segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Mathias Alencastro* - Bloomberg quer comprar seu voto

- Folha de S. Paulo

Vem aí mais um teste para as democracias

Surpreendentemente, o candidato que mais subiu nas sondagens desde o começo do ciclo eleitoral americano foi aquele que escolheu esperar para entrar mais tarde no jogo. Michael Bloomberg ignorou o circo das primárias e armou uma campanha paralela que o posicionou entre os favoritos.

A sua revolucionária operação eleitoral funciona como uma holding na qual cada subsidiária exerce a sua função com total liberdade criativa. Em poucos meses, a equipe de comunicação reinventou uma figura carimbada da política americana de 78 anos.

Michael, um plutocrata com carisma de labrador, dono de um dos maiores grupos de tecnologia, finanças e mídia do mundo, passou a ser conhecido como “Mike”, um empreendedor gente fina, pau para toda obra, voluntarioso.

Uma metamorfose impressionante para um ex-republicano que carrega dois estigmas fatais para um democrata em tempos normais: representante do clube dos 0,1% mais ricos, ele personifica a desigualdade extrema da sociedade americana, denunciada como a origem de todos os males pelos progressistas.

Talvez ainda mais problemático, os afroamericanos, eleitores-chave do partido democrata, desconfiam de Bloomberg pelo seu passado repressivo em Nova York, onde sua gestão como prefeito incriminou sobretudo negros e latinos.

Mas nada disso parece importar na nova era da política. Por trás da candidatura de Bloomberg, está a premissa de que a derrota dos populistas passa pela abolição dos limites convencionais da democracia moderna. Libertado do problema do financiamento (ele mobilizou US$ 1 bilhão da sua fortuna pessoal para a campanha), Bloomberg pretende tornar obsoleto o modelo tradicional da eleição americana, baseado no tripé imprensa-sondagens-doações, e caracterizado pela disputa constante pela narrativa ao longo de meses de campanha.

Por enquanto, Bloomberg repete a quem quiser ouvir que uma eventual derrota nas primárias não interromperia o seu engajamento político e financeiro. No entanto, as vítimas mais prováveis da sua blietzkrieg eleitoral serão os moderados convencionais, incapazes de competir com a sua máquina. E ele não parece interessado em virar cabo eleitoral de Bernie Sanders, seu principal antagonista ideológico.

Na realidade, Bloomberg está atuando como um homem de negócios interessado na aquisição hostil de um ativo desvalorizado. Ele tem como objetivo final colocar os moderados democratas perante um dilema faustiano: entregar a batalha presidencial para o seu conglomerado ou encarar um duelo entre Donald Trump e Bernie Sanders.

Esse dilema provocaria um debate fascinante. Vale a pena privatizar o partido democrata para tirar Donald Trump do poder? A ascensão de Bloomberg é sinal de melhora ou agravamento da crise do sistema político? Até onde os progressistas estão dispostos a ir para derrotar os populistas? O jogo ainda nem começou e já não restam dúvidas: a candidatura de Michael Bloomberg representa um novo tipo de teste para as democracias.

*Mathias Alencastro, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

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