quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

O que a mídia pensa – Editoriais

Governo de Bolsonaro dá a primazia aos militares – Editorial | Valor Econômico

Bolsonaro deveria governar para a nação, não para a corporação

O Orçamento da União é finito, mas as demandas por recursos, não. Entre os dois surgem para se apropriar das verbas os lobbies, que, na atual administração, ganharam um integrante visível, o militar - encabeçado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Ao dar prioridade aos salários, aparelhamento e emprego dos militares, o dinheiro escasso tem de ser cortado de algum lugar - de hospitais, da educação etc. Para o país, não é uma política correta, austera e sequer liberal.

As contas públicas encerraram 2019 com um déficit primário menor do que o esperado, mas, ainda assim, surpreenderam ao fechar em R$ 10,5 bilhões acima do esperado - para surpresa do próprio secretário do Tesouro. A lei do teto de gastos exclui a capitalização das estatais e no apagar das luzes surgiram aportes de R$ 7,6 bilhões para a Emgepron, que existe desde 1982, para a construção de corvetas para a Marinha.

No governo Temer, havia sido feito um pedido de R$ 1,5 bilhão para a estatal e a expectativa no atual governo era a de que ela recebesse dinheiro ao longo dos próximos anos, e não tudo de uma vez. O argumento é o mesmo de antes, o de que o país não tem essas embarcações para a defesa da costa brasileira, mas a urgência é discutível. O ataque mais ameaçador ao litoral brasileiro veio na forma de manchas de óleo, cujo combate prescindiu, obviamente, de corvetas. Outro R$ 1 bilhão foi destinado à Telebras, que ainda existe e serve de desafio ao encalhado programa de privatizações do governo - aquele estimado em R$ 1 trilhão pelo ministro Paulo Guedes.

Depois de piorar a execução orçamentária de 2019, o presidente deu sua contribuição ao de 2020, ao proibir que as verbas para o Ministério da Defesa sejam contingenciadas, assim como as do Ministério da Ciência e Tecnologia - neste caso, uma medida interessante, se houvesse política e diretrizes claras sobre o que se pretende fazer.

Mas, como o ano sempre começa com incertezas sobre a execução orçamentária, e exige contingenciamento, a preservação da Defesa implica que haverá contenção de despesas sobre orçamentos já comprimidos de boa parte de gastos sociais ou regulatórios. Não se justifica aí a primazia dos militares. As dotações de pesquisas da Capes, por exemplo, se reduzirão à metade (de R$ 4,5 bilhões a R$ 2,2 bilhões) e algo semelhante ocorrerá com recursos para a rubrica nas universidades federais.

À espera da aprovação do Emprego Verde e Amarelo pelo Congresso, que pretendia taxar o seguro-desemprego para cobrir custos, o governo cortou as verbas para inspeção de condições de trabalho e saúde ao menor valor da história - R$ 26 milhões, recuo de 63%. Na mesma linha, o orçamento da Secretaria da Mulher caiu de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões. Para programas contra violência da mulher foram reservados alguns trocados: R$ 194,7 mil (eram R$ 34,7 milhões).

Diante das críticas à destruição ambiental no Brasil, o governo criou um Conselho da Amazônia e o entregou ao vice-presidente, Hamilton Mourão. Mas o orçamento do Ibama foi cortado em quase um terço, para R$ 76,8 milhões, e o do Ministério, que já sofrera talho de 21,5% em 2019, caiu mais ainda, para R$ 561 milhões, sugerindo que a iniciativa tem fôlego curto, provavelmente propagandístico.

Bolsonaro, com apoio do Congresso, deu enormes vantagens aos militares em seu projeto de previdência, acompanhado de uma reestruturação salarial ampla. A economia com a previdência militar mal chegará a R$ 1 bilhão por ano. Nela, foi criado um dispositivo para que militares da reserva atuem no setor público com aumento de soldo de 30%. Além de arregimentar 2.500 militares para ministérios e autarquias, o governo se apressou em propor a convocação de 7 mil reservistas para eliminar a fila de pedido de aposentadorias do INSS. Foi barrado pelo Ministério Público, que disse não haver “reserva de mercado” para eles.

