terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Carlos Andreazza - Liberdade de expressão seletiva

- O Globo

É o espírito do tempo que emana de uma sociedade avessa ao contraditório

A ação autoritária que resultaria na censura ao especial de Natal da produtora Porta dos Fundos — mais uma exposição de força de mais um imperador togado — foi movida pelo Centro Dom Bosco de Fé e Cultura. A mesma instituição que, em março de 2018, fora vítima de uma blitzkrieg — à porta da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro — contra a distribuição de um jornal, “O Universitário”, cujos delitos se materializavam em discutir criticamente a questão de gênero, abrigar uma entrevista com Olavo de Carvalho e falar de Jair Bolsonaro com aprovação.

Escrevi, neste O GLOBO, um artigo a propósito, “O indivíduo ausente”, que ora cito: “naquela sexta-feira, dois jovens foram empastelados, escarrados, barbaramente impedidos de fazer circular uma publicação e chamados de fascistas por difundirem conteúdo que em nada — absolutamente nada — afrontava a lei brasileira, isso enquanto os agressores destruíam exemplares do jornal (com apoio de ao menos um professor) a não mais que 20 metros da porta de uma universidade”.

A PUC se omitiria a respeito, com o que — assim compreendi — endossava a selvajaria. O Centro Acadêmico de Comunicação Social — sem surpresa — abraçou a iniciativa criminosa imediatamente. O mesmo centro acadêmico que — apostaria — terá agora repudiado a liminar por meio da qual o desembargador Benedicto Abicair, em nova exibição da magistrocracia que nos dirige, censurou o filme produzido pelo Porta dos Fundos.

Com uma só canetada, sob motivação religiosa num Estado laico, o doutor — ao afrontar o princípio constitucional da liberdade de expressão — legitimou (premiou) a ação terrorista que, no último 24 de dezembro, como expressão de repulsa àquele especial de Natal, lançou bombas contra a sede da produtora; uma intervenção criminosa reivindicada com a pretensão amoral de quem se entende num manifesto político. Foi esse ato de horror para intimidar que o magistrado chancelou — consequência indireta de uma obra-prima da inconstitucionalidade, que flexibiliza um direito, o da liberdade de expressão, que tem, conforme já assentado pelo Supremo Tribunal Federal, preferência em eventuais conflitos com outras garantias fundamentais.

O senhor Abicair — segundo nos lembrou reportagem deste jornal — é o mesmo desembargador que, relatando, em novembro de 2017, um processo no qual o então deputado federal Bolsonaro era réu em decorrência de declarações acusadas como homofóbicas e racistas, votou a favor de um recurso do hoje presidente da República sob a seguinte linha de argumentação: “Não vejo como, em uma democracia, censurar o direito de manifestação de quem quer que seja. Gostar ou não gostar. Querer ou não querer, aceitar ou não aceitar. Tudo é direito de cada cidadão, desde que não infrinja dispositivo constitucional ou legal”.

Não tardaria, felizmente, até que o STF — na figura de seu presidente, Dias Toffoli — cassasse a liminar e, pois, a censura. O mesmo Dias Toffoli que é — ele mesmo — um agente censor recente.

Ou já nos teremos esquecido do inquérito autoritário, aquele, de março de 2019 (e ainda em vigor), estabelecido para investigar a existência — assim, bem ampla e vagamente — de fake news, ameaças e “denunciações caluniosas, difamantes e injuriosas” contra membros do Supremo e seus familiares, instaurado de ofício, como obra da vontade de Toffoli, sem objeto de apuração definido e que, na prática, resultaria, pouco depois, em abril daquele ano, na imposição de censura, pelo relator Alexandre de Moraes, sobre a revista “Crusoé” e em função de reportagem incômoda para o presidente da corte?

O mesmo ministro Alexandre de Moraes, despachante de censura, que, em voto primoroso, de março daquele confuso 2019, escreveu que o “direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias”. Que tal? Uma aula, por exemplo, aos que que defendem o direito à livre sátira sobre a fé cristã, mas que reagem ao mesmo princípio quando ilustrado em Maomé.

Este pequeno conjunto, breve amostra de graves incoerências, seleta de como rebolam os democratas de ocasião, é bom retrato do país em que vivemos, o da insegurança jurídica como desdobramento menor de uma sucessão de ondas que testam o rochedo em que vão fincados os marcos da democracia; eficaz radiografia do espírito do tempo que emana de uma sociedade avessa ao contraditório, hostil ao dissenso, e cuja defesa do valor da liberdade — cuja adesão à liberdade de expressão como direito fundamental inegociável — resta condicionada à direção que o vento ideológico, essencialmente oportunista, imprime à biruta de convicções generalizantes e frouxas em que, esvaziados de individualidade para discernir, nos inflamos.

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