- Folha de S. Paulo / Ilustríssima (4/8/2019)
Descrentes de utopias estatizantes e coletivistas, libertários e anarcocapitalistas sonham com um mundo de comunidades autônomas com serviços organizados pela esfera privada, sem a intervenção de um poder central.
Na margem ocidental do rio Danúbio, entre a Croácia e a Sérvia, Liberland tem área de 7 km², equivalente a três vezes a do Principado de Mônaco. Seus habitantes dão a palavra final sobre qualquer lei e podem vetar normas que atentem contra a vida, a propriedade e a liberdade.
Mesmo não sendo reconhecido por nenhum Estado, o micropaís, fundado em 2015 por um ativista tcheco, tem uma Constituição, cerca de mil “cidadãos” espalhados pelo mundo e um padrão monetário baseado em criptomoedas, o mérito liberlandiano.
Embora seja uma excentricidade geopolítica, o lugarejo tem relevância simbólica. Representa um experimento libertário, em que o Estado existe como uma fina moldura e a vida segue seu curso sem que haja interferência na economia e nas condutas individuais, desde que não causem prejuízo à liberdade e à existência de outras pessoas. Há cerca de 500 mil pedidos de cidadania ao país atualmente em análise, dos quais pelo menos 5.000 são de brasileiros.
Visto do Brasil, Liberland é um pontinho distante nos Bálcãs, mas os entusiastas de uma sociedade livre das amarras do Estado estão longe de terem força desprezível por aqui.
Ao contrário, a influência de libertários, com raízes na França do século 18, e seus irmãos ainda mais radicais, os anarcocapitalistas, um movimento estruturado no século 20, vem crescendo rapidamente.
Estes ultraliberais estão hoje presentes em dezenas de institutos espalhados pelo Brasil, ocupam cargos importantes no governo federale dominam grande parte de setores da nova economia digital, como o de criptomoedas. Fazem barulho nas redes sociais e possuem uma presença considerável de jovens na faixa entre 20 e 30 anos.
Grosso modo, libertários aceitam o Estado como pouco mais do que um garantidor de fronteiras. Anarcocapitalistas (ou “ancaps”), um subgrupo libertário, nem isso aceitam. Para eles, todos os serviços, inclusive a segurança, devem ser privados. “Imposto é roubo” é o grito de guerra de todos.
Nos EUA, a figura mais visível é a do ex-candidato a presidente Ron Paul, que obteve 0,5% dos votos em 1988 concorrendo pelo Partido Libertário.
“Lá os libertários são considerados um grupo meio maluquinho, até para se diferenciar do termo ‘liberal’, que foi capturado pela esquerda”, diz Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil e colunista da Folha, que se define como um “ancap”. “A gente ficou maior que eles [americanos]: mais influente, mais profissional. No Brasil, você tem libertários e anarcocapitalistas em posições de comando”, afirma.
O universo liberal contempla, em seu círculo mais amplo, todas as vertentes que defendem um papel preponderante do indivíduo na organização da sociedade e no funcionamento da economia.
Liberais “mainstream” pregam a privatização de empresas e as parcerias público-privadas, com o Estado servindo de garantidor de regras e fiscalizador de serviços. Estiveram em voga no Brasil nos anos 1990, no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Sempre consideraram os ultraliberais uma franja extremista, mas agora o jogo parece estar se equilibrando.
Libertários e anarcocapitalistas são adeptos da Escola Austríaca, cujas referências maiores são os economistas Ludwig von Mises (1881-1973) e Friedrich Hayek (1899-1992). Para eles, a economia não deve ser regulada pelo Estado, mas funcionar a partir de interações voluntárias e desimpedidas entre agentes privados.
Outro expoente, sobretudo para libertários, é a escritora russa Ayn Rand (1905-1982), uma defensora radical do racionalismo e do objetivismo, como na novela “A Revolta de Atlas”, de 1957. O americano Murray Rothbard (1926-1995) levou o pensamento dos chamados “austríacos” um passo adiante e hoje é considerado o pai do anarcocapitalismo.
Em dezenas de livros e artigos, pregou que, para haver liberdade, o Estado deve, simplesmente, deixar de existir. “O Estado oferece um canal legal, ordeiro e sistemático de predação da propriedade privada. Torna certeiro, seguro e relativamente pacífico o sustento de uma casta parasita da sociedade”, escreveu em uma de suas obras mais importantes, “A Anatomia do Estado”, de 1974.
Para Rothbard, é falsa a acepção hobbesiana de que o Estado é um contrato social. “Ele sempre nasceu da conquista e da exploração”, diz.
Há ecos no anarcocapitalismo de seu primo talvez mais famoso, o anarquismo de esquerda. O principal, obviamente, é a negação do Estado nacional, uma invenção do século 17 surgida do Tratado de Vestfália (1648), que pôs fim a uma série de guerras religiosas na Europa e reconheceu a soberania de um monarca sobre seu território.