terça-feira, 27 de agosto de 2019

Opinião do dia: Luiz Werneck Vianna*

Longe de serem uma linha maginot facilmente devassável, as instituições postas pela Carta de 88 tem-se mostrado robustas e resilientes, contrariando os incréus, ao assédio que lhes são feitas. Daí serem elas o objetivo estratégico do governo e seus aliados, principalmente o grande empresariado das finanças e do agronegócio, que identificam nelas obstáculos à expansão dos seus negócios, tal como na afirmação do princípio da solidariedade social, obstáculo ao modelo de capitalização desejado pelo super ministro da economia em favor das finanças, e da defesa do meio ambiente e das terras indígenas cobiçadas pelo agronegócio e pelo setor da mineração.


*Luiz Werneck Vianna, sociólogo, PUC-Rio. ‘A procura de um ator’, Blog Democracia Política e novo Reformismo, 21/8/2019.

Merval Pereira: Escolher prioridades

- O Globo

Com comentário sobre a mulher de Macron, Bolsonaro não conseguiu capitalizar a moderação dos líderes europeus

Como disse o presidente dos Estados Unidos John Kennedy, “governar é escolher prioridades”. Quem acompanhar o presidente Bolsonaro através de suas redes sociais perceberá imediatamente dois tipos de prioridades de seus seguidores: há os que apoiam seu governo especialmente pelo combate à corrupção, e os que são contra tudo o que está aí, agora focados nas queimadas da Amazônia, com críticas a Macron e outros líderes europeus. Como antes priorizavam o porte de armas. Ou cadeirinhas de bebê. Ou o fim dos radares nas estradas.

Os a favor da Lava-Jato estão preocupados com a relação conflituosa entre o presidente Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sergio Moro. São vários os recados que recebe advertindo que Moro tem que ser apoiado, e que a Lava-Jato precisa continuar.

Ontem, uma pesquisa CNT/MDA mostrou não apenas que a Lava-Jato continua tendo o apoio da maioria da população, como também que 52% não querem que Moro saia do governo. O pacote anticrime de Moro, que está sendo desidratado no Congresso, tem mais de 70% de apoio na população.

Ao contrário, a popularidade de Bolsonaro despencou, havendo quase 40% que consideram seu governo ruim ou péssimo. Também o comportamento pessoal do presidente Bolsonaro é desaprovado por 53%.

Bolsonaro não se cansa de dizer que venceu a eleição presidencial para mudar tudo, e que está à frente de uma nova era. Muitas vezes em tom acafajestado, os bolsonaristas festejam tudo que pareça ser contra o establishment, comungando com seu líder a ideia de que é preciso destruir, mais que construir.

José Casado: O custo Bolsonaro

- O Globo

Alguns políticos se apaixonam pela própria voz, sem se importar com o que dizem. Jair Bolsonaro foi além: no mimetismo caricato de Donald Trump encontrou a moldura para a retórica e as atitudes de confronto, como se estivesse numa batalha eleitoral permanente.

Como o presidente insiste em manter o inconsciente muito perto dos lábios, cria riscos desnecessários para o país. Isso porque em política palavras e atos têm consequências — geralmente, no bolso dos governados.

Desde a semana passada, empresários vislumbram uma novidade no agronegócio: o custo Bolsonaro. É o preço previsível, para muitos inevitável, do incêndio político amazônico lavrado pelo Capitão Motosserra, com o auxílio dos ministros do Meio Ambiente e das Relações Exteriores.

A retórica eleitoral inflamada ecoando uma política arcaica, obscurantista, hipnotizou o governo e o deixou exposto no centro de uma inédita crise ambiental. Sob pressão europeia, Bolsonaro ficou ainda mais dependente da Casa Branca.

Para o setor privado, onde o acesso ao mercado global é jogo de poder e dinheiro, Bolsonaro agora é sinônimo de um custo extraordinário e considerado praticamente inevitável.