Há outras chances de emprego a explorar, porém, como os colégios cívico-militares, patrocinados por Bolsonaro. Ao lado do mal-educado ministro da Educação, Abraham Weintraub, ele disse que os resultados da iniciativa seriam “top em todo o mundo”. O mundo tem motivos para incredulidade, pois desconhece exemplos de países que deram salto qualitativo na educação apelando para regime semelhante. A divulgada exigência de como devem ser os cortes de cabelo dos homens e os trajes das mulheres nessas escolas sugerem o progresso civilizatório que proporcionarão. Bolsonaro deveria governar para a nação, não para a corporação.

Ambiente institucional afeta indústria – Editorial | O Globo

Faltam mudanças em impostos e na qualificação da mão de obra, entre outras ações, para ajudar o setor

Se a agropecuária moderna brasileira é um dos setores campeões mundiais em competitividade, a indústria nacional se encontra no extremo oposto.

O diagnóstico da crise do setor, quase endêmica, é multidisciplinar, e também inclui a pobreza tecnológica, o inverso do que ocorre no agronegócio, que em nada deve aos competidores americanos, argentinos e australianos nos mercados de grãos e carnes, para citar dois casos.

A divulgação pelo IBGE da retração de 1,1% da indústria no ano passado, em relação a 2018, reforça a necessidade de se continuar a discutir o futuro da atividade manufatureira no país. Que viveu momentos áureos protegida da competição externa, por meio de políticas de reserva de mercado. Ou em grandes crises mundiais, como a de 1929/30, em que o colapso do comércio internacional levou o Brasil a investir na substituição de importações de bens industrializados. Faz sentido que “indústrias nascentes” possam necessitar de algum tempo para ganhar o mundo. Mas quanto?

Há explicações indiscutíveis para o mau resultado de 2019: o subsetor das indústrias extrativas, inclusive minérios, teve um baque devido à tragédia de Brumadinho, levando à queda de produção da Vale. Antes, já havia ocorrido desastre idêntico, em Mariana, os dois em Minas. A retração neste segmento foi de 9,7%.

Além disso, outra debacle econômica da Argentina, maior importadora de bens manufaturados nacionais — com destaque para veículos —, puxou ainda mais para baixo a indústria. Estes são fatores que, somados, se refletiram na própria balança comercial, com uma queda do superávit de 19,6%, para US$ 46,7 bilhões. As vendas ao exterior, de US$ 224 bilhões, retrocederam 7,5%, se considerada a média de exportações diárias, de janeiro a novembro, em relação ao mesmo período de 2018. Um sintoma de falta de maior tração na retomada do crescimento é que as importações também encolheram.

A tendência mundial é de a indústria perder peso no PIB, enquanto aumenta o de serviços. Mas, no caso do Brasil, não parece se tratar apenas de um ciclo de mudança estrutural no setor produtivo. Nos países desenvolvidos, a manufatura está em uma fase de aperfeiçoamento tecnológico, do qual o país está longe. A chamada Indústria 4.0, com o uso crescente de automação.

Se o país não expuser as indústrias à competição externa, e elas não se integrarem cada vez mais a cadeias globais de suprimento, o atraso tecnológico se ampliará.

Para terem capacidade de competir, porém, é imprescindível que se livrem de custos decorrentes de uma estrutura tributária onerosa, de uma infraestrutura precária, de mão de obra não qualificada etc. A empreitada é grande e passa por reformas. Por isso, preocupa a lentidão com que as mudanças tramitam em Brasília.

