quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Míriam Leitão - Os desafios dos anos 20

- O Globo

A busca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU e a proteção da democracia vão marcar os anos 20 que começam hoje

Os anos 20 começam com a grande dúvida sobre o que vai acontecer em questões centrais da organização da sociedade humana. Até onde irá a inteligência artificial, como as economias criarão emprego nesta etapa da revolução tecnológica, os valores democráticos serão minados pelos governantes de índole autoritária que se espalham por inúmeros países, o mundo entenderá o risco da emergência climática? Essas dúvidas brasileiras e do mundo pairam sobre a década que começa hoje.

Ontem acabaram os anos 10. No Brasil, eles foram uma montanha-russa na economia. O país teve o maior crescimento do PIB deste século, 7,5% em 2010, e a pior recessão de que se tem notícia, superando as que ocorreram no governo militar, no início dos anos 80, e no governo Collor. Foi a mais profunda, mais longa, e que está impondo a nós o mais árduo caminho de volta. Cinco anos depois não recuperamos o PIB perdido. Na área ambiental, o país teve em 2012 o melhor número do combate ao desmatamento. Mas era em parte o efeito do impulso dado na década anterior. Esse esforço foi se perdendo aos poucos. Mas no ano passado o risco escalou, com o ataque sistemático ao aparato de proteção ambiental.

Isso joga uma sombra perigosa sobre os anos 20. Se o país se consolidar como o vilão do meio ambiente, como foi visto na COP-25, haverá barreiras ao comércio brasileiro de produtos agrícolas, que é o setor mais dinâmico da economia do país. Em ensaio publicado na edição de fim de ano do “Financial Times”, Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard e escritor, disse que “o primeiro passo para pensar sobre o futuro é reconciliar o progresso humano com a natureza humana”. Esse é o desafio, e nós entramos na terceira década do século XXI colecionando retrocessos nas várias reconciliações que temos que fazer do nosso modo de vida com o meio ambiente, do progresso com os limites do planeta.

Nada disso é novo, mas a década é decisiva porque nela 193 países do mundo estarão cumprindo os últimos anos para atingir metas que adotaram. Os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU comprometeram países, inclusive o Brasil, com 169 metas. Há compromissos de redução da pobreza, combate à fome, redução da desigualdade de gênero, acesso à Justiça, proteção ambiental. Os objetivos terão que ser atingidos até 2030, então esta é a década mais importante. Nunca tantos países estiveram comprometidos com tão bons propósitos para fazer do mundo um lugar melhor para os seres humanos.

A questão democrática passará nos anos 20 pelo seu momento decisivo. A vitória de Donald Trump nos Estados Unidos marcou o início de um período assustador, porque ele tem submetido as instituições americanas a situações que não se imaginava que elas viveriam. Ele mente com tanta frequência que já é um caso de estudo dos especialistas. Ele faz um cerco violento à imprensa. Ele confunde o público e o privado de forma sistemática. Um conceito que parecia consolidado na democracia e na economia americanas era o do conflito de interesses. Ninguém acreditaria que isso pudesse acontecer por lá, mas o presidente continua gerindo seus negócios privados e os mistura com os assuntos de Estado a tal ponto que chega a fazer encontros de cúpula mundial em seus resorts. Trump enfrenta hoje um processo de impeachment por outra acusação, também derivada da falta de limites entre o público e o privado, a de ter pedido ao presidente da Ucrânia para investigar um adversário político. O cenário mais provável é o de que o Senado vote com ele e contra o impeachment. E se Trump prevalecer e for reeleito, a mais poderosa democracia do mundo estará convalidando o comportamento delinquente do seu governante.

Pinker diz que apesar dos casos de retrocessos em alguns países — e ele cita Turquia, Hungria, Venezuela, Rússia — o total de democracias vem aumentando no mundo. O número de países democráticos chegou a 99 em 2018. Em 1998 eram 87, em 1978 eram 40, em 1968 eram 36. Há um século eram apenas 10. Hoje, quase 100. Esses números levam a uma conclusão otimista que desanuvia um pouco os temores que cercam o mundo atual, principalmente a partir do mau funcionamento da democracia americana. Os próximos dez anos começam com várias sombras, mas também com muitas esperanças. Que elas prevaleçam.

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