sábado, 18 de janeiro de 2020

Mario Sergio Conti – Autocrítica cara-pálida

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

No livro 'Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018', senador acerta contas com a política democrata e progressista

Cristovam Buarque é um homem honrado. Ao ver uma foto de Lula com crianças em Toritama, Pernambuco, ele foi até lá. Quis conhecer aquelas meninas e meninos descalços e sem camisa, apartados do presidente por uma cerca de arame farpado. Um ano antes, em 2004, Lula o demitira, pelo telefone, do Ministério da Educação.

Visitou as crianças e falou com pais e professoras. Esteve na escola onde fazia um calor dos diabos. Viu o chão de terra batida, as carteiras desconfortáveis, a poeira, a pedagogia ineficaz. Escreveu uma carta a Lula contando o que vira.

Disse ao presidente que ele “não era culpado da tragédia que observei, mas seria se, uma década depois, a situação não melhorasse”. Cristovam, que assumira sua cadeira no Senado, deu-lhe também ideias para melhorar a educação em Toritama e em todo o Brasil.

Voltou lá dez anos depois, em 2015. Nenhuma criança que conhecera terminou a escola. Ticiana teve um filho aos 16 anos. Cambiteiro, vigilante, foi assassinado aos 19. Rubinho, que não aprendeu a ler, virou pai aos 17. Diego foi esfaqueado, fugiu do hospital, sumiu. A escola seguia péssima.

A narrativa das visitas a crianças e jovens pobres de dar dó rende as melhores páginas de “Por Que Falhamos - O Brasil de 1992 a 2018” (Tema Editorial, 89 págs.), o novo livro de Cristovam Buarque.

Elas servem para lembrar o objetivo clássico da política: harmonizar a vida em sociedade. E, a partir da Revolução Francesa: agir para que os cidadãos sejam livres, iguais e fraternos.

Como a política nacional não gerou nada disso —e sim Toritama—, os governos de Itamar a Dilma desaguaram num bonapartismo bestial que esfola os pobres para enriquecer os ricos. Cristovam faz o balanço de um fracasso: o dos políticos “democratas e progressistas”, entre os quais se inclui.

O título do livro em inglês será outro, “Como a Esquerda Elegeu a Direita no Brasil”. Ocorre que Cristovam votou em Aécio (de direita) para presidente, pela destituição de Dilma (de centro-esquerda) e apoiou Temer (de direita). Esquerda quem, cara-pálida?

Mas fiquemos no livro em português: o PSDB e o PT falharam na construção de uma república moderna. Analisar a debacle é imperativo porque a ausência de autocrítica foi um elemento constitutivo dela.

Daí a dizer que eles “elegeram” Bolsonaro é abusivo. É não levar em conta a extrema direita. É esconder que o empresariado e seus prepostos a apoiaram na eleição e hoje a sustentam. Exagero? Eis o que dizem dois líderes da classe sobre o governo.

Abílio Diniz: “Minha avaliação é altamente positiva” (Folha, 12 de janeiro). Jorge Paulo Lemann: “O rumo do Paulo Guedes está correto. Poderia ter menos agito na parte política” (O Globo, 16 de dezembro.). Para eles, o que importa é ganhar dinheiro. O seu. Com ou sem “agito”.

“Por Que Falhamos” se recusa a considerar essas forças político-econômicas porque não tem método. Sem hierarquia, cada um dos 24 capítulos do livro enuncia um erro.

O que liga os erros entre si são as idiossincrasias do autor.

Elas vão da inconsequência à má-fé. Ele reclama duas vezes ter sido o verdadeiro criador do Bolsa Família, ao qual teria batizado de Bolsa Escola. Ninguém nunca defendeu isso, só Cristovam.

O título de um capítulo é “Adotamos o culto à personalidade”. Ora, o termo designa uma política específica do stalinismo. Não houve nada de parecido aqui. Se a intenção foi aproximar Lula de Stálin, o fez de maneira insidiosa, sem sequer citar o nome de um e de outro.

Dedicado ao período entre 1992 e 2018, o livro desdenha o que se passou nesses anos, a própria história.

Não se trata de prescindir da ordem cronológica. Mas de embaralhar os fatos, confundindo os definidores com os acessórios, para se concluir o que se deseja.

Fato definidor foi a emenda de Fernando Henrique que permitiu a sua reeleição. O personalismo em benefício próprio do príncipe dos sociólogos, digna de caudilhos bigodudos e de sombreiro, esculhambou a própria noção de república.

Fato definidor foi o planeta. Não basta dar a barretada de praxe à venda de matérias-primas brasileiras à China. Ou de repetir “sustentável” feito papagaio. Mas de investigar se o Brasil pode de fato ser autossustentável.

Fatos definidores foram os protestos de 2013 e a reação do PT a eles. A primeira coisa que Lula e Dilma fizeram foi procurar o marqueteiro João Santana, um corrupto confesso.

Cristovam não diz uma palavra sobre os três fatos. Não basta ser um homem honrado para escrever um livro útil.

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