quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Opinião do dia: Ricardo Rangel*

Estamos vendo agressões diárias à imprensa, à academia, à ciência, à arte, à cultura, ao meio ambiente, a países amigos, às minorias, à lei, à lógica, ao bom senso, às boas maneiras — enfim, à democracia e à civilização. Quem ousa discordar é descartado e, se isso não é possível, linchado nas redes. Seria de se esperar que a sociedade—ou, ao menos, sua parcela mais preparada, que compreende a importância da democracia e dos valores ocidentais — reagisse com vigor.

Em que pesem os muitos protestos, é assustadora a quantidade de pessoas preparadas que releva, relativiza, minimiza, justifica ou abertamente defende as infâmias de Bolsonaro. Essa complacência se explica pela revolta contra o PT e pelo raciocínio “vamos consertar a economia, o resto a gente vê depois”.

A complacência não se justifica. A revolta contra o PT perdeu o objeto: derrotado na eleição, fora do poder há três anos, com seu chefe e dono preso, o partido está fora da equação. A discussão não é mais sobre se Bolsonaro é melhor do que Haddad, mas sobre se sua conduta é aceitável em uma sociedade democrática.

*Ricardo Rangel é empresário. ‘Bolsonaro e o Caliban’, O Globo, 13/8/2019

Roberto Freire reforça necessidade de frente ampla para se opor aos desmandos de Bolsonaro

O presidente do Cidadania, Roberto Freire, concedeu entrevista (veja abaixo) ao jornalista Antônio Sérgio Catatau para o portal Difusora TV. Na conversa, o dirigente destacou a importância de uma frente democrática para lutar contra os desmandos do presidente Jair Bolsonaro (PSL), contra as instituições, Constituição e liberdades individuais.

Na conversa, Freire fala ainda sobre as dificuldades enfrentadas em reunir toda oposição em um movimento, sobretudo o PT e partidos satélites. Para ele, esses partidos foram os principais responsáveis pela eleição do atual governo.

Além disso, Roberto Freire analisa as transformações políticas e sociais que ocorrem no mundo e destaca o protagonismo político do Cidadania.

Cristovam Buarque||Onde erramos: de Itamar a Temer

(Correio Braziliense – 13/08/2019)

Em janeiro de 2018, fui convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Disse que aceitaria falar sobre porque os democratas progressistas perderam. A palestra se transformou em pequeno livro que será publicado em breve, em que lembro que, no próximo ano, completaremos 35 anos de democracia, dos quais 26 com democratas-progressistas no poder; e o eleitor decidiu nos derrotar.

Depois de 26 anos no poder, 1/4 de século e de República, cinco presidentes — Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer —, o quadro que deixamos não satisfez ao eleitor que nos derrotou, mas ainda nos negamos a fazer autocrítica, entender onde nós, os democratas progressistas, erramos.

Erramos ao desperdiçar a chance de um pacto nacional para darmos coesão política ao presente e rumo ao futuro. Consideramos que nosso papel era apenas recuperar a democracia na política e acelerar o crescimento na economia com mínimas ajudas aos pobres, esquecendo que tínhamos um país a construir: eficiente, justo, pacífico, sem pobreza, sustentável. Ignoramos as imensas transformações em marcha na civilização, sob a forma da globalização, da inteligência artificial, dos limites ecológicos ao crescimento, da realidade contemporânea em que o conhecimento é o principal vetor do progresso econômico.

Desprezamos a experiência de que não se constrói justiça social sobre economia ineficiente. Erramos ao ficarmos presos a ideias obsoletas na esquerda e cairmos em vícios da direita. Prisioneiros do imediatismo eleitoral, submetemo-nos ao corporativismo de empresários e de trabalhadores; preferimos atender aos sindicatos do que ao povo, ao presente do que ao futuro. Em vez de usar o poder para transformar, preferimos nos acomodar para sobreviver no poder, optamos pelo populismo.

Merval Pereira || Almas penadas

- O Globo

Diálogos entre Moro e Dallagnol pairam sobre a cabeça dos juízes como almas do outro mundo, que não existem, mas assustam

O próximo dia 27, uma terça-feira, pode ser decisivo para a sobrevivência da Operação Lava-Jato. Para esse dia estão marcados dois julgamentos cruciais, um no Supremo Tribunal Federal, outro no Conselho Nacional do Ministério Público.

A Segunda Turma do STF vai retomar o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Lula, que já tem dois votos contrários, os dos ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia. O voto do decano Celso de Mello deve ser o de desempate, pois o mais provável é que Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski votem a favor do habeas corpus.

No Conselho Nacional do Ministério Público, haverá julgamento da tentativa de reabrir um processo contra o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol.

A coincidência dos dois julgamentos pode ser explosiva, caso os resultados sejam percebidos pela opinião pública como uma tentativa de freio na Operação Lava-Jato.

Mas há também a coincidência por trás dos dois julgamentos, as mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol, e entre este e seus colegas procuradores. Conseguidas ilegalmente, através de hackeamento, cujos suspeitos de autoria estão presos, e pelo menos um confessou.

No julgamento do habeas corpus de Lula, a base é a suposta parcialidade do então juiz Sergio Moro. Começou antes da divulgação pelo site Intercept Brasil dos diálogos, e não usa as reproduções como prova, por serem ilegais.

