domingo, 22 de dezembro de 2019

Merval Pereira - Montando as peças

- O Globo

Bolsonaro tirou Moro da lista de indicados para o STF e passou a citá-lo como um vice ideal para a chapa de reeleição

O presidente Jair Bolsonaro vai montando seu quebra-cabeças com vista à reeleição presidencial nas respostas sobre as indicações que poderá fazer para o Supremo Tribunal Federal (STF).

Já anunciou dois candidatos para as duas vagas, e nenhum deles é o ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, a quem a primeira vaga estava prometida. Em novembro de 2020 o ministro Celso de Mello se aposenta compulsoriamente por ter chegado aos 75 anos, e Bolsonaro colocou ontem o atual ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, na disputa, dizendo que ele “é um bom nome para o STF”.

Oliveira trabalha com Bolsonaro há cerca de 10 anos, e é filho de um seu antigo colaborador. O presidente reafirmou que o ministro da Advocacia Geral da União, André Luiz Mendonça, “terrivelmente evangélico”, é um bom nome para a outra vaga no Supremo, que se abrirá no meio de 2021, com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello.

Com isso, Bolsonaro tirou Moro da lista, e passou a citá-lo como um vice-presidente ideal para a chapa de reeleição em 2022. “Seria imbatível essa chapa”, é o pensamento generalizado entre os principais assessores do presidente no Palácio do Planalto, embora Moro em nenhum momento tenha indicado que gostaria de trocar uma vaga certa no STF pela possibilidade incerta de vir a ser candidato a vice-presidente.

Bernardo Mello Franco - Arquitetura da destruição

- O Globo

Antes da eleição, Bolsonaro ameaçou rasgar o Estatuto da Criança e do Adolescente. No poder, ele vem se empenhando para cumprir a promessa

Em março, Jair Bolsonaro revelou que não via o Brasil como “um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo”. “Nós temos é que desconstruir muita coisa”, explicou, em jantar com ideólogos da extrema direita americana.

O capitão tem seguido o plano à risca. Desde a posse, ele atua para capturar órgãos de controle, esvaziar mecanismos de participação popular e acuar o Legislativo e o Judiciário. O movimento tem um objetivo claro: remover limites ao poder presidencial.

Há três meses, a arquitetura da destruição chegou ao Conanda, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Por decreto, o presidente cassou todos os integrantes do colegiado, que tinham mandato até o fim de 2020. A canetada submeteu a escolha de novos conselheiros à ministra Damares Alves, representante da bancada evangélica na Esplanada.

Bolsonaro já havia anunciado a intenção de esvaziar e extinguir conselhos “para que o governo possa funcionar”. “Não podemos ficar refém de conselhos”, afirmou, como se a sociedade civil só tivesse direito a se manifestar no dia da eleição.

Dorrit Harazim – Natalinas

- O Globo

Numa média de cinco mortes a cada dia, a clemência natalina só não será pior por (ainda?) não incluir milicianos

Poucos atos de um mandatário são tão radicais, por definitivos, quanto a canetada que sacramenta o indulto presidencial. Trata-se do instrumento supremo de poder, pois o ato não é sujeito à aprovação pelo Congresso, tem implementação rápida e decide sobre o que os eventuais beneficiados têm de mais valioso — a liberdade. Cada país segue normas de indulto mais ou menos elásticas, sendo que no Brasil elas podem ser redefinidas a cada ano, costumeiramente na época natalina.

Esta semana, às vésperas de estrear sua assinatura no decreto que passará a reger a concessão de perdão presidencial, Jair Bolsonaro já foi adiantando que a medida deve incluir, pela primeira vez, toda uma categoria. A partir da publicação do texto oficial, serão beneficiados policiais e agentes de segurança presos por crimes cometidos em serviço, em confrontos, ou por legítima defesa em situação de “excesso”. Uma antecipação simplificada do indigesto “excludente de ilicitude” embutido no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro.

“Tem muito policial no Brasil que foi condenado por pressão da mídia”, avisou o presidente meses atrás, “e esse pessoal, no final do ano, se Deus me permitir e eu estando vivo, vai ser indultado”. 