Bernardo Mello Franco: A antiga cobiça do Capitão Motosserra

- O Globo

O deputado Bolsonaro antecipou o plano do presidente para a Amazônia: afrouxar o licenciamento ambiental, parar a demarcação de terras indígenas, liberar o garimpo na floresta

Jair Bolsonaro tem um sonho antigo: transformar a Amazônia numa grande Serra Pelada. Desde que chegou ao Congresso, em 1991, ele tenta remover
barreiras ao garimpo na floresta.

O deputado do baixo clero antecipou os planos do presidente: afrouxar o licenciamento ambiental, suspender a demarcação de terras indígenas, liberar a mineração em áreas protegidas.

O repórter Lúcio de Castro, da Agência Sportlight, compilou os discursos de Bolsonaro na última década. O material expõe o ideário do autodenominado Capitão Motosserra. “A política de demarcação de terras e de criação de parques e reservas está sufocando o Brasil”, ele disse, em 2013.

No ano seguinte, o então deputado escancarou o motivo do olho grande nas terras indígenas. “Essas áreas são as mais ricas do mundo em nióbio, ouro, bauxita, estanho, além da biodiversidade, da água potável e grande espaços vazios”, afirmou.

Paulo Sternick*: Será que o presidente busca sua ruína?

- O Globo

Do jeito que atua, Bolsonaro joga brasileiros uns contra os outros — e estadistas e investidores contra nós

Perguntado sobre o que faria se ocorressem tumultos ao iniciara abertura democrática, o presidente Figueiredo (1979-1985) respondeu: “Eu chamo o Pires”. O general Walter Pires, então ministro do Exército, não era, naturalmente, das pessoas mais suaves para enfrentar tensões represadas em anos de ditadura militar. Na ocasião, a aberração histórica iria finalmente sair da nossa vida para entrar na triste memória.

Usada como falso e arriscado remédio contra a impotência, a prepotência é um dispositivo que ressurge aqui e ali. O curioso é que, mais de 30 anos depois, cansados de corrupção e fracassos de governos petistas, eleitores brasileiros escolheram chamar o Bolsonaro. Ele não figurava entre os mais educados políticos que poderiam ter sido eleitos para resgatara dignidade e o crescimento econômico. O mais inquietante, porém, é que diante das naturais adversidades na tarefa de governar, o próprio Bolsonaro tenha chamado o Bolsonaro profundo para lidar com seus desafios.

Alguns dizem que ele é assim mesmo. Então, a maioria dos brasileiros (que não o elegeu) não teria outra alternativa anão ser tentar civiliza-lo, aplicando os limites do bom sensoe da democracia. Algo que até estadistas mundiais estão tendo que fazê-lo! Missão impossível? Outros comentam que sua estupide zé estratégia para manter acesa a chama vingativa de seus fiéis e fanáticos eleitores.

Esta última hipótese depõe contra si própria: Bolsonaro é chefe de uma facção direitista, ou é o presidente do Brasil? Se ele não percebera distinção atempo, estará—entre outros efeitos — encenando um dos dramas freudianos — aquele que analisa situações nas quais pessoas, ao obterem êxito, arrumam um jeito de zerar o ganho e se arruinar. Por não suportar um obscuro e edípico sentimento de culpa.

Míriam Leitão: Os vários sinais da crise mundial

- O Globo

Empresas dos EUA devem 47% do PIB e US$ 16 trilhões estão aplicados com juros negativos. São alguns dos sinais da crise global

O economista José Roberto Mendonça de Barros acha que pode estar perto de mudar o ciclo da economia mundial, para uma forte desaceleração ou até recessão. Um dado impressionante: há US$ 16 trilhões aplicados em ativos com rendimentos negativos e isso mostra uma atitude de defesa contra riscos. O economista Marcos Lisboa explica que o dólar, que subiu 10% em pouco mais de um mês no Brasil, está refletindo a soma da fraqueza da economia brasileira e as incertezas internacionais.