Míriam Leitão || Por que o país parou no semestre

- O Globo

Expectativa era de crescimento, mas a economia parou no início do governo Bolsonaro. Estilo caótico do presidente atrapalha a retomada

O segundo trimestre pode ter ficado negativo, como mostrou o Banco Central, ou ligeiramente positivo como ainda está em algumas projeções. Se o IBGE trouxer um número acima de zero, o governo terá fugido da recessão técnica no primeiro semestre da administração, mas isso é detalhe estatístico. O fato é que o país parou no começo do governo Bolsonaro, e havia expectativas positivas na economia. O estilo caótico de o presidente governar, sem foco no que é relevante, criando conflitos diários, é em grande parte responsável para essa reversão da tendência.

Após a eleição, o mercado financeiro e os empresários estavam apostando que o ministro Paulo Guedes entregaria a agenda prometida na campanha. Ainda aposta em certa medida. As promessas foram exageradas em alguns pontos. Zerar o déficit no primeiro ano, por exemplo. Ele prometeu reformas e pelo menos uma está andando. Falou em choque de produtividade, abertura comercial, redução da dívida, R$ 1 trilhão de privatização e venda de imóveis públicos. As dimensões são inatingíveis.

Nos primeiros seis meses, houve a aprovação da reforma da Previdência. E isso é um avanço importante. Mas se deve ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, certas lideranças partidárias e alguns integrantes da equipe econômica. O presidente criou uma série de crises, não montou base no Congresso, preocupou-se com a suspensão de radares das estradas, o fim das cadeirinhas de criança, seu decreto de armas refeito sete vezes, em louvar a ditadura, em manter o clima de campanha. Cada dia que ele se dedicou a um assunto aleatório estava desperdiçando o melhor momento de qualquer governo que são os primeiros meses.

O ministro Paulo Guedes tem declamado que “foram 30 anos de social-democracia e apenas seis meses de liberal-democracia”. Ele sabe que os últimos 30 anos não foram homogêneos. Do ponto de vista econômico, há muita diferença entre o governo Fernando Henrique, que privatizou e enxugou a máquina, e o governo do PT que criou estatais e inchou a máquina. Michel Temer tomou muitas decisões que ajudaram o governo atual. A maior abertura ocorreu com Fernando Collor. E ainda não vimos a cara da liberal-democracia até o momento. Um governo que quer impor uma cartilha fundamentalista na educação e nos costumes, esconder estatísticas desfavoráveis e definir até a propaganda do Banco do Brasil não é liberal. E é cada vez menos democrático.

Elio Gaspari || A falta que faz um chanceler

- O Globo / Folha de S. Paulo

A declaração de Jair Bolsonaro de que a derrota de Mauricio Macri na prévia eleitoral argentina pode significar uma vitória da “esquerdalha” de Dilma Rousseff, Hugo Chávez e Fidel Castro foi coisa inédita, assombrosa. Ele pode achar o que quiser, mas não tem mandato para meter o Brasil numa disputa eleitoral argentina. Falando de questões internas, pode se intitular “Capitão Motosserra” ou expor sua teoria da relação do meio ambiente com o cocô. Bolsonaro é assim e, sem dúvida, prefere ver os brasileiros discutindo cocô, em vez do cheiro de uma recessão na economia.

Bolsonaro não gosta dos governos civis que o antecederam. Tudo bem. Ficando-se com os exemplos que lhe deixaram os militares, salta aos olhos uma lição: falta-lhe um chanceler ou, pelo menos, um ministro das Relações Exteriores com as qualidades profissionais de Mario Gibson Barboza (governo Médici), Azeredo da Silveira (Geisel) e Saraiva Guerreiro (Figueiredo). Os três descascaram abacaxis nas relações com a Argentina sem criar atritos. Graças aos dois primeiros, conseguiu-se negociar em relativa harmonia a construção da Hidrelétrica de Itaipu.

Médici aguentou um desaforo do general presidente Agustín Lanusse. Numa visita a Brasília, ele enfiou um caco no discurso que fez no Itamaraty, e sua comitiva chegou à grosseria de cortar do comunicado conjunto uma referência à “inquebrantável amizade” dos dois países. Na costura da calma estava Mario Gibson.

Lanusse foi substituído pelo demagogo larápio Juan Perón. Tinha tudo para acabar em encrenca. Ele vivia exilado na Espanha. Em 1964, tentou descer na Argentina mas foi barrado pelo governo brasileiro no aeroporto de Galeão e teve que voar de volta. Ainda por cima, era amigo do presidente deposto João Goulart e assumiu criando dificuldades para a construção de Itaipu. O general Ernesto Geisel detestava-o e disse ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, que não negociaria “com quem está de má-fé, sem honestidade de propósitos”.

Bernardo Mello Franco || Divórcio litigioso

- O Globo

De ator pornô a deputado, Alexandre Frota viveu uma relação intensa com o bolsonarismo. Ontem ele foi expulso do PSL por criticar o chefe

Alexandre Frota, quem diria, virou vítima do bolsonarismo. O ator pornô grudou no capitão para entrar na política. A relação durou menos que seu
casamento com Cláudia Raia. Ontem ele foi expulso do PSL, acusado de traição ao chefe.