Míriam Leitão - Moralidade como estratégia eleitoral

- O Globo

Detalhes do caso Flávio mostram que o combate à corrupção foi só uma estratégia de marketing para ajudar na eleição de Bolsonaro

O presidente Bolsonaro estava uma pilha na sexta-feira. Foi ainda mais agressivo do que o costumeiro no ataque aos repórteres que ficam na porta do Palácio. Era fácil saber o motivo do nervosismo. Seu filho Flávio está com uma montanha de explicações a dar sobre o que se passava no seu gabinete quando era deputado estadual, nos seus negócios com imóveis e no funcionamento da sua loja de chocolates. A bandeira de que faria um governo de combate à corrupção sempre foi postiça, mas fica mais difícil empunhá-la quanto mais detalhes vêm à tona sobre a estranha movimentação bancária de Fabrício Queiroz e a maneira como o senador conduzia seu gabinete de político e seus empreendimentos.

A defesa de Flávio Bolsonaro se agarrou mais uma vez à mesma estratégia de pedir para paralisar a investigação. O que o Ministério Público do Rio de Janeiro levantou até agora exigirá muitos esclarecimentos por parte do senador. Melhor fazê-los do que atacar o juiz como fez o presidente. Se Bolsonaro perguntar ao seu ministro da Justiça, Sergio Moro poderá contar das vezes em que foi atacado por suas decisões na 13ª Vara Federal de Curitiba. É tudo muito parecido com o que agora Bolsonaro diz de Flávio Itabaiana da 27ª Vara Criminal do Rio.

Dezenas de funcionários do gabinete do então deputado não compareciam ao local de trabalho, nunca pediram crachá, recebiam seus salários dos cofres públicos e faziam depósitos rotineiros na conta de Fabrício Queiroz. Havia de tudo: personal trainer que tinha emprego no outro lado da cidade, estudante de veterinária que estudava a quilômetros do Rio, cabeleireira com trabalho fixo. Difícil é saber quem de fato trabalhava naquele gabinete.

Ricardo Noblat - Impeachment ou parlamentarismo, o que se desenha

- Blog do Noblat | Veja

Bolsonaro não fará falta
Um dia, o presidente Jair Bolsonaro diz que se seu filho Flávio Bolsonaro “errou e for provado”, lamentará como pai, mas que “ele terá de pagar o preço por aquelas ações que não temos como aceitar”. Foi em 23 de janeiro último, em Davos, na Suíça, onde Bolsonaro estava para participar do Fórum Econômico Mundial.

Em outro dia, Bolsonaro diz que há um abuso do Ministério Público nas investigações sobre o desvio de dinheiro público que envolve Flávio e Queiroz e que pode atingir a família presidencial. E que é preciso controlar o Ministério Público. Foi ontem. E desabafou: “Agora, se eu não tiver a cabeça no lugar, eu alopro”.

Controlado, Bolsonaro jamais foi desde que, afastado do Exército por indisciplina entrou para a política e viveu quase 30 anos como deputado federal. Mas ao fim do seu primeiro ano de governo, ele dá sucessivos sinais de um descontrole exacerbado, o que levanta dúvidas sobre se terá condições de completar seu mandato.

Na última sexta-feira, Bolsonaro atacou um jornalista dizendo que ele tinha cara de homossexual. Nesse sábado, convidou jornalistas para uma conversa e disse, entre outras coisas, que é “um político tosco” e que na economia seu patrão é o ministro Paulo Guedes. Desejou Feliz Natal “mesmo sem carne para alguns”.

Elio Gaspari - Chicago, quem diria, quer uma CPMF.net

- Folha de S. Paulo | O Globo

Guedes sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária

Ganha um fim de semana em Santiago quem souber de onde o ministro Paulo Guedes tirou a ideia da criação de sua “CPMF digital”, como disse Merval Pereira.

Ele sabe que o governo não tem um projeto de reforma tributária. Sabe também que Bolsonaro não quer a volta da CPMF. Se isso fosse pouco, Rodrigo Maia já avisou que esse ectoplasma não passa no Congresso.

Ainda assim, Guedes disse uma frase que deve levar os sacerdotes do papelório a pensar onde se meteram. Disse o doutor: “Tem transações digitais. Você precisa de algum imposto, tem que ter um imposto que tribute essa transação digital.”