Trump vive bom momento e derrota democratas no impeachment – Editorial | O Globo

Presidente dos EUA faz campanha no discurso do Estado da União e vence adversários no Senado

O momento político americano não tem sido favorável ao Partido Democrata. As evidências de que o presidente Donald Trump usou poderes do cargo para pressionar o governo da Ucrânia a criar embaraços a um concorrente seu na eleição de novembro, o democrata Joe Biden, foram bem expostas no processo de impeachment instalado na Câmara, sob controle democrata, contra ele. Houve depoimentos convincentes de que a ação da Casa Branca, principalmente por meio do advogado particular do presidente, o ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani, no mínimo merecia mais investigações.

Mas, com maioria republicana, o Senado impediu a convocação do ex-assessor de Segurança de Trump, John Bolton. Este se afastou do governo e se dispunha a relatar aos senadores, no processo de impeachment, o que viu (e ouviu) das articulações de Trump, Giuliani e outros para que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, determinasse investigações que poderiam comprometer Joe Biden e o filho, Hunter, em negócios feitos na Ucrânia. Para pressioná-lo, Trump determinou que fossem retidos quase US$ 400 milhões em ajuda militar à Ucrânia, até Volodymyr aceitar o pedido.

Um caso claro de uso do poder de presidente em benefício privado. Como esperado, a maioria dos senadores engavetou ontem o impeachment. Na noite de terça, Trump foi ao Senado, sob controle republicano, para enaltecer o próprio governo no discurso do Estado da União. Foi recebido com o coro: “quatro anos mais, quatro anos mais”. Para tornar o momento ainda mais favorável a Trump, a primária democrata no estado de Iowa, de segunda para terça, foi um fiasco de organização: os votos não puderam ser contabilizados normalmente. Apenas na manhã de terça saiu um primeiro boletim da apuração. O presidente aproveitou para distribuir ironias pelo Twitter.

Há quem preveja que, assim como em 2016, Trump poderá ser derrotado no voto popular e vencer no colégio eleitoral, que é a instância decisória na eleição presidencial americana.

Ele, em 2016, aplicou a estratégia de fazer campanha voltado aos colégios eleitorais, sem preocupar-se com o total de votos populares, e deu certo. Sem falar da ajuda controvertida nas redes sociais.

O governo Trump, segundo o Gallup, está com 49% de aprovação, a mais alta do mandato. Mas pesquisa NBC/Wall Street Journal, feita no domingo, indicou que o presidente perderia dos candidatos democratas Joe Biden e Bernie Sanders. Porém, ainda falta muito tempo até novembro, e Trump ainda tem o trunfo de a economia estar com um dos mais baixos índices de desemprego da história (3,5%).

Festa no céu – Editorial | Folha de S. Paulo

Abuso em viagem aérea, que levou a demissão hesitante de assessor, é recorrente

Na extensa crônica dos escândalos nacionais, as recorrentes extravagâncias de autoridades no usufruto de viagens aéreas oficiais constituem, decerto, episódios menores. Nem por isso, contudo, deixam de ser sinais eloquentes da mentalidade patrimonialista arraigada entre ocupantes do poder.

Essa deplorável tradição se viu acrescida, recentemente, de alguns novos exemplos. No final de janeiro, após participar do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, o então secretário-executivo da Casa Civil Vicente Santini viajou à Índia, na ocasião visitada pelo presidente Jair Bolsonaro.

Representando o titular da pasta, Onyx Lorenzoni, que se encontrava em férias, Santini não titubeou diante das regalias do cargo e solicitou um avião da Força Aérea Brasileira para levá-lo, ao lado de duas assessoras, ao país asiático.

Quem aparentemente não aprovou a mordomia foi Bolsonaro. Após o caso vir à tona, o chefe do Executivo foi a público anunciar a destituição do subordinado pelo gesto “inadmissível” e “completamente imoral”, em suas palavras.

No dia seguinte, porém, diante do apelo dos filhos do mandatário, Santini foi readmitido como assessor na mesma Casa Civil de onde havia sido defenestrado.

