sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

O que a mídia pensa - Editorias

Presidente ajuda a piorar expectativas do mercado – Editorial | O Globo

Não bastasse o coronavírus, Planalto deteriora as projeções para a economia brasileira

A tendência de a epidemia de coronavírus se tornar menos chinesa e mais mundial continuará degradando os mercados globais. Fechamento de fábricas, redução no número de viagens internacionais, queda no consumo são alguns dos fatores, como já visto na China, que desaceleram os negócios e se traduzem, cedo ou tarde, em redução no ritmo do crescimento econômico.

Os mercados brasileiros, fechados segunda e terça devido ao carnaval, teriam de passar por um brusco ajuste na quarta. A bolsa (Ibovespa) fechou o pregão com uma queda de 7%, índice inferior apenas aos 8,8% da retração verificada em 18 de maio de 2017, quando O GLOBO revelou parte do áudio da conversa comprometedora travada pelo então presidente Michel Temer com o empresário Joesley Batista, nos porões do Palácio do Jaburu. Outro termômetro sensível dos bons e maus momentos, o dólar, subiu 1,08% e chegou a R$ 4,44, novo recorde nominal. No início da tarde de ontem alcançou os R$ 4,5016 e fechou em R$ 4,47,64, sem perspectivas de arrefecimento na alta. Casos de coronavírus no Norte da Itália, na França, projeções pessimistas de autoridades sanitárias nos Estados Unidos, o primeiro brasileiro infectado etc. ajudaram a formar denso clima de pessimismo.

Mas o Brasil enfrenta um problema adicional, que é a imprevisibilidade do presidente Jair Bolsonaro, com sua imensa capacidade de gerar crise. Como a última, da inqualificável convocação para manifestações de rua contra o Congresso e o Supremo. Nesta tarefa, o presidente tem a ajuda dos filhos, de alguns ministros e o auxílio de uma infantaria de milicianos digitais, até com uma base dentro do Planalto.

Parte da alta do dólar e da queda de ativos em geral tem causa interna e endereço conhecido em Brasília. Com um ano e quase dois meses de governo, está evidente que o Planalto não tem agenda estratégica. Apoia formalmente as reformas, mas não trabalha politicamente para elas; desdenha dos partidos e da política; está mais preocupado com a “guerra ideológica”, e o presidente dirige sua atenção preferencialmente aos seguidores em suas redes sociais.

Mais esta ação desastrada de Bolsonaro e grupo potencializa o pessimismo que se amplia na esteira dos casos de coronavírus que surgem fora da China. Projeções deverão ser revistas.

Isso acontece quando o país necessita cada vez mais ativar investimentos de grande vulto na infraestrutura, pela atração de empresas privadas. São projetos de médio e longo prazos, e que por isso mesmo necessitam de um horizonte amplo de alguma calmaria.

O novo vírus, como os anteriores, será contido cedo ou tarde. Mas as deformações da atual política brasileira deverão continuar.

Fica-se mais uma vez à espera de líderes da Câmara e do Senado, para que a agenda do Congresso volte a tramitar e compense o poder de desestabilização que tem o Planalto contra o próprio governo.

Anistias são combustível para greves ilegais de policiais militares – Editorial | O Globo

Agentes amotinados no Ceará fazem exigências para voltar às ruas, uma delas o perdão

Há dez dias policiais militares do Ceará estão amotinados — situação inaceitável, à medida que a Constituição proíbe greve de agentes de segurança, como já reafirmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse período, a população tem assistido a cenas inacreditáveis. Como PMs com o rosto coberto, tal qual membros de facções criminosas, invadindo quartéis e depredando viaturas, compradas com o suado dinheiro do contribuinte. Comportamento que de forma alguma é esperado de profissionais pagos pelo Estado para proteger cidadãos.