A ideia segundo a qual existindo uma atividade, “tem que ter um imposto”, é paleolítica. Se o sujeito transfere uma quantia pelo seu celular, “você precisa de algum imposto”. E se ele faz o depósito indo ao banco de ônibus, não precisa? Nessa maravilhosa construção tributária, a tunga viria do uso de um novo meio, o digital.

Isso nem jabuticaba é. Trata-se de um fruto que só existe no pomar do doutor Guedes, um ex-aluno de Chicago, universidade onde pontificou o economista Milton Friedman (1912-2006).

Pois Friedman tinha horror à intervenção do Estado e viveu o suficiente para perceber a importância da internet. Ele previu: “Eu acho que a internet será um dos grandes fatores para a redução do papel dos governos.”

Acertou na mosca, mas nunca poderia supor que um de seus discípulos viesse a defender um imposto para quem fizesse transações pela rede. (Pela CPMF.net de Guedes, se a operação for conduzida por telefone fixo, aquele do século 19, ela não seria tributada.)

Guedes disse que há uma discussão mundial em torno da taxação de operações eletrônicas. Há, mas ela nada tem a ver com uma CPMF.net. Discute-se a criação de um imposto para operações como, por exemplo, a compra de um chinelo produzido num país e vendido pela rede em outro. Nessa transação produziu-se um chinelo. Pela CPMF.net o sujeito seria mordido porque depositou a mesada do filho usando o celular. Pela ideia de Guedes o fato gerador do novo imposto do governo será o uso da internet.

Janio de Freitas* - Onde está o fim do caso Flávio

- Folha de S. Paulo

Indícios para uma investigação levada até o final são numerosas

Se as investigações irão até o fim, é a expectativa de sempre, mas com a curiosidade diminuída no caso do Bolsa Família particular criado pelos Bolsonaro. O endereço do fim não é obscuro, mais do que sugerido por indícios acumulados desde os primeiros sinais do caso. Quase se diria que as revelações começaram pelo que seria o seu final.

Logo de saída, um cheque de R$ 24 mil, como restituição parcial de um empréstimo a quem recebeu R$ 2 milhões na conta, não é explicação convincente. Tanto mais se o cheque é de um sargento da Polícia Militar para a mulher de um então deputado, estes já como presidente eleito e futura primeira-dama. A própria origem do cheque pôs em dúvida a sua lisura, dada a ligação do emitente com chefes milicianos.

Ao menos nove parentes da segunda mulher de Jair Bolsonaro, Ana Cristina Siqueira Valle, foram funcionários nominais de Flávio Bolsonaro quando deputado. Todos deixando parte do ganho com o sargento-coletor Fabrício Queiroz. Alguns, nem moradores do Rio.

O interessado nas nomeações desses “laranjas” nunca seria qualquer dos filhos Bolsonaro, que não conviveram bem com a nova mulher do pai. Com motivo para as nomeações era o Bolsonaro ligado a Ana Cristina Valle e sua família. Usou o gabinete do filho. Integrante do esquema de desvios, portanto, e com autoridade de chefe.

Bruno Boghossian – Coração pecador

- Folha de S. Paulo

Rigoroso no discurso, presidente propõe libera-geral para agradar bases políticas

Se Jair Bolsonaro conseguiu transmitir na campanha a impressão de que faria um governo linha-dura, deve ter sido um engano. No poder, o presidente se mostrou disposto a implantar um libera-geral para agradar suas bases políticas.

Nos últimos dias, Bolsonaro anunciou o desejo de lançar um pacote para perdoar policiais que matam em serviço, grileiros e motoristas infratores. Um observador desatento poderia achar que a generosidade do espírito natalino invadiu o Palácio do Planalto, mas é só demagogia.

O presidente confirmou, na última semana, que vai incluir no indulto de fim de ano agentes de segurança presos por crimes cometidos durante o serviço. Ele argumenta que é injusto manter na cadeia "policiais que fazem um excelente trabalho".

A proposta é um convite à impunidade. A extensão do indulto deve beneficiar agentes que participaram de confrontos com criminosos, mas seus critérios também podem ajudar esquadrões da morte e policiais que cometeram excessos graves.

Hélio Schwartsman - Loucura das multidões

- Folha de S. Paulo

Há livros que são concebidos para ser polêmicos

Há livros que são concebidos para ser polêmicos. "The Madness of Crowds" (a loucura das multidões), de Douglas Murray, é um deles. Murray é de direita, mas não da variante bolsonarista. Formado em Eton e Oxford, ele sabe portar-se à mesa e defende direitos de mulheres, minorias raciais e gays. Ele próprio é gay —e ateu.

