sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

César Felício* - No meio do caminho

- Valor Econômico

Eleição municipal marca tendências para a nacional

É comum ver as eleições municipais no Brasil como uma espécie de “midterm election”, instrumento pelo qual o parlamento de alguns países se renova parcialmente durante um governo. No caso brasileiro, a eleição municipal é vista como um misto de referendo da gestão presidencial de turno e um presságio para o que deve acontecer a seguir. Há elementos para se pensar assim.

Em 2016, João Doria, Marcelo Crivella, Alexandre Kalil e Marchezan Júnior, entre outros, representaram de certa forma o espírito de uma época. Não ganharam em função da força de seus partidos e não os tornaram mais fortes, eis que servir como bússola partidária para a disputa seguinte é algo para o qual a eleição municipal definitivamente não serve. Os principais vencedores indicaram, contudo, uma tendência, a do voto de protesto. Eles eram contra algo. Seja o esquerdismo, a política tradicional, a degeneração dos costumes. Anteciparam a vibração que soaria na eleição de dois anos depois.

Retrocedendo mais, a eleição municipal de 2012 aparecia muito mais como a consequência do processo eleitoral passado do que sinal preditivo para a eleição seguinte. Assim Fernando Haddad surgia como o segundo candidato de proveta fabricado por Lula (depois de Dilma), e Eduardo Paes e Márcio Lacerda indicavam a força de estruturas políticas regionais muito assentadas então no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Os dois, aliás, reeleitos na ocasião. Lacerda, por sinal, também havia sido um “poste” em sua primeira eleição, quando surgiu do casamento entre o governador Aécio Neves e o prefeito Fernando Pimentel, em 2008.

As correlações ficam complexas quando se olham eleições passadas, mas ainda assim sobrevivem. A eleição municipal de 2004 marcou um momento de transição. Pareceu desmentir a tese, com o resultado ruim do PT nos grandes centros (não só foi derrotado na reeleição de Marta Suplicy em São Paulo como perdeu a prefeitura de Porto Alegre, até então um bastião ideológico da sigla). Vista a eleição como um todo, na realidade havia um prenúncio de 2006. Pela primeira vez o PT foi a sigla mais votada do país em eleições municipais, seguido pelo PSDB. Confirmava-se a polarização entre petistas e tucanos no quadro nacional e o pleito indicou que o petismo havia feito uma troca de base: ele não contaria mais com os grandes centros urbanos do Sul-Sudeste, mas sim com as pequenas cidades e o com o Nordeste.

As eleições deste ano carregarão em si muito do que ocorreu em 2018, ocasião em que o hoje presidente Jair Bolsonaro foi o mais votado no primeiro turno em 110 das 120 maiores cidades, inclusive em 22 das 26 capitais de Estado. Já devem refletir, no entanto, o relativo enfraquecimento do presidente demonstrado nas pesquisas de avaliação de popularidade. Há um ingrediente adicional, que desestimula a formação de chapões em torno do líder nas pesquisas e fomenta a pulverização do quadro: entra em vigor a proibição de coligações proporcionais.

Nem a esquerda e nem a direita contam com estímulo para a formação de alianças, mas ainda assim deve-se apostar na força de fatores transversais, que podem dar características nacionais ao pleito. Por mais que as questões locais pesem, Bolsonaro foi um polarizador de tudo no país, ao longo dos últimos meses, até do carnaval. Esse é um dos mananciais da sua força, mas também uma das razões de sua fraqueza: ele participa de brigas em que não precisava estar, e que não tem como ganhar.

O fato do presidente estar sem partido não deve ser impeditivo para o estabelecimento de afinidades eletivas entre os candidatos e o grande polarizador do País.

O bolsonarismo não conta com uma sigla, mas com igrejas. O crescimento da identidade evangélica no momento de definição entre candidaturas é um fenômeno em alta no Brasil desde o início do século, que começa a contagiar países vizinhos, como a Bolívia. A associação a este fenômeno é buscada de maneira ininterrupta. Não foi a troco de nada a presença da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, trajando a camiseta com o nome de Jesus no pronunciamento presidencial do Natal.

Outro trunfo do presidente que não tem partido é a bala. Terá algum tipo de conexão com o Planalto todo e qualquer candidato que explore a angústia do eleitor que sofre com a segurança pública e cobra providências imediatas e cabais. Sem trocadilho, o poder de fogo desta variante, contudo, é menor que o da Bíblia.

O que as pesquisas do fim do ano mostram, com a precariedade existente em levantamentos feitos com tamanha antecedência, é uma posição bastante confortável dos representantes dos partidos ditos como de centro ou centro-direita. Pelo DEM, Rafael Greca e Eduardo Paes aparecem bem cotados em Curitiba e Rio. Pelo PSDB, Bruno Covas é bastante competitivo em São Paulo, se a saúde permitir e o apresentador José Luiz Datena não entrar em cena. Em Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD) está isolado na liderança. Em Salvador e Recife não há claros favoritos, mas Bruno Reis (DEM) e Daniel Coelho (Cidadania), respectivamente, podem estar no segundo turno. Em Fortaleza o deputado Capitão Wagner (Pros) aparece como favoritíssimo, mas o esquema político dos Ferreira Gomes ainda não entrou em ação, o que deixa a pesquisa com pouco significado. Em Manaus, a dianteira por ora está com um evangélico, o ex-governador David Almeida (Avante). Pela mesma sigla, o também evangélico Pastor Sargento Isidorio é cotado em Salvador.

A se confirmar estes movimentos preliminares, Bolsonaro pode não ter um resultado brilhante, mas é a ausência do PT que mais chama a atenção. O partido só aparece no páreo no Recife, caso deixem a deputada Marília Arraes ser candidata e em Manaus, com o deputado José Ricardo. Em Porto Alegre, a esquerda pode surpreender com Manuela D’Avila (PC do B).

O contingente de políticos vitaminados pelas urnas sem alinhamento com o petismo e o bolsonarismo pode, portanto, ter um desempenho importante. É um alento para o Centro em 2022. Se sair anêmico das eleições, o PT tende a dobrar a aposta no radicalismo. Buscará consolidar o que lhe resta. E o segmento evangélico, cada vez mais, tende a se tornar o esteio de Bolsonaro.

*César Felício é editor de Política.

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