O presidente americano Donald Trump tem sido um fator de instabilidade da economia global. Ele cria ondas de especulações. Depois de ter derrubado os mercados com a nova escalada da guerra comercial, no domingo ele disse que deveria ter sido mais duro. A segunda-feira começou com queda nos mercados da Ásia, mas aí ele mudou o tom completamente, e o mercado internacional operou em alta. Postou elogios à China, como se o presidente Xi Jinping tivesse cedido. A China meio que desmentiu. Disse que nada havia acontecido de novo. Enquanto isso, os sinais de risco global se acumulam, segundo José Roberto:

— O mundo tem US$ 16 trilhões aplicados em papéis com juros negativos, da Alemanha, do Japão, e de vários outros tesouros. Isso só se explica porque os investidores estão com medo de perda no portfólio. A dívida das empresas americanas está dando 47% do PIB dos Estados Unidos. É recorde. E como se sabe, não existe desalavancagem suave. As empresas de tecnologia que foram a razão da valorização do mercado estão sob risco regulatório. O modelo do Fed de NY mostra que a probabilidade de uma recessão nos EUA já passou de 30%. No passado, quando isso aconteceu, houve recessão. Além da inversão da curva de juros, há outro sinal clássico aparecendo que é a alta do ouro.

Eliane Cantanhêde: Saco de gatos

- O Estado de S. Paulo

STF, Câmara e Senado não veem graça em apanhar dos bolsonaristas enquanto Bolsonaro passa de bonzinho

Os manifestantes de domingo, em grande maioria bolsonaristas, ainda não entenderam exatamente o que está acontecendo e, quando confrontados com a verdade por Marcelo Madureira, no Rio, dirigiram agressões e impropérios contra ele, retirado sob escolta policial. A verdade dói.

Os atos foram em favor do ministro Sérgio Moro e do procurador Deltan Dallagnol e contra a lei de abuso de autoridade, o Congresso e o Supremo, com foco nos ministros Dias Toffoli, que o preside, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Não ficou claro de que lado desse saco de gatos está o presidente Jair Bolsonaro.

Dia sim, outro também, o presidente dá sinais de distanciamento, até de um certo enfado diante de seu ministro da Justiça, o troféu mais comemorado e um dos dois superministros do início do governo. Tirou-lhe o Coaf, demitiu o chefe do órgão indicado por ele, cortou as verbas da Justiça, disse publicamente que o ministro não manda na PF.

Enquanto a turma que defende Moro fazia manifestações pelo País, até com bonecos infláveis do Super-Homem com a cara do ministro, Bolsonaro espezinhava o ícone internacional da Lava Jato. “Cuide bem do ministro Moro, você sabe que votamos em um governo composto por você, ele e o Paulo Guedes”, pedia um internauta. “Com todo respeito, ele não esteve comigo na campanha”, deu de ombros Bolsonaro.

Logo, fica a dúvida: os manifestantes estavam defendendo Moro de quem? Do Congresso? Do Supremo? Ou do próprio Bolsonaro e de todos eles juntos?

Rubens Barbosa*: Presidência brasileira no Mercosul

- O Estado de S.Paulo

Sua proposta é de promover ampla revisão do funcionamento e das políticas do grupo

O Brasil assumiu em julho a presidência do Mercosul com a proposta de uma ampla revisão do funcionamento e das políticas do grupo sub-regional, depois de 28 anos de sua criação pelo Tratado de Assunção.

Os países do Mercosul equivalem à quinta economia do mundo. Desde sua fundação, as trocas comerciais do agrupamento multiplicaram-se quase dez vezes: de US$ 4,5 bilhões, em 1991 para US$ 44,9 bilhões em 2018.

Durante sua presidência o Brasil – segundo se anunciou – buscará intensificar a negociação de acordos comerciais externos, reduzir a tarifa externa comum (TEC) e dar seguimento aos esforços de racionalização do funcionamento do bloco. A presidência brasileira, que se estenderá até o fim deste semestre, se dá em momento de rara convergência entre os quatro membros fundadores. Todos agora buscam transformar o Mercosul em instrumento para reforçar a competitividade e aumentar a integração de suas economias com os mercados regional e global por meio de políticas liberalizantes e de facilitação do intercâmbio intrabloco. Essa convergência vai ser testada nas eleições presidenciais de outubro na Argentina

A conclusão das negociações com a União Europeia pode ser o fator galvanizador que ajudará os países-membros a implementar mudanças longamente aguardadas. O fim do isolamento e a ampliação dos entendimentos para a expansão da rede de acordos comerciais forçarão os países-membros a criar condições para o aumento da competitividade e da produtividade, com vista ao aproveitamento das preferências tarifárias, que o acesso ao mercado europeu permitirá, com o aumento das exportações.