Comportando-se como uma biruta de aeroporto insuflada pelo vento das redes sociais, Bolsonaro logo recuou do recuo. Pressionado, o presidente em poucas horas dispensou Santini novamente.

Se o presidente se pautasse pela mesma régua para avaliar todos os seus subalternos, talvez tivesse de levar a cabo uma ampla reforma ministerial. Conforme mostrou levantamento da Folha, seis ministros se valeram dos serviços da FAB, em 2019, para viagens no exterior em circunstâncias muito similares às de Santini.

Bolsonaro, em sua proverbial indignação seletiva, encerrou o caso dizendo que havia conversado com a sua equipe e que, doravante, o uso dos aviões diminuiria.

A festa nos céus não ficou restrita aos membros do Executivo, porém. No início da semana, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), fez rápida viagem a Macapá, seu reduto eleitoral, também a bordo de avião da Aeronáutica, levando a mulher, policiais legislativos e a assessora de imprensa.

Confrontadas, as autoridades escudam-se na lei, que teria sido observada em tais casos. Esquecem-se, entretanto, de que a legalidade formal apenas não basta no trato com a coisa pública.

Abusos de privilégios desse tipo afrontam princípios da administração, como o da moralidade e o da economicidade, e compõem, acima de tudo, um retrato pouco honroso de descaso com o dinheiro do contribuinte.

A conta da meia-entrada – Editorial | Folha de S. Paulo

Produtor faz lobby desastrado contra benefício, que de fato deveria ser revisto

Um evento de apoio de artistas sertanejos ao presidente Jair Bolsonaro, no Planalto, descambou para um lobby desastrado —embora não de todo desprovido de razão— contra a meia-entrada em espetáculos culturais e esportivos.

De início, o plano parecia funcionar. Os músicos manifestaram endosso ao governo; um representante dos produtores culturais chamou a meia-entrada de “injustiça histórica”; o presidente se disse apaixonado pelo gênero sertanejo e prometeu ajudar no que pudesse.

Faltou combinar com uma parcela ruidosa da plateia, que, com medo de perder o benefício, usou as redes sociais para pressionar seus ídolos. Na sequência, boa parte dos artistas tratou de se afastar publicamente da causa espinhosa.

O setor de diversões tem de fato motivos para reclamar da meia-entrada, embora seja falsa a alegação de que os produtores arquem com os custos do subsídio.

No Brasil, os preços são livres. Os empresários que cobram pelos ingressos levam em conta, obviamente, o fato de que muitos espectadores pagarão 50% do valor fixado. Na prática, quem de fato paga pela benesse é o público que não tem acesso a ela —ou seja, adultos não estudantes nem idosos.

Para os produtores, o transtorno consiste na dificuldade adicional para o cálculo dos preços, além do risco de afastar consumidores em potencial com valores exagerados. A situação já foi pior, contudo.

A sistemática melhorou com a lei 12.933, de 2013, que limitou em 40% do total de ingressos a destinação obrigatória a meias-entradas.

Em tese, os empresários do setor poderiam resolver o problema sozinhos, sem necessidade de ajuda do governo, simplesmente concedendo a vantagem a todos os clientes, o que não é proibido por lei.

Nessa manobra ilusionista, todos pagariam o mesmo: na prática, o necessário para custear o espetáculo, mais o lucro esperado. Nenhum grupo seria sobretaxado —e, quem sabe, haveria quem acreditasse estar pagando a metade.

Mais honesto, é evidente, seria extinguir a meia-entrada, ao menos nos moldes mal focalizados de hoje. Se governantes e legisladores entenderem que se deve conceder algum tipo de subsídio para o acesso à cultura, melhor destiná-lo ao público que realmente não dispõe dos meios materiais suficientes.

Benefícios, afinal, não brotam do nada. A medida de seu papel social depende de identificar quem os recebe e quem arca com os custos.