Antes de se candidatar, Frota investiu no insulto como arma de propaganda. Pelas redes sociais, ofendeu e difamou celebridades associadas à esquerda. Sofreu uma série de condenações na Justiça, mas conquistou a projeção que desejava.

Filiado ao PSL, o astro de “Garoto de Programa” e “O Homem da Pistola de Ouro” ressurgiu como porta-voz do cidadão de bem. Complementou o novo papel com discursos contra a corrupção e a favor da Lava-Jato. Foi eleito com mais de 155 mil votos.

Na lua de mel com Bolsonaro, Frota chegou a ser cotado para o Ministério da Cultura. A pasta acabou antes que ele assumisse a cadeira. Resignado, o ator foi à luta no Congresso. “Já fumei, cheirei, viajei o mundo. Agora estou focado na Câmara”, anunciou.

Vera Magalhães || Quem paga o pacto?

- O Estado de S. Paulo

A ideia de atrelar a discussão da reforma da Previdência a uma série de demandas de Estados e municípios, embalada pelos senadores como uma virtuosa repactuação federativa, nada mais é do que tentar fechar com rolha um dique que já está com fissuras por toda parte, empurrando os problemas fiscais graves desses entes com a barriga em vez de resolvê-los. E pior: colocando uma espada sobre o governo com o risco de atrasar a reforma com temas alheios a ela.

Se a discussão simultânea da indicação de Eduardo Bolsonaro para a embaixada de Washington já havia “encarecido” a reforma, como mostrei aqui, o pacotaço de bondades para Estados faz com que o céu seja o limite para essa conta.

Uma das medidas, que acaba com a Lei Kandir e permite a Estados tributarem as exportações com ICMS, vai contra um dos princípios da(s) reforma(s) tributária(s), de criar o IVA, e faz com que governos quebrados voltem a sanha arrecadatória para um dos poucos setores da economia que vão bem: o agronegócio exportador.

Enquanto a lei não acaba, no entanto, os Estados embutiram no pacotão do pacto federativo um repasse de R$ 4 bilhões relativos à compensação da Lei Kandir para já, afinal ninguém é de ferro.

Outro item do pacote, a ideia de empurrar para 2028 a decisão de que Estados e municípios precisam quitar sua dívida com precatórios, não resolve essa chaga, apenas a empurra para futuros governantes. Essa pode contar com a simpatia do governo federal, que anda preocupado com a possibilidade de ter de socorrer os entes, comprometendo ainda mais sua capacidade de cumprir a meta fiscal.

As propostas que dizem respeito à divisão da receita de royalties já tiveram manifestações favoráveis de Paulo Guedes, mas a ideia de condicionar a aprovação da Previdência a isso certamente não estava no horizonte do ministro, e faz com que a tramitação do texto na Casa, que se esperava que fosse rápida e menos controversa que na Câmara, já não seja mais um passeio tranquilo.

E o que seria apenas uma PEC paralela para tratar da inclusão de Estados e municípios nas regras da reforma, algo racional, virou um cipoal de PECs. A tentativa do governo será a de se mostrar simpático aos pleitos, mas desvincular as discussões.

Paulo Delgado* || Blow-up

- O Estado de S.Paulo

Só esfriando os ânimos se diminui o potencial da combustão que está no ar

Blow-up é a ampliação do negativo. Ao revelar a cena e desconfiar da aparência do presidente, que fala em mudança e age como se não a quisesse, o Parlamento entendeu o recado. Partiu para agenda própria e precisa de ímpeto pontual e permanente diante do quotidiano disperso e ambíguo do Executivo.

Tem ainda a temporada no inferno por que passam o Judiciário e o Ministério Público. Seria bom os dois interromperem por um momento a troca de ofensas para explicarem, em nota conjunta, o que é mesmo a justiça para todos.

Convenhamos, não dá mais para alguém dizer essas coisas desse jeito. Sem modos nunca houve sociedade livre. Tem sido comum presidentes desfrutarem uma perigosa liberdade de expressão visando a dirigir os sentimentos da Nação para si próprios. Opiniões e atitudes nesse cargo deveriam ser fatos políticos extraordinários, e não o retrato dos princípios pessoais que estão por trás deles.

Ninguém é herdeiro das lutas do povo por ganhar uma eleição. Especialmente numa época em que milhões de mensagens angulam a percepção do eleitor numa determinada direção, violando sua privacidade. O escondido embaralha os critérios da pessoa, o flagrante esconde o principal. O truque da eleição continua.

Perder o equilíbrio da aparência para ser notícia contém uma carga de orgulho que, contrariada, pode desabar em violência. O insulto é uma forma de defesa. Nomear os outros para segregá-los, simplificando o sentido de tudo, revela um Brasil gigante anêmico.

Nada do que só fecha a porta ao entendimento é liberalismo. Tudo esconde seu oposto, especialmente venenosas atitudes cênicas. E ao deixar a economia se conduzir liberal, enquanto deixa claro que o que vale são acertos de contas, o presidente revela um mal inconsciente em sua compreensão das coisas. Explica a seus eleitores o que quer condenar supondo a rendição do País, que não gosta. Mais rígido, mais se enrola no paradoxo.