As principais decisões tomadas pelos presidentes focalizaram a área econômica e a modernização das instituições. Serão ultimados estudos para permitir que a partir do ano que vem haja uma efetiva redução da tarifa externa comum média (hoje em 14%) para níveis que sejam similares à média global.

Luiz Carlos Azedo: Moro na berlinda

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Em resposta às pressões que estão sofrendo, procuradores da Lava-Jato preparam uma nova ofensiva contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e outras autoridades”

O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Justiça, Sérgio Moro, estão em rota de colisão. Se não houver uma correção de rumo, dificilmente o ex-juiz federal permanecerá no cargo. Moro está sendo contingenciado por Bolsonaro, inclusive financeiramente. Além de perder o Conselho de Controle de Operações Financeiras (Coaf) para o Banco Central (BC), o ministro da Justiça teve 32% das verbas de seu orçamento reduzidas pelo Tesouro no Orçamento da União de 2020. O ofício de Moro ao ministro da Economia, Paulo Guedes, reivindicando a liberação dos recursos, em tom catastrófico, é uma narrativa de construção de saída do governo.

Bolsonaro não se conforma com o fato de Moro ter procurado o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso para articular a derrubada, em plenário, da liminar do presidente daquela Corte, ministro Dias Toffoli, que suspendeu todas as investigações da Polícia Federal (PF) com base em informações do Coaf obtidas sem autorização judicial. A liminar foi requerida pela defesa do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que estava sendo investigado no caso do seu ex-assessor Fabrício Queiroz. Além do filho do presidente, outros parentes de Bolsonaro tiveram o sigilo fiscal quebrado nas investigações de forma ilegal.

No ofício enviado ao ministro da Fazenda, Moro argumenta que a redução provocará “alarmante cenário de inviabilização de políticas públicas de segurança”. Manifesta “preocupação quanto à viabilidade de implementação” das ações da pasta, como operações da Polícia Federal (PF), da Polícia Rodoviária Federal (PRF), mobilização da Força Nacional de Segurança Pública, emissão de passaporte, ações de combate ao tráfico de drogas, combate ao crime organizado, à corrupção e à lavagem de dinheiro”.

Moro já passou por muitos constrangimentos no governo, inclusive devido a brincadeiras de mau gosto do presidente da República. Mais recentemente, em comentário no Twitter, Bolsonaro deixou muito claro que o diretor-geral da Polícia Federal (PF), Maurício Valeixo, ocupa um cargo de confiança de sua livre nomeação. O texto foi interpretado por delegados como a senha para retirada de Valeixo do cargo, gerando muita insatisfação na corporação.

Outro ponto de desgaste para Moro é a nomeação do novo procurador-geral da República, no lugar de Raquel Dodge. Além de deixar claro que não levará em consideração a lista tríplice escolhida pelos procuradores, Bolsonaro também não acolherá a opinião de Moro sobre o nome do novo titular, cuja indicação vem sendo sucessivamente adiada. O novo procurador-geral terá o poder de manter ou não a atual composição da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba.

Moro e o procurador federal Delton Dellagnol estão na berlinda por causa do vazamento de conversas heterodoxas entre eles e outros integrantes da força-tarefa da Lava-Jato, publicadas pelo site Intercept Brasil e outros veículos de comunicação. Ambos, porém, lideram as mobilizações para que o presidente Jair Bolsonaro vete integralmente a nova Lei de Abuso de Autoridade aprovada pelo Congresso.