Afinal, que reforma tributária? – Editorial | O Estado de S. Paulo

O Brasil precisa com urgência de uma reforma para modernizar e tornar mais funcional seu sistema de impostos, contribuições e taxas, mas a tarefa poderá ser bem mais complicada do que parecem supor o ministro da Economia, Paulo Guedes, e os presidentes do Senado e da Câmara, o senador Davi Alcolumbre e o deputado Rodrigo Maia. Um grupo de senadores cobra do governo a sua proposta de reforma antes de se formar uma comissão mista para discutir o assunto e encaminhar um projeto unificado. Além disso, esse grupo critica a ideia de apressar a tramitação para liquidar o assunto no primeiro semestre. A rapidez é necessária, segundo os defensores de uma solução até junho, por causa da campanha eleitoral nos meses seguintes.

Aqueles senadores, segundo reportagem do Estado, têm vários argumentos e motivos para resistir à formação imediata da comissão mista. O movimento combinado entre o ministro da Fazenda e os presidentes das duas Casas pode resultar, por exemplo, em prioridade para o projeto já em tramitação na Câmara. Importantes interesses de Estados e municípios poderão ser negligenciados no caso de uma tramitação apressada. Além disso, como instalar uma comissão e iniciar o trabalho sem conhecer as propostas em jogo?

Esta objeção foi formulada com perfeita clareza pelo senador Tasso Jereissati (PSDB-CE): “Quero deixar aqui a pergunta: afinal de contas, qual é a reforma tributária?”. Esta é a cobrança mais importante – e a mais inquietante, quando se considera a importância econômica, política e social de uma ampla reformulação tributária.

A tarefa da comissão seria muito mais clara se consistisse em montar uma proposta única a partir de dois projetos já conhecidos, o do economista Bernard Appy, em tramitação na Câmara, e o do ex-deputado Luiz Carlos Hauly, em exame no Senado. Há diferenças consideráveis entre as propostas, mas também pontos de proximidade, como a importância atribuída a um Imposto sobre Bens e Serviços, a um Imposto Seletivo e à redução do número de tributos. As divergências incluem, entre outros aspectos, a competência normativa, as formas de partilha da arrecadação entre União, Estados e municípios e as formas e períodos de transição.

Mas a comissão mista, segundo o combinado até agora, será constituída para uma tarefa no mínimo incomum. O resultado final de seu trabalho deverá incluir as ideias apresentadas também pela equipe econômica do governo. Essas ideias são por enquanto desconhecidas. Pontos esparsos foram mencionados pelo ministro da Economia e por seus auxiliares em várias ocasiões, desde a instalação do governo, mas sem que se articulassem num projeto claro e coerente. A ideia de recriar o imposto sobre o cheque, a CPMF, pode ter sido abandonada, mas nem isso é claro.

Além do mais, falta conhecer um importante dado preliminar: qual seria o objetivo de uma reforma proposta pelo Executivo ou por ele apoiada? Não se fala sobre redução ou aumento da carga tributária. Se a carga for mantida, como redistribuir o peso dos impostos e contribuições? O ministro da Economia toca nesse detalhe quando trata da redução dos encargos trabalhistas, mas suas preocupações parecem quase limitadas a esse ponto.

A discussão, quando envolve representantes do Executivo, fica geralmente longe de temas como a inserção global do País, a competitividade, as possibilidades de incentivos, o fim da guerra fiscal, a facilitação do investimento produtivo e – muito importante – a tributação da economia digital, tema prioritário da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

Prioridade é a palavra usada também pelos presidentes do Senado e da Câmara, pelo presidente da República e pelo ministro da Economia, quando falam da reforma tributária. Mas falta explicar as mudanças contempladas, o sentido estratégico dessa reforma para a economia brasileira e os passos necessários para a implantação de um novo sistema. Instalado há pouco mais de um ano, o governo foi incapaz, até agora, de esclarecer essas questões.

