sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Everardo Maciel* - Há perigos à espreita

- O Estado de S. Paulo

Recente decisão do STF, alargando as hipóteses de crimes tributários, é outro perigo à espreita

Em 2019 houve muita agitação no mundo tributário brasileiro. Felizmente, não prosperaram as pérolas da temporada de ideias ruins, especialmente a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 45, autodesignada reforma tributária. Às vezes, não fazer é também uma vitória.

Lentamente, foram sendo desvendadas as agendas ocultas daquela PEC, despertando a consciência dos parlamentares e dos contribuintes.

Não se deve, é claro, interditar o debate tributário. Assim, embora não esteja de acordo, reconheço autenticidade em proposta que pretende punir, entre outros contribuintes, as pequenas escolas e clínicas, os pequenos comerciantes e prestadores de serviços, os produtores de leite, os optantes do Simples e do Lucro Presumido e, concomitantemente, reduzir a tributação das instituições financeiras. Trata-se de opção de fundo ideológico.

Esconder esse propósito dos destinatários da proposta, entretanto, pode ser tido como politicamente desleal.

Dizia Amós Oz, notável escritor israelense: “O fanatismo começa no afã de mudar os outros supostamente ‘para o bem deles’. Utopias degeneram em distopias, paraísos teóricos em infernos práticos”.

Já não bastam a adoção dos padrões internacionais de contabilidade, que complicaram desnecessariamente a apuração do Imposto de Renda das empresas, e a ridícula tomada de três pinos, cuja obrigatoriedade infernizou a vida dos brasileiros e deve ter feito a fortuna de fabricantes.

Esse foco equivocado desvia a atenção para os verdadeiros problemas tributários brasileiros: o claudicante processo que responde pelo escandaloso volume de litígios tributários (só no âmbito federal, R$ 3,4 trilhões); o burocratismo, que constitui a causa principal das deploradas exigências no cumprimento das obrigações tributárias; a resolução das grandes controvérsias (ágio, preços de transferência, stock options, lucros no exterior, dano ao erário, etc.); o financiamento da Previdência Social tendo em vista as novas formas de trabalho e a excessiva sobrecarga tributária da folha de salários; a revisão do conceito de taxas; e o enfrentamento dos problemas específicos do ICMS, ISS, PIS e Cofins, que não são muitos, conquanto relevantes.

Como se percebe, é uma agenda longa e complexa, que requer muito trabalho e pouca espetaculosidade. O que não se deve, como diz a sabedoria popular, é matar o gado para acabar com o carrapato.

Recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) alargando as hipóteses de crimes tributários é outro perigo à espreita. Agora, será crime declarar e não recolher o ICMS, sempre que houver dolo, como no caso do devedor contumaz.
O tema vem sendo objeto de reflexões de inúmeros juristas, com especial destaque para o brilhantismo das intervenções de Igor Mauler Santiago, que praticamente esgotou a matéria. Ouso suscitar outras polêmicas.

Não se sabe a quem caberá apurar o dolo. Mais grave: o crime do devedor contumaz não está tipificado. Se tipificado, não deveria aplicar-se ao ICMS, mas a qualquer tributo.

Na atividade de varejo, é prática comum a venda a prazo, com descasamento entre as datas de recolhimento do tributo e o pagamento pelo consumidor. Se o contribuinte declarar e não recolher, e o consumidor não pagar, haveria crime? Em caso afirmativo, a quem seria atribuído o crime?

Pondera-se que as penas são brandas e não haveria, por conseguinte, privação de liberdade. Não é bem assim. A simples condição de réu é um penoso fardo, cuja possibilidade já é desestímulo para os empreendedores.

Ante a possibilidade de não pagar, chega-se à absurda conclusão de que seria preferível sonegar, pois declarar já seria indício de crime, ao passo que a sonegação só seria crime se apurada.

A única conclusão plausível é de que urge uma ampla reestruturação da legislação aplicável aos crimes tributários, melhor tipificando a matéria, disciplinando a representação fiscal para fins penais e dispondo sobre a extinção da punibilidade e a suspensão da pretensão punitiva do Estado. Caso contrário, os cerca de 80 milhões de processos em curso na Justiça vão caminhar para um pouco glorioso recorde internacional.

*Consultor tributário, foi secretário da Receita Federal (1995-2002)

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