Joel Pinheiro da Fonseca: Está apenas começando

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro não quer mudar, e mesmo que quisesse, seria tarde; ele já mentiu demais, queimou pontes demais

Não são só fanáticos que ainda defendem o governo Bolsonaro. Há vozes moderadas —liberais que querem um Estado mais eficiente, republicanos que desejam o combate à corrupção— que, embora reconheçam problemas, seguem dando-lhe um voto de confiança.

Para eles, Bolsonaro é bem-intencionado, mas escorrega na comunicação. Mira na direção certa, mas ainda não se revestiu da liturgia do cargo. É despreparado, mas se cercou de bons ministros. Por trás da nuvem de verborragia, haveria um bom governo em andamento.

Tenho uma visão diferente: o problema do governo não é de comunicação, e sim de substância. A forma agressiva e mentirosa com a qual se comunica é deliberada e bem ajustada ao objetivo de suas ações: aparelhar o Estado, subjugar barreiras institucionais a seu poder, dividir a sociedade e impedir o debate racional e propositivo.

Ranier Bragon: O mundo de Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Se alguma coisa o cargo fez ao brasileiro, foi expor sua miudeza de espírito e propósitos

Conforme já constataram inúmeros analistas, foram pelos ares há algum tempo as esperanças de que o cargo de presidente da sexta nação mais populosa do mundo emprestasse razoabilidade ao deputado que, nos 28 anos anteriores, agira como um doidivanas inimputável.

A lambança promovida na área ambiental, que só agora ganha o caráter de crise devido à reação internacional, é apenas mais um exemplo de que se alguma coisa o cargo fez a Bolsonaro foi explicitar a sua miudeza de espírito e de propósitos.

No particular embate com Emmanuel Macron, uma das mais recentes cartadas do estadista do golden shower foi pegar carona em um gracejo do tiozismo barrigudo de internet, para quem o valor da mulher se mede por beleza, idade e submissão.

O francês pode ter interesses ocultos e, sim, escorregou ao replicar uma foto de queimada antiga como se fosse atual e ao falar no oxigênio produzido pela floresta, mas isso soa como música clássica se comparado ao caminhão de besteiras ditas por Bolsonaro sobre o meio ambiente.

Pablo Ortellado*: Sem ponto de inflexão

- Folha de S. Paulo

Regimes iliberais corroem liberdades e independência das instituições pouco a pouco

Para saber como reagir às recentes investidas de Bolsonaro contra as universidades, a Ancine, a Polícia Federal, o Inpe, o Ministério Público e o Coaf, convém ver o que ensina a experiência internacional.

Se analisarmos a evolução dos regimes de Viktor Orbán, na Hungria, de Recep Erdogan, na Turquia, ou de Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, não iremos encontrar um ponto de inflexão, um corte institucional como foi 31 de março de 1964 (golpe militar) ou 13 de dezembro de 1968 (decreto do AI-5).

Esses e outros regimes que vêm sendo chamados pelo jornalismo e pela ciência política de “iliberais” têm mobilizado um repertório comum, empregado paulatinamente.

Nele, vemos restrições à imprensa, com mudanças ad hoc em regras de concessão de licenças de radiodifusão, regulação da importação de papel e perseguição a veículos e jornalistas. Vemos também a subordinação de cortes constitucionais e eleitorais com o alargamento da composição dos tribunais e cassação ou antecipação da aposentadoria de juízes.

Alvaro Costa e Silva: Bolsonaro, 'le menteur'

- Folha de S. Paulo

Sem as baixarias do atual conflito diplomático entre Brasil e França, a Guerra da Lagosta acabou em samba de breque

A Guerra da Lagosta foi espetacular. Nela, não se disparou um tiro de canhão, nenhuma bomba explodiu, nem se registrou fogo amigo. Em compensação, cunhou uma frase histórica. A qual até hoje irrita os patriotas e alimenta os descontentes: “Le Brésil n’est pas un pays sérieux” —o Brasil não é um país sério—, boutade do general De Gaulle.