"The Madness...", porém, pode ser descrito como um ataque a setores do feminismo, do movimento LGBT e de outras militâncias identitárias. O argumento central de Murray é que, embora vivamos, nas democracias ocidentais, uma era na qual os direitos de minorias são respeitados como em nenhum outro momento da história, vários desses grupos vêm com um discurso raivoso e catastrofista, como se estivéssemos na antessala de Auschwitz. E esse tipo de narrativa, diz o autor, divide as pessoas, gera ressentimentos e produz injustiças.

Murray escreve bem e sabe utilizar o inesgotável armazém de exageros de militantes para ilustrar seus argumentos. O ponto forte do livro é quando ele desmonta a noção de interseccionalidade, isto é, a ideia de que as diferentes minorias travam uma luta comum contra o patriarcado branco, hétero, cis.

Ruy Castro* - Frutos podres

- Folha de S. Paulo

Deus e o Brasil não demoram a pedir demissão do slogan de Bolsonaro

Cristo falava por parábolas. Bolsonaro fala por slogans. Uma parábola é um relato alegórico, destinado a fazer pensar e extrair de sua narrativa uma moral. É um instrumento que se dirige, ao mesmo tempo, à fé e à razão. Já um slogan é uma afirmação categórica, acachapante, disparada para ser aceita pelo receptor sem passar necessariamente por seu cérebro. É uma arma dos publicitários, dos políticos e dos autoritários.

Uma das grandes parábolas de Cristo está em Mateus 7:15-20: "Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós com vestes de ovelha, mas que por dentro são lobos vorazes. Pelos seus frutos os conhecereis. Colhem-se porventura uvas dos espinheiros, ou figos dos abrolhos? Toda árvore boa dá bons frutos, mas a árvore má dá maus frutos. Uma árvore boa não pode dar maus frutos, nem uma árvore má pode dar bons frutos. Toda árvore que não dá bons frutos deve ser cortada e queimada".

Por falar em frutos, digo, bolsonaros, digo, slogans, o slogan favorito de Bolsonaro é o martelado "Brasil acima de tudo e Deus acima de todos". O "Brasil acima de tudo" cheira ao slogan nazista "Deutschland über alles" —"A Alemanha acima de tudo"—, mas isso não lhe provoca desconforto. Com slogans não se discute.

Vinicius Torres Freire - Bolsonaro só deve ter medo de si mesmo

- Folha de S. Paulo

Difícil imaginar que escândalos levem elite econômica a abandonar o presidente

Os capitães da indústria gostam da administração do capitão da extrema direita, Jair Bolsonaro, também presidente da República e da filhocracia. Para 60% dos empresários industriais, o governo é “ótimo/bom”; para 7%, “ruim/péssimo”.

É o que diz levantamento da CNI (Confederação Nacional da Indústria) com 1.914 empresas do ramo, feito em dezembro. Para a população em geral, o governo é “ótimo/bom” para 29% dos entrevistados pelo Ibope, em pesquisa também encomendada pela CNI. Para 38%, o governo Bolsonaro é “ruim/péssimo”.

As pesquisas foram feitas antes de Flávio Bolsonaro ter sido acusado de comandar uma organização criminosa. Segundo a Promotoria, a gangue contratava funcionários fantasmas e desviava dinheiro da Assembleia Legislativa do Rio em benefício do filho 01, que lavava ou compartilhava o tutu de chocolate com milicianos, foragidos da Justiça, assassinos e agregados.

Um desses apaniguados era Fabrício Queiroz, durante décadas amigo e faz-tudo de Bolsonaro pai, como se sabe. As acusações também eram bem sabidas fazia mais de ano, embora faltasse o colorido sórdido do caleidoscópio das investigações. Os desmandos e as tentativas de mandonismo do presidente, entre outras extravagâncias autoritárias, também são mui bem sabidas, faz muito mais tempo.