Enquanto PMs permanecem nos quartéis, bandidos tomam conta das ruas. Segundo o G1, entre 19 e 25 de fevereiro, o estado contabilizou 170 assassinatos, ou 24 por dia. Esse número é três vezes maior do que a média registrada antes do motim. Ontem, a Secretaria de Segurança do Ceará informou que, devido ao acúmulo de casos, dados sobre homicídios não serão mais divulgados diariamente. De qualquer forma, não há expectativa de que a violência cesse enquanto durar essa greve. Mesmo com a presença das Forças Armadas.

Indiferentes ao drama vivido pelos cearenses, PMs amotinados divulgaram ontem, numa reunião com representantes dos três Poderes, 18 reivindicações para voltarem às ruas. Entre elas, reajuste salarial e anistia aos que participam da paralisação.

Embora o governador do Ceará, Camilo Santana (PT), tenha dito que anistia é um ponto inegociável, a verdade é que o perdão a PMs e bombeiros grevistas tem sido uma constante em episódios anteriores no cenário nacional.

Em fevereiro de 2017, uma greve de policiais militares que durou 21 dias no Espírito Santo levou o caos ao estado, que se transformou numa terra sem lei. Ao menos 204 pessoas foram assassinadas nesse período — no auge da violência, houve 43 homicídios num único dia. Apesar do inegável dano causado à sociedade, os agentes amotinados acabaram perdoados. Em janeiro do ano passado, o governador Renato Casagrande (PSB) sancionou uma lei que anistia os policiais. O projeto fora aprovado por unanimidade na Assembleia.

Não há dúvida de que um dos fatores que estimulam as greves de policiais é a certeza de que ficarão impunes esses movimentos que contrariam a Constituição e prejudicam os cidadãos. Não faltam projetos nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional para perdoar agentes que se portam como membros de facção — atualmente, ao menos duas propostas para anistiar policiais grevistas tramitam em Brasília. São o salvo-conduto para novas greves, novas cenas de baderna, novos dramas para uma população desassistida, que não tem a quem recorrer. Não adianta chamar a polícia.

A quem interessa a crise? – Editorial | O Estado de S. Paulo

É sintomático que bolsonaristas e petistas, quase ao mesmo tempo, estejam conclamando o “povo” a sair às ruas. Desde a campanha eleitoral de 2018, essas facções lutam para sequestrar o debate político do País e mantê-lo refém do radicalismo e do tumulto, de onde esperam extrair dividendos eleitoreiros. A nenhum deles interessa a estabilidade, e sim a crise permanente: aos petistas, porque um eventual colapso da economia causado pela inépcia política do governo pode despertar o sebastianismo lulopetista; aos bolsonaristas, porque os entraves no Congresso, que tendem a crescer graças ao comportamento errático do Executivo, serão interpretados como sabotagem de políticos que estariam interessados em impedir o presidente Jair Bolsonaro de governar.

A única maneira de neutralizar esse processo é dobrar a aposta na democracia – não aquela que sai fácil da boca dos demagogos, e sim aquela que se sustenta no convívio legítimo de diferentes visões políticas, na alternância de poder e no respeito às instituições.

Até aqui, em meio ao crescente desconforto com as atitudes indecorosas e antidemocráticas do presidente Bolsonaro e de seu entorno, o Congresso tem demonstrado louvável determinação de levar adiante as pautas de interesse do País. No ano passado, votou e aprovou uma abrangente reforma da Previdência, crucial para frear a deterioração das contas públicas. Agora, prepara-se para discutir e votar matérias tão ou mais espinhosas, como a reforma tributária e o pacto federativo, além de uma já tardia reforma administrativa.

A participação do governo neste momento decisivo para o País é acanhada, quando não francamente prejudicial. Ao criar um conflito atrás do outro e ao indicar crescente indisposição de aceitar as regras escritas e não escritas da democracia, a começar pela liturgia do cargo, o presidente Jair Bolsonaro dificulta o que já não é fácil, isto é, a negociação das reformas no Congresso. Não se pode condenar os parlamentares que se queixam de que o presidente Bolsonaro quer deixar ao Legislativo todo o ônus de tocar as reformas, enquanto usufrui eleitoralmente dos bônus de seus resultados.