O lance foi o seguinte: em 1962, deu-se um incidente diplomático provocado pela presença de barcos franceses em águas brasileiras. Na época, não havia o mar de 200 milhas —donde, em tese, as lagostas poderiam ser pescadas. Um almirante daqui afirmou que crustáceo não era peixe, ao que a imprensa de lá respondeu com a pergunta: lagosta nada ou anda? Só se andasse é que ela estaria em território proibido.

O presidente João Goulart chegou a preparar uma esquadra para expulsar os invasores. Kid Morengueira foi mais rápido no gatilho e fez um samba de breque para encerrar a questão: “A Lagosta é Nossa”, que incluiria no LP “O Último dos Mohicanos”, de 1963.

Luciano Huck: Amazônia 4.0

- Folha de S. Paulo

Temos que assumir a responsabilidade de executar um projeto moderno, disruptivo, ousado e factível

Eliana tem 11 anos e me conta: “Quando crescer vou ser juíza”. Chances de o desejo se concretizar? Bem poucas, hoje residuais.

Estamos no coração da Amazônia, algumas horas rio acima pelo Solimões, partindo de Tefé, cidade a cinco dias de barco de Manaus. A menina é neta de dona Diolinda, que mora sobre as águas do rio há 62 anos. A casa foi construída com madeira de castanheira sobre palafitas.

Eu e esta senhora temos uma conexão de longuíssima data sem jamais nos conhecermos pessoalmente. Ela e o marido não têm luz elétrica em casa. Possuem apenas um gerador, que ligam todo sábado. Para quê? Para assistir ao meu programa em uma tevê cuidadosamente instalada no meio da pequena sala.

Uma honra enorme para mim. O aparelho se destaca sobre uma mesa de madeira, protegida por um lençol —e velada por uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida pendurada na parede.

Como nos “conhecemos” há quase 20 anos, mesmo sendo uma visita inesperada para ela, estabelecemos um registro de cumplicidade rapidamente. A conversa caminha bem e isso me encoraja a tentar entender desejos e angústias da família.

Seu Clóvis, o marido, vive de produzir farinha de mandioca, que vende a menos de R$ 1 por kg em Tefé. Por dias a fio, ele consegue processar 50 kg de farinha. Mais do que isso, nem os braços nem a canoa aguentam.

Trabalho árduo, que lhe rende R$ 40. O resultado mal paga o almoço na “cidade grande”. A família vive com simplicidade —a casa é sólida, e a alimentação, com pouca variedade, baseada em peixes, mandioca e frutas. O lugar é majestoso —moram num dos locais mais belos que já visitei em toda a minha vida.

Andrea Jubé: "Eu vim para somar"

- Valor Econômico

Ministro revela-se habilidoso, mas falta autonomia

A paixão pelas Harley-Davidson, quem diria, virou um elo entre governo e oposição, envolvendo o ministro Luiz Eduardo Ramos e o PT. Dois dias depois da troca de farpas com o presidente Jair Bolsonaro motivada pela inauguração do aeroporto de Vitória da Conquista, na Bahia, o ministro recebeu em seu gabinete no quarto andar do palácio o governador Rui Costa, do PT, para uma conversa institucional.

Rui já conhecia o caminho do gabinete: esteve lá na curta gestão do então titular da Secretaria de Governo, Carlos Alberto dos Santos Cruz. No encontro com Ramos, os ânimos estavam acirrados porque Rui não compareceu à cerimônia. A justificativa foi que os aliados de Bolsonaro agiram para transformá-la em ato político, limitando os convidados do governador. Por sua vez, o presidente acusou o governador de dispensar a Polícia Militar, fragilizando a segurança do local.

O café com Ramos foi profícuo porque cinco dias depois, o ministro reabriu as portas do gabinete para outro petista: o ex-ministro da Previdência Social Carlos Gabas, atual secretário-executivo do Consórcio Nordeste, colegiado criado pelos governadores para atrair investimentos e gerar empregos na região. Rui Costa preside o colegiado. Depois de negar ter chamado os governadores nordestinos de "paraíba", Bolsonaro acusou-os de criar o bloco para dividir o país.