Fábio Alves* || Pé no freio

- O Estado de S.Paulo

IBC-Br aponta para recessão ao registrar queda de 0,13% no segundo trimestre do ano

O desempenho da economia no segundo trimestre deste ano decepcionou até os mais pessimistas e agora até o crescimento do PIB em 2019 corre o risco de ficar abaixo do consenso das projeções dos analistas, de 0,81%.

A crise na Argentina, com a forte turbulência nos mercados deflagrada após o resultado das prévias das eleições presidenciais, deve dificultar mais a recuperação da economia brasileira.

Os indicadores de atividade em junho ficaram, em sua maioria, muito aquém do esperado. O volume de serviços prestados, por exemplo, recuou 1,0% em junho ante maio, enquanto os analistas esperavam uma queda menor, de 0,20%. No segundo trimestre, os serviços encolheram 0,6%. A queda na indústria brasileira foi de 0,7% entre abril e junho deste ano. E o comércio recuou 0,3% no período.

Já o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br), divulgado nesta semana, apontou para uma recessão técnica no Brasil ao cair 0,13% no segundo trimestre, após já ter registrado uma retração de 0,52% no primeiro trimestre. O IBC-Br é considerado uma prévia do PIB, cujo resultado para o segundo trimestre será divulgado pelo IBGE no dia 29 deste mês.

Por que a atividade econômica surpreendeu negativamente nos últimos meses?

Roberto DaMatta || Combinações

- O Estado de S. Paulo

Somos contrários ao debate e esse viés traz à tona nossa velha matriz autoritária. Nela, discordar é equivalente a rebeldia e a desobediência, pecados mortais nos sistemas hierarquizados

Quando combinamos coisas separadas, digamos, bananas com laranjas (uma “baranja”, Oriente com Ocidente, igualdade com hierarquia, riqueza despreocupada com pobreza como destino, fogo com água – a lista é imensa e complexa – juntando imaginativamente objetos de natureza diferenciada, causamos espanto e surpresa.

Pois inventamos algo com o potencial de ser lido como um insulto (“filho de uma cadela” ou “burro doutor”), uma abominação (Lúcifer, o anjo mau), uma extraordinária novidade (o samba-jazz o surrealismo ou a poesia sem rima), uma ironia crítica como fez o economista Edmar Bacha ao, em 1974, em plena ditadura militar, criar Belíndia. Um país não gramatical – metade democrático e rico como a Bélgica e metade como a Índia, atrasado e pobre; ou, simplesmente, algo tolo, mas curioso, como “baranja”, uma fruta inventada

O denominador comum de todas as combinações é a criatividade resultante do encontro negativo ou positivo (mas sempre curioso) de coisas, papéis sociais, ritmos, bebidas, comidas, roupas, moradias, conceitos ou linguagens antes separados pelo tempo, pela moralidade, religião, cultura. Coisas e instituições que, em muitos casos, eram tidas como estanques como o masculino e o feminino, a juventude e a velhice, o dia e a noite.

Se os sociólogos franceses do início do século 20, inspirados em Durkheim, falaram da sociedade como um sistema de classificação, eles deixaram de lado o fato de que, se em cada sistema havia um “lugar para cada coisa; e cada coisa em seu lugar”, existia – em paralelo – uma luta clara ou oculta com gestos, objetos e valores que, por dentro e por fora, desafiam as classificações.

Luiz Carlos Azedo || A projeção de poder

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Regras básicas da política externa são ignoradas por Bolsonaro, que não mede as consequências de suas atitudes e declarações”

A política externa está associada à projeção de poder de um Estado ou governo com base nos seus interesses nacionais. Essa é a regra básica, que pauta as relações entre mais de 190 países. É uma política pública, definida por decisões e programas governamentais que devem ter correlação com sua política interna. O Itamaraty conquistou o respeito mundial, desde o Barão do Rio Branco, pela excelência de seus quadros e habilidade ao conduzir os interesses brasileiros em meio aos conflitos e negociações nos foros internacionais. Tudo isso, porém, de nada vale para o presidente Jair Bolsonaro.

Regras básicas da política externa são ignoradas por Bolsonaro, que não mede as consequências de suas atitudes e declarações. Por exemplo, seus comentários sobre as eleições argentinas serviram para alimentar a campanha do adversário de seu aliado Mauricio Macri, que disputará a reeleição à Presidência em 27 de outubro. O candidato peronista Augusto Fernández, que venceu as prévias de domingo passado com grande vantagem, classificou Bolsonaro, ontem, de “racista, misógino e violento”, por dizer que o Brasil poderia ver uma onda de imigrantes fugirem da Argentina se políticos de esquerda vencerem as eleições presidenciais de outubro.

O peronista tirou por menos: “Com o Brasil, teremos uma relação esplêndida. O Brasil sempre será nosso principal sócio. Bolsonaro é uma conjuntura na vida do Brasil, como Macri é uma conjuntura na vida da Argentina”, disse Fernández, em entrevista ao programa Corea del Centro, da emissora Net TV. Será? Bolsonaro passa a impressão de que não está realmente empenhado no acordo do Mercosul com a União Europeia, cuja assinatura caiu no seu colo, porque foi resultado de um grande esforço pessoal de Macri, apesar do empenho continuado dos diplomatas brasileiros, que negociaram os termos do acordo por décadas.