Vera Magalhães - Bombons de Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

Caso Flávio explicita todos os vícios de um ano de governo

As revelações espantosas do Ministério Público do Rio de Janeiro explicitam todos os vícios da carreira de Jair Bolsonaro, apontados pela imprensa desde a campanha, mas ignorados pelo eleitorado, e também os de seu primeiro ano de mandato, igualmente assinalados pelo jornalismo profissional, já aceitos por uma parcela do mesmo eleitorado, mas ignorados (até aqui) pelo núcleo duro da militância bolsonarista e por setores da elite liberal. Vamos a eles, em pequenos bombons:

1. Bolsonaro nunca foi baluarte anticorrupção.

Trata-se de uma construção recente essa do Bolsonaro lavajatista. Em sua carreira, o deputado do baixo clero sempre esteve mais voltado às pautas corporativas, a fazer da política um negócio em família e a chocar com opiniões ofensivas que em combater a corrupção. Nunca integrou nenhuma CPI. Nunca foi do Conselho de Ética. Sempre criticou o Ministério Público. E, agora se sabe, praticou aquilo que sempre condenou na “velha política”.

2. Misturar política e família não tem nada de nova política.

Os Bolsonaro se instalaram no poder sem nenhuma cerimônia. Na campanha, os filhos deram as cartas. Na posse, Carluxo se aboletou de carona no Rolls-Royce, numa das cenas mais emblemáticas desta era. Bolsonaro disse que daria o “filé” aos filhos, que um podia ser ministro e outro, embaixador em Washington. Juntos, os quatro amealharam patrimônio milionário tendo sido só políticos na vida. E, agora se apura, muito desse patrimônio pode ter vindo da prática de “rachadinha” e da existência de funcionários fantasmas. A imprensa mostrou na campanha. O eleitor fechou os olhos deliberadamente.

Eliane Cantanhêde - Nervos à flor da pele

- O Estado de S.Paulo

Nem tudo são espinhos para Bolsonaro, mas ele coleciona derrotas no STF e no Congresso

O presidente Jair Bolsonaro acusou o golpe ao atacar repórteres que meramente cumpriam sua função fazendo perguntas, até óbvias. Ficou evidente que a crise Flávio Bolsonaro mexeu com os seus nervos e, sem respostas, ele parte para ironias e grosserias. Esse, porém, é só um dos muitos problemas que desabam sobre a cabeça presidencial neste fim de ano.

Enquanto as revelações sobre o filho “01” borbulham no Rio de Janeiro, Bolsonaro vai colhendo más notícias ora do Supremo, ora do Congresso, e a relação entre ele e o deputado Rodrigo Maia, que nunca esteve às mil maravilhas, parece ir de mal a pior.

O mais ameaçador para Bolsonaro é o volume de informações que envolvem Flávio com funcionários fantasmas, desvio de salários do gabinete, ligações com líderes de milícias, lavagem de dinheiro em compra de loja e de apartamentos. Mas não é só isso.

Nesses derradeiros dias até 2020, o STF, que reativou as investigações do MP contra Flávio e Queiroz, reuniu também maioria para derrubar a proposta de Bolsonaro de acabar com o DPVAT, um seguro fundamental que no ano passado atendeu a quase 330 mil vítimas do trânsito ou suas famílias.

Rolf Kuntz* - No show de ‘seu Jair’, o grande fecho de um ano

- O Estado de S.Paulo

O Brasil, segundo os otimistas, tem dois governos. Falta saber qual é o segundo

Família Bolsonaro é o grande assunto deste fim de ano. É muito mais importante que os novos empregos formais, a briga pelo fundo eleitoral, o magro reajuste do salário mínimo, os sinais de reanimação econômica, a bolsa batendo recordes, a ameaça de recriação da CPMF, as projeções otimistas para 2020 e os desafios do comércio internacional. Nem os dados positivos de 2019, como a aprovação da reforma da Previdência, valem a mesma atenção. Muito mais importantes, neste momento, são a nova fase da investigação sobre Flávio Bolsonaro, suspeito de rachadinha e lavagem de dinheiro, e seus efeitos sobre o chefe do clã, o presidente Jair Bolsonaro.

“Não tenho nada a ver com isso”, disse o presidente na quinta-feira de manhã, ao ser questionado sobre a investigação conduzida no Rio de Janeiro pelo Ministério Público Estadual. Se de fato acreditava nisso, mudou de ideia rapidamente. Na manhã seguinte, ao sair do Palácio da Alvorada, enfrentou a imprensa com muito mais disposição, defendendo seu filho, distribuindo grosserias e criticando o juiz Flávio Itabaiana, do Tribunal de Justiça do Rio, por causa das operações de busca e apreensão realizadas na quarta-feira e da quebra de sigilo de pessoas e empresas investigadas no caso. As grosserias foram dentro do padrão bolsonariano. Interessante, mesmo, foi a inexplicada referência à filha do juiz.