Ricardo Noblat: Bolsonaro faz mal ao Brasil

- Blog do Noblat | Veja

A cadeira onde se senta é maior do que ele
Faz mal quando enfraquece deliberadamente os mecanismos de controle sobre o meio ambiente, suspende a demarcação de terras indígenas e ameaça liberar a mineração em áreas protegidas só para ser coerente com o que sempre defendeu e agradar aos seus devotos.

Faz mal e envergonha o país quando por suas posições atrasadas sobre a natureza é descrito pelo The New York Time, o jornal mais importante do mundo, como “o menor e o mais insignificante chefe de Estado”. Jornais da Europa preferiram chamá-lo de “câncer”.

Faz mal quando alinha sem condições os interesses nacionais aos interesses americanos, e rasteja para obter favores do presidente Donald Trump – entre eles, o de aprovar a indicação do seu filho para embaixador. Sequer se constrange em imitá-lo, embora sem sucesso.

Faz mal quando governa de preferência para os ricos, como se este não fosse um dos países de maior desigualdade e da mais perversa concentração de renda do planeta, onde mais de um terço da população simplesmente carece de qualquer tipo de amparo social.

Faz mal quando discrimina os governadores do Nordeste, a região que resiste aos seus encantos, chamando-os de “paraíbas” e ordenando a ministros para que não atendam às suas demandas, como se tivesse sido eleito só para servir bem e privilegiar a maioria que o elegeu.

Faz mal quando governa sob o signo do enfrentamento permanente com adversários e eventuais aliados, destratando-os sempre que enxerga nisso a chance de alimentar a fama de cavaleiro corajoso e solitário que segue em frente por cima de pau e de pedra.

Faz mal quando só recua em sua escalada retórica e agressiva ao dar-se em conta de que já foi longe demais e já produziu estragos em excesso. Mesmo assim está sempre pronto a retomá-la porque é da sua índole ser assim, e não parece disposto a mudar.

Faz mal quando põe a família – a sua, naturalmente – acima de tudo, inclusive do país, e só abaixo de Deus, aparelhando o Estado para beneficiá-la e tomando decisões para beneficiá-la em escandalosa afronta ao que determinam as leis.

Faz mal quando para defender um dos seus filhos, Flávio, o senador investigado por suspeita de corrupção e de desvio de dinheiro público, apoia uma decisão judicial equivocada que bloqueia o avanço do combate à corrupção com o qual na verdade não tem nenhum compromisso.

Faz mal quando por isso interfere na autonomia de organismos como a Receita Federal, Polícia Federal e outros, porque os considera antes de tudo organismos do governo e não do Estado, e, portanto, sujeitos à sua vontade e à vontade da sua família a quem devem proteger.

Faz mal quando mente à farta, espalha notícias falsas, ataca repetidamente a imprensa e tenta dificultar sua jornada com a esperança de domesticá-la em breve. Porque a liberdade de expressão para ele só é suportável se avalizar o que ele pensa e o que ele faz.

Faz mal quando agride fatos, como no caso dos números sobre a destruição da Amazônia, por exemplo, e se empenha em reduzi-los a uma mera questão de opinião. Como se fatos, com base em evidências e provas científicas, não fossem fatos porque ele não os reconhece.

Por fim, faz mal quando testa todos os limites da democracia com a intenção de alargar ao máximo possível os seus próprios poderes, a ponto de o presidente da Câmara dizer como disse na última sexta-feira que o país vive em um Estado “quase totalitário”.

É por ter feito tanto mal em tão pouco tempo que a avaliação do seu governo, e a dele pessoalmente, chama a atenção. Nunca na história deste país desde a redemocratização em 1985, um presidente da República desvalorizou-se com tamanha rapidez. Merece.

O que pensa a mídia | Editoriais

Popularidade em queda: Editorial | O Estado de S. Paulo

A nova pesquisa CNT/MDA, divulgada ontem, mostrou que mais da metade dos brasileiros – 54% – desaprova o desempenho pessoal de Jair Bolsonaro. É a primeira vez que esse patamar majoritariamente negativo em relação à atuação do presidente da República é atingido.

