quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Chico Alencar* - Desafios do PT aos 40 anos

- O Globo

A direita viralizou a falsa ideia de que a corrupção de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo

Há 40 anos, o Partido dos Trabalhadores foi importante novidade no cenário político do país. Partidos de caráter nacional, com doutrina e base militante, só surgiram entre nós depois do Estado Novo, com a democratização de 1945 — à exceção do Comunista, fundado em 1922. E de movimentos como a Ação Integralista Brasileira e a Aliança Nacional Libertadora, nos anos 30.

Antes, o que tínhamos eram ajuntamentos de interesses aristocráticos: os de “portugueses” e “brasileiros” na época da Independência quase bicentenária, “liberais” e “conservadores” no Império, partidos republicanos à feição das oligarquias provinciais na República Velha.

O PT nasceu na contramão do padrão costumeiro: veio das praças para os palácios. Novidade também na esquerda, chegou criticando ortodoxias e experiências autoritário- burocráticas do “socialismo real”. Não queria ser mera legenda para disputas eleitorais. Não aceitava substituir a cidadania, e sim representá-la e estimulá-la.

Seus documentos inaugurais afirmavam que o socialismo do programa do PT, radicalmente democrático, só o seria se fosse obra de milhões, combatendo todas as desigualdades. Um partido ético, crítico e criativo. Com essas virtudes, cresceu e ganhou influência. Graças a essa nitidez tornou-se, ainda hoje, a despeito da maré montante da antipolítica, a sigla mais reconhecida no cipoal (recém-“renovado”) de legendas de fantasia.

Como é notório, a ampliação da inserção do PT na institucionalidade trouxe contradições. Alcançando evidência parlamentar e conquistando governos, setores de suas direções deixaram de considerá-lo ator entre atores, com diferentes papéis e uma elaboração compartilhada a ser permanentemente revista e encenada na cena pública: a da construção de uma “nova gramática” do poder, inclusive na formulação de uma política econômica alternativa. Ao hegemonismo somou-se uma espécie de “adaptacionismo” — como reconhecem muitos de seus militantes e alguns dirigentes.

Tempus fugit! A base operária que deu “nervo e vida” ao PT não é mais a mesma: novas tecnologias alteraram profundamente o perfil da classe trabalhadora no Brasil, hoje muito segmentada. Diversas funções estão em extinção. A automação e o universo digital geram a chamada “desmaterialização” da produção e o desemprego estrutural. Não se interfere em novas realidades com compreensões obsoletas.

A interação do PT com os movimentos populares se refletiu nas políticas sociais que desenvolveu quando no poder central. Faltaram reformas estruturantes, democratizantes, profundas: a política, a tributária, a agroecoambiental, a do Estado — para este ficar poroso às demandas da sociedade. Justamente quando enfrentou o maior desafio de sua história, sendo governo da República, o PT implementou medidas que não proclamara em campanha e fez alianças — um imperativo na política — desconsiderando fronteiras éticas, mais pragmáticas que programáticas. Em meio a dissensos e desencantos, parte da população passou a percebê-lo como um partido igual aos demais. A direita hoje vitoriosa viralizou a falsa ideia de que a corrupção sistêmica, estrutural e antiga de 500 anos tinha sido inaugurada pelo petismo.


A tendência é que o PT siga sendo uma sigla expressiva eleitoralmente, apesar dos desgastes. O grande desafio, dele e de todas as forças progressistas, inclusive não partidárias, é reconhecer a derrota e os erros, renovar-se (nas pautas e também na linguagem) e vivificar, no imaginário popular, a mística do encantamento político pelos projetos coletivos.

Não se faz autocrítica dos outros. Mas essa boa tradição da esquerda precisa ser revitalizada, com humildade, em todas as suas organizações. Isso é tão importante quanto constituir uma frente democrática, progressista e antifascista, que reencontre os endereços perdidos do nosso povo.
*Chico Alencar é professor e escritor e foi deputado federal pelo PT e pelo PSOL

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