Ainda assim, o que se tem, especialmente nos momentos de maior atrito como este – em que os bolsonaristas, com apoio tácito do próprio presidente da República, prometem ir às ruas para achincalhar o Congresso e flertar com um golpe de Estado –, é um Legislativo sereno e ciente de suas responsabilidades.

A reação do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, diante da notícia de que o presidente Bolsonaro ajudou a divulgar a convocação de uma manifestação contra o Congresso, foi bastante prudente. Em vez de responder no mesmo tom raivoso dos bolsonaristas, Rodrigo Maia preferiu dizer que “o Brasil precisa de paz e responsabilidade para progredir”, razão pela qual é necessário que as autoridades deem “o exemplo de respeito às instituições e à ordem constitucional”.

A equilibrada declaração do presidente da Câmara em defesa das instituições e da democracia é sinal de que o Congresso continuará a trabalhar nas pautas que, se bem conduzidas, podem melhorar as condições econômicas e sociais do País. Por outro lado, há o risco, não desprezível, de muitos parlamentares se sentirem tentados a revidar as seguidas agressões bolsonaristas aprovando as chamadas “pautas-bomba”, projetos de apelo popular que levem ao aumento de despesas públicas – e que terão de ser vetados pelo presidente Bolsonaro, com óbvio custo político, se este não quiser comprometer ainda mais o já frágil equilíbrio fiscal.

Assim, mais do que nunca, é preciso que haja entendimento em vez de confronto, e isso demanda um sofisticado trabalho de costura política que até agora o governo não fez – seja por incapacidade, seja porque alguns ideólogos aloprados acham que o presidente Bolsonaro pode prescindir da política para governar. Resta torcer – a palavra é esta – para que o Congresso tenha noção de seu papel nessa tormentosa travessia e não se deixe guiar pelos arreganhos autoritários de quem não tem, e nunca teve, afinidade com a democracia.

O alvo é a liberdade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Nenhum governante ou político é obrigado a gostar de jornalistas ou da imprensa. Ao contrário, é natural que se incomodem quando reportagens expõem o que muitos deles, pelas mais variadas razões, gostariam de manter longe do escrutínio público. No entanto, quando jornalistas são sistematicamente vilipendiados pelo presidente da República e por parlamentares que lhe são fiéis, como tem acontecido com frequência preocupante, já não se pode falar em simples antipatia; o que se tem é uma violência que excede, e muito, os limites estabelecidos para a convivência democrática. É agressão pura e simples, própria de ambientes incivilizados, em que os maus modos e a truculência são considerados um valor.

O presidente Jair Bolsonaro, como se sabe, escolheu os jornalistas como alvo preferencial de suas invectivas. A eles já dedicou, mais de uma vez, o gesto ofensivo de uma “banana”, deixando claro seu menosprezo pelos profissionais da informação. Também partiu para o insulto pessoal contra determinados jornalistas, para regozijo da claque que o acompanha. Cada vez que Bolsonaro renova suas agressões aos jornalistas e à imprensa, a democracia brasileira desce mais um degrau.

Sendo o chefe de Estado e, portanto, poderoso e influente líder político, Bolsonaro acaba servindo de exemplo e inspiração para seus seguidores, muitos dos quais nutrem fanática devoção a seu “mito” e se esforçam para demonstrar que são tão agressivos quanto o presidente. O resultado disso é o avanço da injúria como modelo de conduta, multiplicado ao infinito por conta do alcance das redes sociais, nas quais os bolsonaristas têm presença marcante.

Com essa motivação, e sob as bênçãos do Palácio do Planalto, está em pleno funcionamento uma formidável máquina de destruição de reputações. A mais recente vítima dessa violência foi a jornalista Vera Magalhães, do Estado. Em furo de reportagem, Vera revelou que o presidente Bolsonaro havia divulgado em seu WhatsApp a convocação de uma manifestação contra o Congresso, marcada para o dia 15 de março. Bolsonaro não desmentiu a informação, o que mostra que estava essencialmente correta. Mesmo assim, a jornalista foi atacada de diversas maneiras por bolsonaristas, que usaram as redes sociais para ofendê-la, invadir sua privacidade e ameaçá-la. Ou seja, a jornalista não foi criticada por ter dado uma informação errada; ela foi enxovalhada justamente por ter feito bem o seu trabalho.