Um país imaginário – Editorial | O Estado de S. Paulo

Várias passagens da mensagem do presidente Jair Bolsonaro ao Congresso, lida anteontem na reabertura dos trabalhos legislativos, indicam preocupante litígio do governo com a realidade. Preocupante não apenas porque edulcoram o difícil momento por que passa o País e superestimam os resultados da errática atuação do governo, mas também porque sustentam que “caminhamos para um ambiente fértil de emprego e prosperidade”. Oxalá fosse assim.

É natural que o governo queira destacar os aspectos que julga positivos de sua atuação, mas não pode fazê-lo a ponto de insultar a inteligência alheia. A mensagem do presidente afirma, por exemplo, que sua gestão conseguiu a “aprovação de medidas eficazes”, sobretudo as “demandas das áreas econômica e social”, graças à “construção de relações pautadas por metas e projetos estratégicos com o Legislativo”. Numa única frase, amontoam-se devaneios para todos os gostos.

Raras foram as “medidas eficazes” aprovadas no Congresso no ano passado, graças à evidente desarticulação política do governo. Medidas relevantes, como a reforma da Previdência, só saíram porque as lideranças parlamentares abraçaram a causa, já que o próprio presidente Bolsonaro expressou dúvidas sobre a matéria. É igualmente risível a menção a “metas e projetos estratégicos”, pois, com inquietante frequência, o governo não consegue indicar com clareza que rumo pretende seguir em temas fundamentais, como a reforma tributária e a reforma administrativa.

Não é possível falar em “construção de relações” com o Legislativo ante a precariedade dessas relações. No entanto, Bolsonaro diz, em sua mensagem, que “o governo se mostrou propositivo e apresentou reformas ousadas”, o que não aconteceu – o que se viu foi um parlamentarismo informal, sob a liderança dos presidentes da Câmara e do Senado, que articulou e tocou as reformas com escassa ou nenhuma participação do Palácio do Planalto. E a mensagem presidencial informa que isso vai continuar neste ano, pois Bolsonaro, “em seu dever de governança e zeloso pelos valores democráticos de independência e soberania dos Poderes, tem oferecido cada vez mais protagonismo ao Legislativo”. Ou seja, o presidente travestiu de respeito institucional o que não passa de falta de capacidade de articulação política.

Do mesmo modo fantasioso, exaltou a inauguração de um “novo Brasil” a partir de sua posse, dizendo que “o País começou a trilhar o caminho da liberdade e a ganhar projeção mundial”, que “o viés ideológico deixou de existir em nossas relações com o exterior” e que “o mundo voltou a confiar no Brasil”. Ademais, diz o presidente, “melhoramos o ambiente de negócios, proporcionando mais oportunidades para que os empreendedores prosperem”.

A irrealidade dessas e de outras passagens fazem a mensagem presidencial soar mais como peça de campanha eleitoral do que como o traçado da rota político-administrativa que o Executivo tem a obrigação constitucional de comunicar ao Parlamento que seguirá no ano legislativo. O caráter eleitoreiro fica ainda mais explícito quando a mensagem, ao enumerar os “mais caros” desafios do governo para os próximos anos, coloca, em primeiro lugar, a redução da criminalidade – discurso que rendeu e certamente ainda renderá votos a Bolsonaro, mas sobre o qual o Executivo federal pouco tem a fazer, como, de fato, pouco tem feito.

A despeito disso tudo, há no governo funcionários altamente qualificados e genuinamente dedicados a reverter a crise e a recolocar o País no caminho do desenvolvimento. Contudo, para que o trabalho desses servidores não seja desperdiçado em meio às confusões protagonizadas pelo Palácio do Planalto, é preciso que o presidente da República cumpra, ele mesmo, sua função primordial, qual seja, a de exercer a liderança política que seu cargo inspira. O problema é que essa liderança só será autêntica e efetiva se o presidente parar de fantasiar sobre um país que não existe.