É óbvio que se a oposição ganhar as eleições na Argentina, toda estratégia de Bolsonaro para a América do Sul estará comprometida, pois o regime de Nicolás Maduro na Venezuela sairá do isolamento em que se encontra no continente, reforçando sua sobrevida, hoje decorrente dos apoios da Rússia, essencialmente militar, e da China, sobretudo econômico. Se considerarmos a crise política no Paraguai, que quase provocou o impeachment do presidente Mario Abdo Benitez, por causa de uma negociação secreta no âmbito do acordo firmado entre Brasil e o país vizinho, para definir novos termos pelo pagamento da energia produzida por Itaipu, a situação pode se complicar muito no Mercosul.

Bolsonaro esticou a corda com a União Europeia. Quando deixou de receber o chanceler francês, Jean Yves Lê Drian, para cortar o cabelo, ou desdenhou da ajuda financeira da Alemanha e da Noruega para o Fundo da Amazônia, Bolsonaro agiu de caso pensado: demonstrou a intenção de se distanciar de parceiros europeus que não comungam com seus valores e posições ideológicas. É a contrapartida, por exemplo, da simpatia que tem pelos líderes de extrema direita Marine Le Pen, na França; Matteo Salviani, na Itália; e Nigel Farage, na Inglaterra. Todos têm um projeto de poder similar ao de Viktor Orban, na Hungria, parceiro de Bolsonaro na política internacional.

Alinhamento
É aí que a indicação do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) para a embaixada do Brasil em Washington, num acordo pessoal com o presidente norte-americano, Donald Trump, começa a fazer todo sentido. Bolsonaro quer estreitar os laços pessoais com o presidente Trump e vê nisso uma espécie de blindagem contra qualquer conspiração que possa envolver o Departamento de Estado norte-americano. Como sua cabeça funciona com os paradigmas da antiga “Guerra Fria”, faz sentido.

Bruno Boghossian || Bolsonaro e a tirania da maioria

- Folha de S. Paulo

Governo deturpa conceito de democracia ao tentar impor sua agenda ideológica

Jair Bolsonaro finge que não entendeu ainda o papel de um governo. Fazendo festa para o público evangélico da Marcha para Jesus, no fim de semana, ele disse que não tem preconceitos e não discrimina ninguém, mas avisou que “as leis existem para proteger as maiorias”.

O presidente fazia uma defesa explícita da pauta conservadora para frear as chances de expansão dos direitos das minorias. “É a única maneira que temos para viver em harmonia”, acrescentou. “O que minoria faz, sem prejudicar a maioria, vai ser feliz. Não podemos admitir leis que firam nossos princípios.”

Bolsonaro sabe que as leis existem para garantir os direitos de todos os cidadãos, não de grupos majoritários. Ainda assim, ele prefere fermentar um conceito deturpado de democracia para impor sua agenda ideológica, receber aplausos de seu eleitorado e expandir seus poderes.

O apelo ao desejo da maioria faz parte do livro dos governantes autoritários. Eles agem como se as vontades dominantes numa sociedade fossem uma justificativa para ultrapassar os limites da lei ou retirar direitos de grupos menores.

Ruy Castro* || Fezes na cabeça

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro estava ficando repetitivo, só pensando em cocô. Mas isso agora pode mudar

Andei pensando em demitir Bolsonaro desta coluna. O papel em que ela é impressa não tem a gramatura necessária para absorver as lambanças que lhe saem pela boca. Além disso, o jornal é um objeto que entra nas casas de família e costuma ser lido ao café da manhã. Não pega bem ficar citando um elemento que, depois de recomendar lavar o pênis com água e sabão, como fez há tempos, acaba de sugerir que se faça cocô dia sim, dia não. Como Bolsonaro só fala para seus eleitores, esta deve ser a ideia que ele faz deles —gente que não sabe se cuidar direito.

É preciso também considerar as crianças. Um jornal pode ser distraidamente deixado aberto, em cima da mesa, ao alcance delas —e quem pode prever as consequências da exposição de uma frase de Bolsonaro a uma criança? Você dirá que ele está à solta na televisão e as crianças podem vê-lo sem querer. É verdade, mas, nesse caso, cabe aos pais retirá-las da sala quando farejarem que ele vai aparecer.

É uma prerrogativa dos colunistas escolher sobre quem desejam escrever. Seja como for, o critério deve ser sempre jornalístico. E Bolsonaro há muito deixou de oferecer surpresa. Pode-se apostar que, todo dia, irá disparar suas barbaridades, mas contra os alvos de sempre: a Amazônia, as reservas indígenas, os direitos humanos, o desarmamento, a imprensa. E está ficando repetitivo —depois do cocô dia sim, dia não, veio agora com o cocô petrificado. Fezes não saem de sua mente. Já me perguntei: por que ele não faz algo realmente radical e tira as calças pela cabeça na frente de um general?

