sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Flávia Oliveira - Os desaparecidos da crise hídrica

- O Globo

Problema deveria ser tratado pelo primeiro escalão, mas está entregue ao segundo

O Rio de Janeiro tem governador e secretário estadual do Ambiente, mas parece estar com assentos vagos. Wilson Witzel (PSC) e Altineu Côrtes (PL) tornaram-se invisíveis durante crise hídrica que já dura duas semanas. De férias, o chefe do Executivo não antecipou o fim da temporada na Disney, quando moradores da Região Metropolitana começaram a denunciar que a Cedae estava entregando água com cheiro, cor e gosto, contrariando tudo o que aprendemos sobre potabilidade. Até ontem, o problema alcançava 71 bairros da capital e seis municípios da Baixada Fluminense, com implicações na qualidade de vida, na saúde, na economia e até na área policial. Deveria ser tratado pelo primeiro escalão, mas está entregue ao segundo.

Desde a virada do ano, Witzel publicou uma centena de tuítes — a forma de comunicação preferida de governantes contemporâneos para se comunicarem com eleitores, contribuintes e opinião pública. Apenas dois posts diziam respeito à estatal fluminense de água e esgoto. O governador do Rio gastou 396 caracteres para declarar que “são inadmissíveis os transtornos”; determinou “apuração rigorosa”; cobrou “solução definitiva para aprimorar a qualidade da água e do tratamento de esgoto das cidades próximas aos mananciais”. Só ontem à noite, de volta à capital, se reunia com o presidente da Cedae, Hélio Cabral. Houve um tempo em que mandatários de palácios demonstravam preocupação — ou disfarçavam a indiferença — formando grupo de trabalho, gabinete de crise ou comitê de emergência para tratar de temas urgentes como uma pane no abastecimento de água na temporada de mais calor e maior número de turistas.

Deputado federal e presidente estadual do PL, o secretário do Ambiente e Sustentabilidade, a quem cabe a política de recursos hídricos e saneamento, assumiu o cargo na segunda quinzena de dezembro, num acordo político relacionado à disputa pela prefeitura do Rio nas eleições deste ano. No site da pasta, Altineu Côrtes é apresentado (https://bit.ly/2suJDDR) como empreendedor, deputado estadual por três mandatos, ex-secretário da Infância e da Juventude. Na Alerj, presidiu a Comissão de Defesa da Pessoa com Deficiência e atuou na CPI dos Medidores de Energia Elétrica. Na Câmara dos Deputados, participou das CPIs da Petrobras e do BNDES. Não há menção a experiências em gestão ambiental. Em plena crise hídrica, o último post de Côrtes no Twitter foi na véspera de Natal; ontem de manhã, mudou a foto do perfil no Facebook.

O presidente da Cedae, Hélio Cabral, apareceu publicamente no 13º dia da crise e pediu desculpas à população. Elencou medidas paliativas, mas não acenou com qualquer política de longo prazo para conter a deterioração e preservar rios e matas ciliares que alimentam o sistema Guandu. Seria esse o papel do governador e do secretário do Ambiente. Cabral informou que só na próxima semana o recém-comprado equipamento para aplicação de carvão ativado chegará à concessionária. Não deu prazo para pôr fim ao problema da água com cor, cheiro e gosto. Afirmou que o consumo não oferece risco à saúde.

A população fluminense, desconfiada e, em muitos casos, com sintomas digestivos, corre atrás de água mineral. Esvazia gôndolas de supermercados; zera estoques de distribuidoras; paga ágio por garrafas e galões. Reside aí o lado mais nefasto da crise de oferta de um produto absolutamente essencial como a água, a desigualdade. Quem pode paga; quem não tem dinheiro fica exposto. No Estado do Rio, em 2018, havia 3,148 milhões de habitantes abaixo da linha pobreza de US$ 5,50 do Banco Mundial, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE. Equivalem a 18,4% da população; não têm como gastar R$ 4 em litro e meio de água mineral.

No índice oficial de inflação, o IPCA, é provável que o IBGE capture o salto nos preços da água mineral no Rio. O produto é apurado juntamente com refrigerantes no grupo Alimentação e Bebidas. O resultado de janeiro sai no início do mês que vem.

A crise hídrica reacendeu o debate sobre a privatização da Cedae, prometida ao governo federal no acordo de recuperação fiscal do Rio, firmado em 2017. Estudo da consultoria KPMG para a Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon) previu que o Estado do Rio precisa de R$ 50 bilhões em investimentos para universalizar os serviços de abastecimento e saneamento. Metade da cifra iria para rede coletora e estações de tratamento de esgoto. A venda da estatal, se consumada, não tira do governo do estado a responsabilidade pela política ambiental de preservação de rios, lagoas e mares. É urgente debatê-las; o momento, agora.

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