O STF em 2020 – Editorial | O Estado de S. Paulo

Na inauguração dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal (STF), o presidente Dias Toffoli destacou a agenda de 2020, a produtividade do Judiciário e em particular o seu “objetivo primordial na atual quadra da história do País”, a saber: “Gerar confiança, previsibilidade e segurança jurídica”. Após um 2019 turbulento, o aceno à serenidade é importante, mas transmitido como recado ao presidente da República e sobretudo ao próximo presidente da Corte.Segundo Toffoli, “nosso Judiciário é um dos mais produtivos do mundo”. Após 15 anos de crescimento dos processos em tramitação, eles foram reduzidos em 1 milhão, chegando ao menor acervo em duas décadas. Esta eficiência está para ser testada. Enquanto Planalto e Congresso preparam uma reforma do funcionalismo, de antemão contestada pelas corporações judiciais, o Judiciário, que em 2019 rompeu seu teto de gastos em R$ 2,3 bilhões, precisará fazer cortes expressivos para se adequar ao limite de 2020.

Em comparação às pautas de 2019, como a criminalização da homofobia, a prisão após segunda instância ou o compartilhamento de dados sigilosos da Receita com o Ministério Público, a agenda de 2020 é menos polêmica, mas nem por isso menos desafiadora. Questões como a incidência do ICMS na base de cálculo do PIS-Cofins, a tabela do frete rodoviário, a distribuição dos royalties de petróleo e as ações contra a Reforma Trabalhista são menos inflamáveis, mas podem ter imenso impacto econômico e fiscal.

A maior expectativa, contudo, é que o Supremo e, por extensão, o Judiciário sejam efetivamente vetores de estabilidade e segurança. Em nome da previsibilidade, uma das promessas de Toffoli para a sua gestão foi a divulgação antecipada da pauta de julgamentos. Mas ele mesmo não hesitou em retirar da pauta casos importantes sem maiores justificativas. O ministro costuma afirmar que o diálogo com os outros Poderes foi central em sua gestão. Isso é desejável como linha de princípio, mas o STF precisa estar pronto a enquadrar um Executivo que, por inépcia ou voluntarismo, transgride reiteradamente seus limites constitucionais. Em 2019, quase 100 ações foram levadas à Corte questionando atos do presidente da República e seus ministros, mas poucas foram decididas.

Mais do que o controle sobre os outros Poderes, contudo, pesa sobre a Justiça o desafio de controlar a si mesma. No mesmo dia da inauguração do ano judicial, o ministro Ricardo Lewandowski, em artigo na Folha de S.Paulo, chamou a atenção para a reação da sociedade aos “excessos praticados no passado recente por alguns juízes, policiais e membros do Ministério Público, restringindo direitos e garantias dos acusados em inquéritos ou ações penais”. Uma das reações mais significativas, que foi e será contestada por muitos juízes e procuradores, foi a Lei de Abuso de Autoridade. Outra foi a criação do juiz das garantias.

Emblematicamente, o juiz das garantias deu ensejo a um dos episódios mais acintosos de abuso institucional por parte de um ministro do Supremo, no caso, o próximo presidente, Luiz Fux, que, revogando uma liminar do próprio Toffoli, suspendeu arbitrariamente a eficácia do dispositivo aprovado pelo Congresso. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, classificou a manobra de “desrespeitosa” com o Congresso, o presidente da República e o próprio presidente da Corte. O ministro Marco Aurélio Mello afirmou que ela “desgasta barbaramente” o STF. “A autofagia é péssima, conduz à insegurança jurídica”, disse à época, e recentemente reiterou: “Eu não compreendo a existência de três Supremos, muito menos de 11 Supremos”. Parece incrível que “na atual quadra do País” o colegiado tenha de mostrar convincentemente à população que existe apenas um Supremo. Mais incrível é que, dados os caprichos e idiossincrasias cultivados por ministros, não há como prever se conseguirá.

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