Hélio Schwartsman || A cada qual sua jabuticaba

- Folha de S. Paulo

Argentina criou sistema de prévias partidárias peculiar

Cada povo cultiva suas próprias jabuticabas. Os argentinos criaram um sistema de prévias partidárias simultâneas que, na teoria, até fazia sentido. Serviria para que as legendas definissem seus candidatos mais competitivos. Na prática, porém, como as principais siglas não lançam mais do que uma chapa, as primárias platinas viraram um jeito meio esquisito de fazer uma eleição pelo preço de duas.

O subproduto interessante desse sistema é que temos, em agosto, uma eleição muito semelhante à oficial (marcada para outubro), com voto obrigatório e tudo, que indica com precisão as tendências do eleitorado, permitindo fazer o bypass das pesquisas, que nunca foram muito boas naquele país.

O resultado das prévias do último domingo, que deram à chapa kirchnerista uma vantagem de 15 pontos percentuais sobre o presidente Mauricio Macri, surpreendeu quem confiava nas pesquisas, que apontavam a oposição apenas ligeiramente à frente, mas está em linha com o algoritmo mais básico usado pelo eleitor. E o que diz esse algoritmo? É simples: se a situação da economia está boa, mantenha o governante e seu partido; se está ruim, puna-os.

Rosângela Bittar || Quase primavera

- Valor Econômico

O centro abre caminhos concretos para a sucessão

Rodrigo Maia (DEM), presidente da Câmara, demonstrou, no centro do programa "Roda Viva", segunda-feira, que está sabendo muito bem o que fazer, o que dizer, para onde ir. Provou conhecer suas possibilidades, suas condições para buscá-las, a função de hoje e o que ela promete ao futuro. Rodrigo Maia tem um discurso, um programa, uma ação bem delineada e é hoje, mais do que sempre foi em outras rodadas, um dos candidatos a presidente da República para concorrer com Jair Bolsonaro. Está bem situado no grid, neste momento em que, aproximando-se a primavera, o circuito político parece mais claro.

Intensificam-se, também, as evidências de movimentação do apresentador Luciano Huck, no sentido de manter acesa a chama da sua candidatura, que quase foi em 2018 e que muito poderá ser em 2022. Estava mais engajado na política do que deixava transparecer, antes, não custa estar camuflando a mesma disposição agora. Perdê-lo de vista, só porque parece integralmente dedicado às atividades de entretenimento, é um equívoco. Huck se movimenta para o diálogo com pessoas respeitáveis da política, em diferentes Estados, abrindo espaço na disputa nacional.

João Doria (PSDB), governador de São Paulo, é o candidato mais óbvio e declarado à procura de um discurso e um projeto. Ainda contraditório, ainda sem adesões muito firmes fora do seu partido, mas vai pavimentando o espaço da disputa.

Que também pode se abrir novamente para João Amoêdo (Novo), o candidato da última campanha presidencial cujo desempenho foi crescendo mais para o final da campanha, quando se fez notar diante da polarização entre extremos que um grande contingente do eleitorado recusava. No momento, está jogando sem sair do lugar mas atento ao desempenho do governo de Minas, vitrine do seu partido.

O centro parece aparentemente congestionado, mas não está. Tem os nomes citados e outros, todos com capacidade de crescer, ao contrário do último pleito em que seus candidatos não saíam do lugar por desgaste da política.

À esquerda a situação está menos definida. O principal partido, o PT, ainda gravita em torno de Lula, tenta mudar a governança interna e viu sua tentativa de apresentar uma proposta nova de política econômica para um futuro próximo ser atropelada pelos fatos judiciais que sufocam seu dirigente máximo. O ex-presidente tem os votos mas não tem ainda a liberdade. E não quer sair da prisão enquanto não a conquistar plenamente. Esta semana mandou dizer, segundo o jornal "Folha de S.Paulo", que com tornozeleira eletrônica não sai, não quer ser libertado pela metade. Lula quer todos os sinais exteriores que possam lhe dar, na biografia, o atestado de bons antecedentes.

Nilson Teixeira || Não há atalho para acelerar o crescimento

- Valor Econômico

A maior contribuição do governo para o crescimento potencial da economia é a de persistir nos ajustes

A desaceleração da economia no início da década levou o governo de Dilma Rousseff a estimular a economia com políticas de afrouxamento fiscal e monetário, incentivos setoriais, elevação de subsídios e expansão do crédito público. Naquele momento, a reação à utilização das mesmas políticas adotadas como resposta à crise de 2007 e 2008 foi relativamente favorável, para só depois se tornar bastante negativa.

Mais recentemente, cresceu a demanda pela adoção de muitas das medidas implementadas no início da década. O baixo crescimento do PIB, mais uma vez aquém do esperado, mesmo após uma dramática recessão, tem justificado esse clamor. A argumentação é de que a adoção de uma política fiscal expansionista, com aumento de gastos públicos - preferencialmente investimentos -, estimularia a retomada econômica, sem prejudicar a sustentabilidade fiscal de longo prazo. Esse impacto viria da interrupção do ciclo desfavorável causado pelo recuo da arrecadação tributária e o consequente corte de gastos necessário para o reequilíbrio do orçamento. Apesar de ter uma roupagem mais elegante, não é muito diferente do argumento defendido pelo governo Dilma.

