segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Bruno Carazza* - Luz e escuridão

- Valor Econômico

Saga da Light demonstra aversão ao setor privado

Na última semana o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) concluiu a venda de R$ 22 bilhões de ações ordinárias da Petrobras. A estratégia da equipe econômica é se desfazer da participação em empresas consideradas “maduras”, atingindo assim o duplo objetivo de redirecionar a atuação do banco estatal e contribuir para o ajuste fiscal, por meio do repasse de dividendos à União. Antes da Petrobras, houve a venda de 34% do capital do frigorífico Marfrig e também a zeragem de sua posição na distribuidora de energia Light.

A venda de mais de 19 milhões de ações da Light pelo BNDES, aliás, encerra uma trajetória mais do que centenária de envolvimento e intervenção do governo na empresa. Constituída em 1899 em Toronto, no Canadá, como São Paulo Tramway, Light and Power Company, a empresa começou a atuar no Brasil em 1901 com a construção da usina hidrelétrica de Parnahyba, no rio Tietê. Em 1905, os mesmos sócios canadenses criaram a Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Company.

A presença da Light, como passou a ser conhecida, mudou a paisagem das duas maiores cidades brasileiras. Graças a seus investimentos, Rio e São Paulo migraram das carroças para o bonde elétrico e dos lampiões para a luz elétrica. A empresa obteve ainda a concessão dos serviços telefônicos nas duas capitais, e expandiu sua atuação para outras regiões e setores no país.

O crescimento da maior multinacional estrangeira no Brasil à época, porém, esteve longe de ser bem quisto. A empresa sofria constantes acusações de que suas tarifas eram extorsivas e geravam lucros extraordinários para serem remetidos à matriz. Ao lado do discurso nacionalista de políticos e intelectuais, veio o populismo tarifário que subsidiava o consumo em detrimento dos investimentos na expansão dos serviços. O sistema de bondes acabou ficando sucateado e, depois de um longo período de intervenção federal, seu braço telefônico, a CTB, foi estatizado em 1966.

Em meados da década de 1970 a situação da Light era complicada: seu prazo de concessão estava prestes a expirar, o crescimento gerado pelo milagre econômico exigia investimentos cada vez maiores para dar conta da demanda crescente por energia elétrica e o controle das tarifas deteriorava a receita da empresa. Nessas condições, os canadenses começaram a sinalizar que queriam deixar o país.

A grande questão era: quem compraria a empresa? Àquela época o país não dispunha de grupos econômicos com porte para arcarem sozinhos com a aquisição. Por outro lado, o mundo vivia a ressaca do primeiro choque do petróleo e o fluxo de investimentos para os países emergentes tinha secado. Só restava a opção da estatização, mas pairavam dúvidas se o governo, enfrentando uma grave crise fiscal e de balanço de pagamentos, teria divisas para bancar a operação.
Foi nesse cenário que surgiu uma proposta bastante original.

Concebida por Raphael de Almeida Magalhães, político e ex-diretor da Light, e pelo jurista José Luiz Bulhões Pedreira, a ideia era criar um arranjo societário e financeiro para, ao mesmo tempo, evitar a estatização da Light e, como bônus, catapultar o desenvolvimento do mercado de capitais no país.

Bulhões Pedreira, que ao lado do professor Alfredo Lamy Filho havia elaborado o projeto da Lei das Sociedades Anônimas, desenhou a arquitetura do negócio. Em linhas gerais, a ideia era constituir a Empresa Brasileira de Participações S.A (Embrapar), que teria o seu capital integralizado em partes iguais por um grupo de 20 das maiores empresas privadas nacionais. A Embrapar adquiriria o controle acionário da Light e pagaria o grupo canadense com os dividendos gerados num prazo de dez anos.

Para levantar os investimentos necessários para a conservação e melhoria da sua rede, a Embrapar lançaria ações e títulos nas bolsas do Rio e de São Paulo, e aí residiria a grande externalidade positiva da operação: o lançamento de papéis de uma empresa cujos sócios controladores eram os maiores empresários privados nacionais, lastreados num serviço que gerava receita estável, teria o potencial de popularizar o mercado de capitais brasileiro, pois se mostraria uma aplicação financeira muito mais rentável do que as velhas cadernetas de poupança.

A proposta foi bem recebida pelos donos canadenses e tinha o apoio dos ministros da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, e das Minas e Energia, Shigeaki Ueki. Mas acontece que a velha política atravessou o caminho. O poderoso líder baiano Antonio Carlos Magalhães, então presidente da Eletrobras, bombardeou a proposta privada de todas as formas possíveis, de fake news plantadas na imprensa a relatórios negativos encaminhados ao presidente Ernesto Geisel. E o que seria uma solução genial, de mercado, para o problema, acabou constituindo mais um c apítulo do velho estatismo nacionalista brasileiro.

Em 29 de dezembro de 1978, os jornais estampavam nas suas capas: o governo federal decidira comprar a Light. Por US$ 1,14 bilhão (US$ 4,5 bilhões hoje), a Eletrobrás adquiria 83% do capital da empresa, tendo como justificativa a importância estratégica do setor de energia, “intrinsecamente ligada à segurança nacional”, conforme nota divulgada à imprensa. Pouco depois a Light foi repassada ao governo do estado do Rio de Janeiro, e após um longo período de sucateamento, foi privatizada em 21 de maio de 1996. A viabilização da transferência da empresa para o setor privado, porém, só foi concretizada por meio da participação do BNDES. A venda da participação do banco no mês passado, portanto, encerra definitivamente (será?) o ciclo de intervenção estatal na empresa.

A empolgação com a agenda econômica do governo e a queda nas taxas de juros vêm atraindo um contingente cada vez maior de pessoas para a bolsa de valores. Nos idos de 1976, a proposta de José Luiz Bulhões Pedreira e Raphael de Almeida Magalhães de criar a Embrapar tinha o objetivo de levar o pequeno investidor para o mercado de ações. São “apenas” 44 anos de atraso, em mais um capítulo da extensa lista de oportunidades perdidas em nossa história.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

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