Até mesmo uma deputada bolsonarista usou o Twitter para fazer piadas de teor sexista contra Vera Magalhães, repetindo, em termos idênticos, a grosseria que o presidente da República havia feito contra outra jornalista, Patricia Campos Mello, da Folha de S.Paulo. Ou seja, Bolsonaro estabeleceu um padrão, zelosamente seguido por seus agressivos simpatizantes.

Não se pode tratar tal situação como um simples caso de falta de educação nem se pode considerar natural que um presidente inspire no País um comportamento tão nocivo, especialmente em relação à imprensa e a seus profissionais. A intimidação e o constrangimento de jornalistas é passo fundamental para a degradação da democracia, o que só interessa aos que pretendem governar sem oposição e sem contestação, consolidando como verdade absoluta apenas a versão oficial dos fatos.

Assim, quando jornalistas são agredidos todos os dias por quem está no poder, o alvo não são esses profissionais, mas a própria liberdade, razão pela qual a ninguém que preze verdadeiramente a democracia é permitido silenciar neste momento desafiador. Bolsonaro e seus apoiadores fanáticos devem saber, da maneira mais clara possível, que os jornalistas continuarão a desempenhar sua função mesmo sob a saraivada de afrontas que os bolsonaristas lhes dedicam, e provavelmente com garra ainda maior. Afinal, se o jornalismo já é importante numa democracia sólida e estável, mais ainda o é numa democracia que está sob ataque de liberticidas.

O exemplo da Fapesp – Editorial | O Estado de S. Paulo

Graças ao financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), uma das mais importantes agências de fomento ao desenvolvimento científico da América Latina, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) acaba de inaugurar um centro de estudos com o foco no controle biológico de pragas. A Esalq, que está criando novos departamentos no seu câmpus de Piracicaba, é uma das mais tradicionais e eficientes unidades da Universidade de São Paulo (USP).

O centro recebeu R$ 20 milhões da Fapesp e outros R$ 20 milhões da Koppert Biological Systems, uma empresa holandesa que chegou ao Brasil no começo da década de 2010 e tornou-se uma das líderes do mercado nacional de defensivos biológicos – principalmente para produtos de cana-de-açúcar. A parceria entre a Fapesp e a Koppert terá a duração de cinco anos, prorrogáveis por mais cinco. A empresa financiará atividades de prospecção de novos agentes de controle biológico, desenvolvimento de técnicas de multiplicação desses agentes e utilização de feromônios no controle integrado de pragas. Essas pesquisas podem ajudar a reduzir o uso de substâncias químicas na produção agrícola, propiciando alimentos mais duráveis e saudáveis.

Criada em 1962 com os mesmos ideais que inspiraram a formação da USP, em 1934, a Fapesp se caracteriza nos últimos tempos por investir em projetos destinados a internacionalizar as atividades acadêmicas e científicas das universidades paulistas. Quando a Fapesp foi criada, a consolidação do parque industrial paulista exigia a expansão de pesquisas tecnológicas e a USP, com problemas de orçamento, não tinha condições de financiá-las com recursos próprios. Para não deter a industrialização de São Paulo, o governador Carvalho Pinto negociou com a Assembleia Legislativa a aprovação de lei que destinava um porcentual do orçamento estadual para a Fapesp.

À medida que as mudanças tecnológicas foram ocorrendo, a agência ampliou sua área de atuação, financiando nas décadas de 1990 e 2000 o projeto Genoma – o primeiro mapeamento genético desenvolvido fora do eixo formado pelos Estados Unidos, Europa e Japão.

