domingo, 16 de fevereiro de 2020

Luiz Carlos Azedo - Encosta abaixo

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros”

Autor da grande trilogia Era das revoluções (1789-1948), A era do capital (1848-1875) e A era dos impérios (1875-1914) —, Eric John Hobsbawm fez a cabeça da esquerda brasileira sobre o mundo atual, com A era dos extremos: o breve século XX. O historiador nasceu em Alexandria, Egito, quando o país se encontrava sob domínio britânico, passou a infância entre Viena e Berlim e migrou para Londres aos 14 anos. Quando jovem, ingressou no Partido Comunista britânico; durante a II Guerra Mundial, cavou trincheiras no litoral do Canal da Mancha e fez parte da inteligência do Exército britânico.

Após a guerra, Hobsbawm voltou para Cambridge, onde se tornou um expoente da historiografia mundial, ao lado de Christopher Hill, Rodney Hilton e Edward Palmer Thompson. Sua Era dos extremos é o livro mais lido sobre a história recente da humanidade, e Tempos interessantes, de 2002, recebeu o Prêmio Balzan para a História da Europa. Membro da Academia Britânica e da Academia Americana de Artes e Ciência, lecionou na Universidade de Londres e na New School for Social Research, de Nova Iorque. Morreu em Londres, em 2012.

Nascido em 1948, o londrino Tony Judt era neto de russos e rabinos lituanos. Aos 15 , aderiu ao sionismo e quis emigrar para Israel, contra a vontade dos pais. Em 1966, foi passar o verão num kibbutz machanaim e acabou servindo como motorista e tradutor no Exército de Israel, na Guerra dos Seis Dias. No fim da guerra, porém, voltou para Inglaterra. Judt graduou-se em história na Universidade de Cambridge (1969), mas realizou suas primeiras pesquisas em Paris, na École Normale Supérieure, onde completou seu Ph.D., em 1972.

Em outubro de 2003, publicou um artigo na New York Review of Books, no qual recriminou Israel por se tornar um Estado étnico “beligerante, intolerante, orientado pela fé” e defendeu a transformação do Estado judeu num estado binacional, que deveria incluir toda a atual área de Israel, mais a Faixa de Gaza, Jerusalém Oriental e a Cisjordânia. Nesse novo Estado, segundo sua proposta, haveria direitos iguais para todos os judeus e árabes residentes em Israel e nos territórios palestinos. Seu artigo causou um terremoto na comunidade judaica e lhe valeu a expulsão do conselho editorial da revista.

Judt lecionou na Universidade de Nova York, na cadeira de Estudos Europeus. Seu livro Pós-guerra — uma história da Europa desde 1945 é monumental. Em março de 2008, foi diagnosticado com esclerose lateral amiotrófica (ELA). Um ano depois, estava tetraplégico; faleceu em 2010, depois de um calvário no qual escreveu três livros: O mal ronda a Terra, O chalé da memória e Pensando o século XX, baseado em conversações com Timothy Snyder. Judt fez parte do que chamou de “geração Hobsbawm”, homens e mulheres que começaram a se ocupar do estudo do passado em algum momento da “longa década de 1960” (entre 1959 e 1975), cujo interesse “foi marcado de forma indelével pelos escritos de Eric Hobsbawm, por mais que eles agora discordem de muitas de suas conclusões”.

Autocrítica
No ensaio Encosta abaixo até o final (Quando os fatos mudam, editora Objetiva, publicado no New York Review of Books, em maio de 1995, como uma resenha de A era dos extremos: O breve século XX, 1914-1991, de Eric Hobsbawm), Judt criticou duramente o seu mestre: “Ainda que escreva sem nenhuma ilusão a propósito da antiga União Soviética, ele se mostra relutante em admitir que ela não tinha aspectos que a redimissem (inclusive o de desempenhar o papel de manter ou impor a estabilidade no mapa da Europa)”. Judt também critica Hobsbawm por justificar o terror stalinista e as coletivizações forçadas com o esforço de guerra.

Segundo Judt, era difícil para Hobsbawm fazer autocrítica da própria fé: “Contudo, há duas ou três mudanças cruciais que tiveram lugar no mundo — a morte do comunismo, por exemplo, ou a relacionada perda de fé na história e nas funções terapêuticas do Estado a respeito da qual o autor nem sempre se mostra satisfeito. Isso é uma pena, já que forma e, às vezes, deforma seu relato de maneiras que podem diminuir seu impacto sobre aqueles que mais precisam lê-lo e aprender com ele. E senti falta, em sua versão do século XX, do olhar impiedosamente crítico que fez dele um guia tão indispensável para o século XIX”.

Em janeiro de 2018, o ex-senador Cristovam Buarque foi convidado a uma palestra em Oxford para falar sobre por que Bolsonaro venceu. Agora, voltou à universidade britânica para lançar a versão em inglês do pequeno livro Onde erramos: de Itamar a Temer, publicado como e-book pela Tema Editorial, no qual o ex-governador de Brasília e ex-reitor da UnB faz uma polêmica autocrítica a partir daquela palestra. Não sei se Buarque se inspirou em Tony Judt, mas, com certeza, a esquerda brasileira tem as mesmas dificuldades de Eric Hobsbawm para fazer autocrítica. Persiste nos próprios erros.

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