O estímulo fiscal do início da década diminuiu o resultado primário como proporção do PIB de 2,9% em 2011 para 2,2% PIB em 2012, 1,7% em 2013 e -0,7% em 2014. Depois de recuar de 7,5% em 2010 e 4% em 2011 para 1,9% em 2012, o crescimento do PIB acelerou para 3% em 2013. Mas foi uma vitória temporária, pois os anos seguintes testemunharam a maior recessão desde a década de 1930. Mesmo quando ficou claro que as políticas não teriam resultados similares aos obtidos em 2009 e 2010, houve aqueles que advogaram que o fracasso foi causado por um volume insuficiente de estímulos.

Cristiano Romero || Já viram o juro real?

- Valor Econômico

Juro real em julho caiu para 1,81% ao ano, o 2º menor do real

O Brasil convive neste momento com a menor taxa de juros desde o lançamento do real, em 1º de julho de 1994. O juro real, isto é, a taxa descontada da inflação projetada para os próximos 12 meses, é o segundo menor da série. No país "viciado" em juro alto, ver juro real cadente ao longo do tempo e de forma consistente é muito positivo (ver gráfico abaixo). Em 2003, quando a economia brasileira enfrentou grave crise, o juro real médio foi de 13,20% ao ano. No ano passado, caiu para 3,06% e, neste ano, até o dia 9 deste mês, estava em 2,36% ao ano. Em julho, ficou abaixo de 2% - 1,81% ao ano.

Infelizmente, não se pode falar ainda em conquista porque o país está longe, muito longe, de resolver o problema de financiamento do Estado brasileiro. O custo do dinheiro reflete, principalmente, a situação fiscal de uma economia. No regime de metas para inflação adotado pelo país em meados de 1999, a taxa de juros é o principal instrumento de combate à inflação, mas a âncora do modelo são as contas públicas.

Se as finanças públicas são permanentemente deficitárias, a tendência é que os juros sejam altos. Na situação oposta, o juro é cadente. Sua influência sobre outro preço importantíssimo da economia - a taxa de câmbio ou, grosso modo, a cotação do dólar - é direta. Se o juro é alto, o real tende a valorizar-se porque investidores trazem seus dólares para tirar proveito do custo do dinheiro aqui. Se o juro é baixo, os fluxos de capitais de curto prazo diminuem e a pressão sobre o dólar é menor.

Ricardo Noblat || Zero Dois, o colecionador de cabeças

- Blog do Noblat / Veja

Rolou mais uma
Em versão atualizada e enxuta, está de volta o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) – e congêneres, desta vez sob a chefia do vereador Carlos Bolsonaro, vulgo Zero Dois, o temido colecionador de cabeças que assombra a República desde que seu pai vestiu a faixa presidencial, lá se vão quase oito turbulentos meses.

Em sua versão original, datada do início dos anos 60 do século passado, o CCC foi uma organização paramilitar anticomunista de extrema direita composta por estudantes e policiais favoráveis à implantação no país de um regime autoritário. Com o golpe militar de 64, passou a caçar os adversários da ditadura.

Como o capitão, o Zero Dois acha que o Brasil poderá ser uma presa fácil para o comunismo que ainda estaria vivo por toda parte e ameaçador. Dedica-se à tarefa de defender o pai de todos aqueles que enxerga como inimigos – à esquerda ou à direita, não importa. E para isso só haveria uma solução: decapitá-los.

Foi o que já fez com os ministros Gustavo Bebbiano (Secretaria-geral da Presidência) e Santos Cruz (Secretaria do Governo). E agora com o jornalista Paulo Fona que só ficou sete dias como assessor de imprensa da presidência da República. Em menos de oito meses, Bolsonaro já teve três assessores de imprensa.

Em junho último, Fona foi chamado para uma conversa com Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria de Comunicação Social da presidência. Wajngarten quis ouvi-lo sobre sua experiência como assessor de imprensa de dois governos no Distrito Federal (PMDB e PSB) e de um no Rio Grande do Sul (PSDB).

No final do mês, em novo encontro, Wajngarten convidou Fona para ser o assessor de imprensa de Bolsonaro. O jornalista sugeriu que ele pesquisasse sua vida profissional para se certificar melhor da escolha que fazia. Forneceu-lhe todos os seus dados pessoais – CPF, Carteira de Identidade e nomes de antigos empregadores.

Quinze dias depois, o martelo foi batido durante o terceiro encontro dos dois, e Fona apresentado como assessor de imprensa aos generais Luiz Eduardo Ramos Pereira (ministro da Secretaria de Governo) e Otávio Rêgo Barros (porta-voz da presidência da República). Em seguida, a notícia vazou para a imprensa.

A nomeação só foi formalizada no dia 6 de agosto porque Fona demorou a providenciar cópias do certificado de reservista e do diploma de bacharel em jornalismo. Ontem à tarde, um auxiliar de Wajngarten chamou Fona ao seu gabinete e disse que Bolsonaro mandara demiti-lo. Não se deu ao trabalho de explicar por quê.

Funcionário da liderança do PSB no Senado até 31 de julho, o jornalista é o mais novo desempregado da praça. Quem aconselhou Bolsonaro a demiti-lo foi o Zero Dois por considerá-lo de esquerda. Carlos não descansará enquanto não despachar com o pai em Brasília como o responsável pela área de comunicação do governo.