A avaliação do governo tampouco é alvissareira. Dobrou o porcentual dos que o classificam como “ruim ou péssimo”, saltando de 19% em fevereiro para 39% em agosto. No início do ano, de acordo com a mesma pesquisa, 39% dos entrevistados consideravam o governo “ótimo ou bom”. O número de satisfeitos caiu para 29% em agosto.

Esses resultados são particularmente preocupantes porque Jair Bolsonaro tem apenas oito meses de mandato e a curva histórica das pesquisas realizadas no período lhe é bastante desfavorável. Em outras palavras: à medida que o tempo passa e o presidente é instado a agir diante das mais variadas questões que lhe são postas, cada vez mais brasileiros parecem se dar conta de que à frente do governo está alguém inapto para apresentar as soluções para os graves problemas nacionais.

Para qualquer governante minimamente sensato e cioso de seu papel numa República democrática, pesquisas de opinião deveriam servir de base para uma reflexão honesta sobre os rumos do governo. Eventuais percepções negativas da sociedade deveriam ser tomadas como sinais de alerta. No entanto, o presidente Jair Bolsonaro não tem se notabilizado por ser um arguto leitor dos vários sinais emitidos pela população. Ao que parece, optou por fechar-se em suas próprias convicções e preconceitos e fazer deles o critério único para seu processo de tomada de decisão. Não surpreende, portanto, que a opinião pública reaja negativamente.

Se a pesquisa CNT/MDA diz muito sobre o desempenho do presidente Jair Bolsonaro, diz igualmente sobre a abissal distância que separa os fatos e a sua percepção pela sociedade. O levantamento mostrou que 31,3% dos respondentes avaliam que a melhor área de atuação do governo é o combate à corrupção. Ora, se há uma área hoje em que o presidente Jair Bolsonaro tem sido criticado com bastante ênfase é justamente o combate à corrupção. O presidente tem sido pessoalmente acusado de usar o poder do qual está revestido para interferir na administração da Polícia Federal, da Receita Federal e de órgãos de controle como o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), agora vinculado ao Banco Central.

Por trás de todas essas ações do governo – particularmente do presidente Jair Bolsonaro – estaria uma tentativa de dificultar a apuração de supostos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e outros ligados às atividades de milícias no Rio de Janeiro que teriam sido cometidos por membros de seu círculo mais próximo, incluindo membros de sua família.

Poesia || Louis Aragon: Chego onde sou estrangeiro

Nada é tão precário quanto viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro

Um dia passas a margem
De onde vens mas onde vais então
Amanhã que importa que importa ontem
Muda o cardo e o coração
Tudo é sem rima nem perdão

Passa na tua têmpora teu dedo
Toca a infância como os olhos veem
Baixa as lâmpadas mais cedo
A noite por mais tempo nos convém
É o dia claro envelhecendo

As árvores são belas no outono
Mas da criança o que é sucedido
Eu me olho e me assombro
Deste viajante desconhecido
Seu rosto e seu pé desvestido

Pouco a pouco te fazes silêncio
Mas não rápido o bastante
Para não sentires tua dessemelhança
E sobre o tu-mesmo de antes
Cair a poeira do tempo

É demorado envelhecer enfim
A areia nos foge entre os dedos
É como uma água fria em torvelim
É como a vergonha num crescendo
Um couro duro corroendo

É demorado ser um homem uma coisa
É demorado renunciar totalmente
E sentes-tu as metamorfoses
Que se passam internamente
Dobrar nossos joelhos lentamente

Ó mar amargo ó mar profundo
Qual é a hora da preamar
Quanto é preciso de anos-segundos
Ao homem para o homem abjurar
Por que por que esse gracejar

Nada é tão precário como viver
Nada quanto ser é tão passageiro
É quase como gelo derreter
E para o vento ser ligeiro
Chego onde sou estrangeiro

(Paris, 3/10/1897-24/12/1982)