Na década de 2010, a Fapesp ampliou o número de acordos científicos com outros países e deu ainda mais prioridade aos projetos com interface nacional, assinando acordos de parcerias não apenas com agências públicas de fomento à pesquisa, mas, igualmente, com empresas privadas de países como Alemanha, Dinamarca, Holanda, Canadá, Suíça e Israel. Com isso, as universidades paulistas se tornaram responsáveis por mais de 51% das pesquisas de ponta em andamento no Brasil, em quase todas as áreas do conhecimento.

Além de publicar análises sobre propriedade intelectual, registro de patentes e inovação no ambiente produtivo nacional, a Fapesp tem participado de experiências de investimento de capital de risco em startups com o objetivo de desenvolver novos produtos e novos modelos de negócio. A agência parte da premissa de que o risco pode gerar fracassos, mas também é o que viabiliza o sucesso de algumas companhias. As startups são pequenas empresas que operam em condições de incerteza com base num produto, serviço, processo ou plataforma vinculados a tecnologias ainda em fase de desenvolvimento e em pesquisas de mercado.

Neste momento em que o Brasil não aparece com relevância em nenhuma das áreas-chave da chamada indústria 4.0, em que a produção é fortemente automatizada e ligada à internet, a Fapesp é uma ilha de responsabilidade e eficiência. Ao contrário do que infelizmente vem ocorrendo em outras agências de fomento à pesquisa, ela está imune às ameaças que pesam sobre o trabalho científico, como interferências políticas, enviesamento ideológico e orientações religiosas.

Contágio econômico – Editorial | Folha de S. Paulo

Coronavírus eleva pessimismo global; no Brasil, tensão política é risco extra

Algumas semanas depois do surgimento do coronavírus, o impacto na economia mundial já se mostra mais forte que o inicialmente estimado. Com novos casos a aparecerem fora da China, a hipótese de que o surto pudesse ser rapidamente controlado vai dando lugar a cenários mais sombrios.

Até a semana passada, as atenções se voltavam para o esforço draconiano das autoridades chinesas em conter a epidemia. O relaxamento de restrições à movimentação de pessoas trouxe a esperança de que o PIB do emergente asiático começasse a se recuperar a partir de março, com efeito modesto sobre o restante do mundo.

Entretanto o quadro mudou com o disseminação da infecção para outras regiões —inclusive com a confirmação do primeiro caso no Brasil. Agora, avalia-se que o contágio econômico pode se estender pelo segundo trimestre, com danos mais graves para o fluxo de mercadorias e a renda global.

A interligação das cadeias de produção em todo o mundo constitui elemento de fragilidade adicional, pois a interrupção de atividade numa região rapidamente se transfere para outras. O fato de a crise ter se iniciado na gigante China expôs o fenômeno com ainda mais clareza.

Um combate eficaz aos impactos recessivos se mostra difícil. Cortes de juros —que já se encontram em nível baixo— e mais gastos públicos não necessariamente produzirão resultados em curto prazo.

É cedo para uma projeção precisa, mas parece claro que a economia mundial crescerá menos neste ano —e já não é descabido considerar o risco de recessão.

Os mercados financeiros reagiram com quedas abruptas nas Bolsas e fuga para ativos como dólar e títulos do governo americano.

No Brasil, além do coronavírus, há a moléstia da instabilidade política. O comportamento conflituoso do presidente Jair Bolsonaro piora ainda mais o ambiente econômico já conturbado.

A epidemia global representa um choque deflacionário para o país. Menos atividade e inflação em baixa deverão manter os juros reduzidos. De todo modo, uma piora mais substancial da atividade pode ter impactos políticos.

Nas últimas semanas as projeções de crescimento já ameaçavam cair abaixo de 2%, e cresciam os ruídos em torno do compromisso de Bolsonaro com a equipe econômica.

Se esse cenário mais negativo se consolidar, a disposição do Congresso para reformas pode sofrer avarias. Enquanto já se notam pressões crescentes por gastos públicos, o foco do governo deveria ser acelerar a preparação para um cenário mais difícil à frente.