Funcionária do governo fluminense, essa jovem, “pelo que parece”, é fantasma, disse o presidente aos jornalistas. O governo do Estado do Rio logo rebateu, informando a função e as qualificações da moça, uma advogada, e a data de sua nomeação, feita 15 dias antes da distribuição eletrônica do processo de Flávio Bolsonaro ao Juízo de Direito da 27.ª Vara Criminal. Mas como e por que o presidente Bolsonaro sabia da existência dessa moça e de seu emprego? Alguém lhe contou? Alguém havia investigado a família do juiz, por decisão própria ou por ordem de autoridade federal?

Tão interessante quanto essas perguntas é o estilo presidencial. Guardião juramentado da Constituição, o chefe do Poder Executivo reagiu à investigação sobre seu filho atacando o juiz, pondo em dúvida sua seriedade e lançando suspeita sobre a condição profissional de sua filha como servidora pública. Detalhe: ao mencionar a suspeita, usou a expressão “pelo que parece”, numa clara exibição de irresponsabilidade.

José Botafogo Gonçalves* - O papel do Brasil no mundo a partir de 2019

- O Estado de S.Paulo

O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora com abertura comercial

O Brasil enfrenta hoje dois desafios de natureza econômica e política. O primeiro refere-se ao modelo de desenvolvimento econômico que garanta o crescimento anual do produto interno bruto (PIB) acima de 3,5%. O modelo de substituição de importações e protecionismo comercial e de crescimento para dentro, em vigor há sete décadas, esgotou-se em função de seu próprio sucesso. O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para fora conjugado com abertura comercial.

O desafio político implica definir os interesses prioritários do País no concerto das nações, à luz do neoisolacionismo norte-americano, da emergência da China como potência econômica, política, militar e de ambições imperiais, o esforço da Federação Russa de manter seu poderio na Europa do Leste e no Mediterrâneo Oriental. No momento, a diplomacia, a academia e a mídia têm elaborado cenários variados que buscam responder reativamente à pergunta de qual papel cabe ao Brasil diante dos conflitos, abertos ou latentes, entre esses grandes polos de poder mundial.

Nestas notas sugiro uma inversão de perspectiva. Busco sugerir uma política externa brasileira definida estrategicamente em função de suas fortalezas atuais e potenciais para então, como consequência, explicitar planos de ação concretos nas suas relações com os Estados Unidos da América, a China continental, a Rússia e outros polos regionais de poder como Índia, Indonésia e África subsaariana. Excluo intencionalmente a América do Sul desta enumeração por acreditar que este subcontinente, sob a liderança brasileira, deve constituir o campo de ação propositiva da nova política externa do País e não se sujeitar a ser meramente alvo de iniciativas políticas e econômicas vindas de fora da região.

Sociedade está saturada e isso ajuda o populismo, diz pesquisador francês

Entrevista com Dominique Reynié, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris

Para professor do Sciences Po, político que oferece soluções fáceis conquista o eleitor que está cansado de tanta informação

Paulo Beraldo Julia Correa |O Estado de S. Paulo

A extrema direita nunca teve tanta chance de vencer uma eleição na França como agora. A avaliação é do professor Dominique Reynié, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). Ele esteve no Brasil para apresentar os resultados da pesquisa Democracias Sob Tensão, que ouviu 36.395 pessoas em 42 países.

Reynié diz que os políticos que “simplificam” a realidade e apresentam soluções fáceis conseguem conquistar eleitores saturados de informação. “Uma parte do aumento do populismo no mundo tem a ver com a saturação cognitiva e essa demanda por simplificação”, disse. 

A seguir, trechos da entrevista ao Estado.

• Em sua palestra, o senhor cita uma ‘saturação cognitiva’ da sociedade, onde os indivíduos buscam soluções mais simples. Como isso funciona com políticos populistas?

