- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
O governo quer diminuir o número de palavras dos livros didáticos, quer ampliar o espaço do silêncio na boca das crianças e dos adolescentes
Declaração antipedagógica do presidente da República, sobre seu governo reduzir palavras nos livros didáticos, é um desses indícios cotidianos de fragilidade governativa. Alarma os que se inquietam com os riscos de toscas concepções de política. Nesse caso, especialmente os educadores, pelo amadorismo e pelos perigos que tais palavras acarretam ao sistema de ensino e à formação das novas gerações.
Elas terão na capa dos livros as cores da bandeira, mas não saberão o significado social e político da palavra “pátria”, que é uma síntese do sentido de muitas palavras, unidade do diverso, a do nosso nós. Não há pátria onde faltam palavras para que a poesia do destino em comum se faça ouvir. É a poesia de nossa abundância barroca de palavras que nos faz um povo único, brasileiro.
É assim que se pode compreender o incompreensível da fala de porta de palácio, há alguns dias, ao dizer o presidente que nossos livros didáticos têm excesso de palavras: “Em 21, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional. Os livros hoje em dia, como regra, é (sic) um amontoado Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo”, disse ele.
É da lógica da economia neoliberal que governar é fazer cortes. O governo quer diminuir o número de palavras dos livros didáticos, quer ampliar o espaço do silêncio na boca das crianças e dos adolescentes. Ora, livros não são caixas registradoras. O que se espera é que os livros sejam o abrigo de palavras em abundância, com sentido. Não palavras tuitadas para dizer muito sem dizer nada.
A fala à porta do Palácio do Planalto é um indício do advento político da pós-modernidade, a das reduções e simplificações do pensamento aplainado, linearizado, da inteligência de distâncias curtas entre a premissa e a conclusão. O pensamento de quem não sabe pensar.
A pós-modernidade é isso. A sociedade mergulhada no tempo da intemporalidade, a das equivalências gerais, do critério chão do “eu acho”.
Chegamos à pós-modernidade sem ter conhecido propriamente o moderno, a sociedade da igualdade e dos direitos sociais. Chegamos ao capitalismo do plástico, da poluição, do lixo das falsas abundâncias, das “fake news”. Mas não chegamos à sociedade de ideias próprias. Hoje, importamos ignorância, frases feitas, expressões de uma língua que não é nossa e que não sabemos o que querem dizer.
O corolário é o racionamento de palavras, a pobreza do dizer sem pensar, o do silêncio por decreto ou portaria. A pós-modernidade que o é porque é a da sociedade que já não dispõe de todas as palavras de que carece, o que a impede de conhecer a natureza iníqua desse carecimento.
O pouco tornou-se demasiado na sociedade da nova pobreza, a pobreza de sentido do que é dito, de palavras para dizer e expressar ideias e esperanças. Ler é essencial para formar a consciência social e é o instrumento mais importante e mais decisivo da liberdade e da democracia. A ignorância politicamente provocada é antidemocrática e fascista. Não é casual que quem se opõe à abundância das palavras nos livros, também aplauda a tortura e os torturadores e aplauda ditadura.
As objeções ao jornalismo e aos jornalistas, na mesma onda da minimização da palavra no livro didático, completam um cenário em que dizer, escrever e ler não têm lugar proporcional ao necessário neste país.
Não é de agora que a cultura letrada sofre ataques e restrições do governante. Lula, que é um homem inteligente, sofre porque não tem os diplomas que outros têm, com mérito. Sente-se menos do que de fato é por essa carência. Em sua vida o diploma tornou-se um fetiche. Na diplomação, quando eleito presidente da República, emocionou-se pelo diploma recebido.
Em seus governos, mais de uma vez minimizou os títulos acadêmicos de FHC, eminente professor universitário, de reputação internacional. Escolheu o adversário errado e o tema errado. Depreciou, para as novas gerações, a formação universitária tão essencial ao presente e ao futuro de um país que está atrás do ponto onde já deveria ter chegado há muito.
Jair Messias e vários de seus ministros seguem o mesmo roteiro de minimizar o conhecimento, o livro, a poesia que há na palavra escrita e sua perpetuação no texto impresso.
Falta-lhes o profundo e abundante significado de “Manhã”, a curta e bela poesia de Ungaretti (1888-1970), poeta italiano que foi professor na Universidade de São Paulo: “M’illumino d’Immenso”. Traduzo livremente: “Ilumino-me de imensidão”. O “amontoado” de significados em apenas duas palavras. Já na fala da porta do Palácio do Planalto há um poema tétrico, no pouquismo que nos inunda de trevas quando mais carecemos de luz.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador emérito do CNPq, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Desavessos” (Criarte).
Professor Martins sempre muito lúcido em suas análises.
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