhos compositores, foram gravadas nos meses seguintes, formando o LP “Chega de Saudade”, lançado em 1959, e que está para a bossa nova como a carta de Pero Vaz Caminha para o Brasil.