terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Miguel De Almeida* - A guerra santa em marcha

- O Globo

Novos estudos recorrem às obras cristãs carregadas de proselitismo fundamentalista para reconstituir mundo apagado

Assim como ocorreu com o desafortunado Marx, o pobre Cristo também padeceu na mão de seus seguidores. Ambos passaram por lipoaspiração, retoques e tiveram conceitos e idiossincrasias enfiadas em suas bocas.

São dois das maiores vítimas de fake news na história da humanidade.

Ainda sequer baixara à sepultura, o corpo nem esfriara, e os rascunhos de Marx já estavam nas mãos de Engels, parceiro de farra, para serem ordenados, aparados e ajustados à causa imediata. Depois, o Partido Socialista alemão faria expurgo em Marx e Engels para ajustá-los aos interesses (e preconceitos) de seus dirigentes políticos.

Do mesmo jeito que aquele idiota jogou uma bomba na produtora do Porta dos Fundos, evocando a defesa de Cristo, em nome também de Cristo os primeiros séculos de nossa história surgem recheados de histéricos, mal-intencionados e outros punguistas que, infelizmente, modelarão o que hoje é apresentado como ideal cristão. E, usando seu santo nome em vão, tal esse flanelinha fascista, preconceitos foram construídos, superstições ganharam corpo, e o medo (ou pavor) se transformou em instrumento de convencimento e poder — demônio, inferno…

Até Constantino, o Império Romano conviveu por séculos (assim como anteriormente a civilização helênica) com um panteão de deuses. Mesmo sob conflitos, viviam em paz com suas diversas crenças e divindades. Não havia jamais a intenção de forçar seu vizinho a comungar de sua devoção. Tampouco se desejava legislar sobre o desejo alheio (leia-se: sexo). A intimidade pertencia a cada cidadão.

O sexo não era um problema na Atenas de Sócrates ou na Roma de Sêneca. Vale dizer: sexo hétero ou homossexual. Para fugir ao arrepio do prazer, o ideólogo cristão Orígenes (século III) castra-se.

Ao se converter ao cristianismo, por volta de 313, o imperador Constantino enquadra seus concidadãos à rigidez de sua nova crença. No caso, vai dar ouvidos a maus intérpretes do catolicismo, e dedica-se a extirpar pensadores estoicos quando manda apagar ou queimar seus livros por enxergar ali ideias contrárias àquele mundo, até então, mais identificado com a liberdade dionisíaca do que com o freio à luxúria defendida pelo histérico Paulo de Tarso (esse aí um homofóbico de quatro costados).

Estudos recentes mostram como os séculos III, IV e V aprofundam a perseguição aos pagãos e a demonização do que batizam como sendo hereges — justamente aqueles que não seguiam as ideias da nova religião no poder. Algo lhe soa familiar?

É um período de trevas (o primeiro?) trazido pela religião. Em sua batalha por conquista de corações e mentes, futuros santos como Agostinho incentivam a destruição de estátuas greco-romanas, de templos (Serapis…) e o apagamento de obras que trazem ideias opostas a esse messianismo colocado nas costas do cristianismo.

Centenas de estátuas greco-romanas tiveram seus olhos furados, sexo arrancados, cabeças cortadas — ao contrário do que se diz, aquilo não foi ação do tempo.

Também pouco sobrou da filosofia ou da literatura latina ou ainda de pensadores epicuristas —foram apagados por agentes da nova igreja.

Difícil haver crime perfeito, e então novos estudos agora recorrem às obras cristãs carregadas de proselitismo fundamentalista (tal Agostinho) para reconstituir esse mundo apagado. Ou contam com a sorte: deparar-se com manuscritos escondidos em bibliotecas de monastérios, que escaparam à perseguição ordenada pelos primeiros bispos. O de Lucrécio, por exemplo, antecipava a Física moderna.

Tanto lá como agora o messianismo anseia a terra plana.

O mundo pré-Agostinho e Constantino nas seguintes obras: “The Darkening Age: The Christian Destruction of the Classical World”, de Catherine Nixey; “Christianity, Book-Burning and Censorship in Late Antiquity”, de Dirk Rohmann; ou “Pagans — The End of Traditional Religion and the Rise of Christianity”, de James O’Donnell. “A virada”, de Stephen Greenblatt.

*Miguel De Almeida é editor e diretor de cinema

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