Vivemos uma época de mudanças profundas e poderosas em áreas muito diferentes da vida privada, política, da ciência, da cultura. Há informações demais, complexas demais para que possamos assimilá-las, entendê-las e aceitá-las. Evidentemente, por parte da sociedade, em especial as elites intelectuais e os homens de negócios, é possível viver com isso. É até uma oportunidade. Mas, para grande parte da sociedade, é uma fonte de angústia e de sofrimento. Uma parte do aumento do populismo no mundo democrático tem muito a ver com essa saturação cognitiva e essa demanda por simplificação, para reduzir o sofrimento psíquico de uma parte da população.

• No Brasil, o relatório mostra que 50% das pessoas não se interessam por política. Esse é um ingrediente a mais?

Sim, essa é uma razão importante. Vemos isso no Brasil, mas também no mundo democrático todo. É uma tendência que eu qualificaria de “despolitização”, um retiro em relação à cena pública. A gente se fecha em comunidades privadas, em redes. Mas a gente se separa da comunidade nacional, política.

O que a mídia pensa – Editoriais

Perseguir cultura e arte é agredir a nação – Editorial | O Globo

Ataque do governo Bolsonaro à produção artística e cultural tem de ser contido em nome da democracia

Não se esperava de Jair Bolsonaro um início de governo tranquilo. O estilo agressivo demonstrado em 28 anos de trajetória como deputado do baixo clero na Câmara prenunciava tempos difíceis no relacionamento do presidente com atores políticos, organizações de representação social, pessoas e instituições que divergem dele. A intolerância com a diversidade já era notória.

Na campanha eleitoral os territórios de enfrentamentos foram sendo delimitados. ONGs, defensores do meio ambiente como um todo, índios, minorias em sentido amplo e tudo o que ele identificasse como esquerda estariam na mira. Neste sentido não houve surpresas. Mas o ataque à cultura e às artes chama especial atenção.

Não basta ocupar os espaços que eram dos “inimigos”. O aparelhamento de segmentos do Estado pelo bolsonarismo nada fica a dever ao PT e aliados. Mas não basta preencher vazios deixados pela saída de servidores do último governo e de “petistas” remanescentes.

É preciso destruir, desmontar as cadeias de produção artística e cultural, apagar qualquer marca, qualquer registro do passado. O mesmo desejo autoritário de reescrever a História observado em diversas épocas no mundo em vários países.

Neste sentido, é sugestivo que o presidente interino da Agência Nacional do Cinema (Ancine), Alex Braga, tenha mandado retirar das paredes da sede da instituição cartazes de filmes brasileiros antigos. Entre eles, “Deus e o diabo na terra do sol”, de Glauber Rocha, e “O bandido da luz vermelha”, de Rogério Sganzerla, pontos de referência do moderno cinema brasileiro na década de 60. O objetivo é apagar um passado de produções artísticas. Mas o presente e o futuro também, pois foi retirado do site da Ancine o espaço da relação de novas produções. Atos como este evocam crimes cometidos por regimes antidemocráticos de direita e esquerda contra artistas e suas obras.

É algo que vai além da censura. Esta já havia sido esboçada com o anúncio de que projetos de filmes “inadequados” no aspecto moral, religioso e político não teriam apoio da própria Ancine. Em julho, Bolsonaro se referiu à necessidade de “filtros”. Um sinônimo de censura. O governo Bolsonaro deu dois passos à frente da própria ditadura militar, que censurou a arte e a imprensa, mas não fechou todos os guichês de apoio à produção de cineastas, por exemplo. Criada em 1969, um ano após a edição do AI-5, a estatal Embrafilme financiou e distribuiu filmes de artistas opositores do regime. Isso não o fez menos ditatorial, mas indicou que houve, em alguns momentos, rasgos de bom senso.

Bolsonaro tem o mesmo DNA da ditadura, mas seu ataque institucional à cultura e a artistas, na democracia, ultrapassa limites até mesmo respeitados naqueles tempos. A sanha contra a produção artística apareceu na limitação à Lei Rouanet. Depois, houve uma atenuação para não alijar de vez os musicais do teatro brasileiro. Mas a semana acabou ainda com incertezas sobre a revisão das regras. O certo é que reduzir aporte incentivado de empresas a projetos de produção artística se traduz em menos emprego e menos renda em uma ampla linha de produção.

Poesia | Fernando Pessoa - Domingo irei

Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —

Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!