Cuide-se Wajngarten, mas não só ele. Rêgo Barros, pouco a pouco, vem sendo desidratado como porta-voz. Começa a circular nos corredores do Palácio do Planalto uma pergunta que põe o futuro do general em xeque: para quê Bolsonaro precisa de um porta-voz se ele mesmo não para de falar sobre tudo e qualquer coisa?

O que pensa a mídia || Editoriais

Alerta aos navegantes || Editorial / Folha de S. Paulo

Indicadores não permitem diagnóstico claro, mas cenário econômico é alarmante

A temida palavra voltou à cena depois que o índice de atividade econômica do Banco Central (IBC-Br), que reúne dados de indústria, serviços e agropecuária, apontou encolhimento no segundo trimestre, como já ocorrera no primeiro.

A hipótese de o país estar novamente em recessão, infelizmente, não é despropositada, ainda que o indicador do BC não tenha a capacidade de predizer o resultado do Produto Interno Bruto —e ainda que mesmo o registro de duas quedas trimestrais consecutivas do PIB não baste para caracterizar o início de um ciclo recessivo.

Levam-se em conta diversos fatores para tal diagnóstico, e nenhum deles parece conclusivo hoje.

A intensidade da retração, em primeiro lugar, mostra-se baixa. O PIB, que busca mensurar a renda geral do país, caiu 0,2% de janeiro a março, ante os três meses anteriores. Já o IBC-Br teve oscilação negativa de 0,13% de abril a junho. Variações inferiores a 0,5%, positivas ou negativas, não significam impacto relevante para o período.

Quanto ao emprego, a melhora permanece, mas em ritmo muito lento. A taxa de desocupação chegou a 12% no trimestre encerrado em junhodeste 2019, pouco abaixo dos 12,4% do período correspondente de 2018. O rendimento médio do trabalho, porém, teve recuo de 0,2%, na mesma base de comparação, para R$ 2.290 mensais.

Se os últimos números do setor produtivo e da confiança empresarial foram fracos, um dado mais alentador veio do indicador do Ipea para os investimentos, com elevação no segundo trimestre.

Inexiste dúvida, de todo modo, de que se está diante de um cenário alarmante —ainda mais para um país que está longe de ter se recuperado dos efeitos da profunda crise encerrada em 2016.

Recorde-se, a esse propósito, que a etapa inicial daquela recessão, em 2014, tampouco apresentava indicadores incontestáveis. Estes só surgiriam no ano seguinte, após um estágio de estagnação.

Não se vê o risco de nada tão devastador agora, decerto. Fatores domésticos, inclusive, permitem algum otimismo, como a perspectiva de aprovação da reforma da Previdência e o corte dos juros do BC. O panorama externo, porém, traz ameaças, com tensões comerciais entre Estados Unidos e China e incerteza eleitoral na Argentina.

O Brasil não pode se dar ao luxo, como já deveria estar claro, de tomar a recuperação da economia como mera questão de tempo.

Exposição em SP desmistifica Vladimir Herzog

Aberta ao público a partir de amanhã, mostra no Itaú Cultural, em São Paulo, reúne fotos, filmes, cartas, reportagens e depoimentos sobre uma das mais conhecidas vítimas da ditadura, morto por agentes da repressão em 25 de outubro de 1975

Alessandro Giannini || O Globo / O Segundo Caderno

SÃO PAULO - Vítima do regime militar durante a ditadura, Vladimir Herzog (1937-1975) se tornou um símbolo do combate à repressão e à tortura e da luta por justiça. Jornalista atuante entre as décadas de 1960 e 1970, militou na cultura, área na qual defendia a arte social e popular, e se embrenhou no cinema antes de morrer. Pai de dois filhos, registrou sua vida familiar em
fotos e o contato com os amigos e colaboradores em cartas muito bem escritas. Tanto o ícone quanto o homem estão representados na Ocupação Vladimir Herzog, que começa amanhã no Itaú Cultural, em São Paulo.

— Vou conhecer muito mais o Vladimir Herzog — diz Ivo Herzog, que tinha 9 anos quando o pai morreu, aos 38 anos, em 25 de outubro de 1975. —Grande parte do que vi na exposição, eu ainda não conhecia.

A mostra, que tem curadoria do Itaú Cultural e do Instituto Vladimir Herzog, estabelece um percurso em que o pai de família amoroso, o jornalista dedicado e o aspirante a cineasta aparece em fotos, filmes, cartas, reportagens, depoimentos e elementos audiovisuais. O Caso Herzog, como ficou conhecido o episódio de sua morte nos porões da ditadura, também ganha destaque a partir da exposição de documentos como as suas duas certidões de óbito: uma que traz “suicídio” como causa da morte e outra, emitida anos mais tarde, com “sufocamento por asfixia mecânica” como razão do óbito.

— Tem muita mística em torno do meu pai, mas ele era uma pessoa, um pai de família, também tinha suas imperfeições. A exposição, neste momento, é importante porque humaniza uma referência muito fluida. Ele vai ser conhecido pela palavra escrita e pelo depoimento de outras pessoas que o conheciam como uma figura de grande discernimento e também muito brincalhão —diz Ivo.

Poesia || Fernando Pessoa: Tenho tanto sentimento

Tenho tanto sentimento
Que é frequente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.