Violência indiana – Editorial | Folha de S. Paulo

Conflitos por discriminação oficial a muçulmanos mostram país em rumo perigoso

Nesta semana, a capital da Índia, Nova Déli, foi varrida pela maior onda de violência religiosa ali registrada em décadas. Confrontos entre muçulmanos e hindus armados com paus, pedras e armas de fogo causaram mais de 30 mortes e deixaram centenas de feridos.

O enfrentamento transformou bairros da periferia em campos de batalha. Duas mesquitas foram incendiadas, além de casas, automóveis e estabelecimentos comerciais.

Por chocante que seja, a selvageria que se abateu sobre a metrópole indiana nada possui de abrupta ou inesperada. O clima de tensão sectária vinha sendo cevado desde o final do ano passado, quando o governo do primeiro-ministro Narendra Modi aprovou uma nova e controversa lei de cidadania.

O diploma determina que hindus, budistas, cristãos, parsis, sikhs e jainistas oriundos de países vizinhos podem se tornar cidadãos da Índia por enfrentarem perseguição em seus locais de origem.

A regra, porém, exclui os muçulmanos, grupo que perfaz 14% da população indiana, criando assim uma espécie de sistema hierárquico de cidadania baseado na religião. Desde então, seguidores do Islã têm ido às ruas do país, em atos majoritariamente pacíficos, para protestar contra a nova lei.

No último domingo, porém, líderes comunitários hindus de Nova Déli ameaçaram atacar muçulmanos que organizavam uma manifestação contra a lei da cidadania. O movimento foi instigado por um político local do BJP, agremiação de Modi, e rapidamente degringolou em combates ferozes.

No poder desde 2014, a sigla alimenta há anos uma deplorável retórica de discriminação religiosa, que marginaliza muçulmanos e defende a supremacia hindu, grupo que corresponde a cerca de 80% do 1,3 bilhão de habitantes da Índia.

O ministro do interior, Amit Shah, ex-presidente do BJP e próximo a Modi, já se referiu aos migrantes ilegais de Bangladesh, em sua maioria islâmicos, como “cupins” que deveriam ser atirados no mar.

Tal discurso não só favorece e legitima atos de violência sectária como pode acabar contaminando os órgãos de Estado. De acordo com moradores, as forças policiais da capital permaneceram passivas enquanto bairros muçulmanos eram assolados pela turba hindu.

Com o agravamento das hostilidades religiosas e o risco de que se disseminem pelo país, a Índia dá mais um passo no perigoso caminho que vem trilhando sob Modi —para longe de seus ideais fundadores de pluralismo e igualdade.

Depreciação do real não deve ter grande fôlego – Editorial | Valor Econômico

Com a queda dos juros domésticos, o custo da defesa do real via swaps também caiu, o que amplia a capacidade de resistência à instabilidade

Sob a perspectiva criada pelo coronavírus de retração da economia mundial, que assombra os mercados financeiros, o real não para de desvalorizar e ontem chegou a tocar nos R$ 4,50 - uma depreciação de 10,42% no ano. Com essa cotação, o câmbio está razoavelmente depreciado e não se descarta que possa continuar perdendo valor. A disseminação do vírus ainda está longe de ser contida, os efeitos sobre a economia global podem ser mais negativos do que pareciam à primeira vista e, pior, coincidiram com a crescente sensação de que os mercados acionários estão sobrevalorizados. O vírus está forçando a reavaliação dos preços dos ativos nos Estados Unidos; a magnitude das quedas recentes dos índices das bolsas indica que eles entraram em rota de correção (12% abaixo dos picos de janeiro).

Se os dois movimentos, o do vírus e o de reavaliação dos ativos, se intensificarem, a economia global pode estagnar, com crises maiores nos países mais vulneráveis. Apesar de o real estar na linha de frente das moedas que mais se depreciam, e um overshooting ser sempre possível em situações de pânico, não há bons motivos econômicos para que a rota atual da moeda brasileira seja longa e menos ainda consistente.

Antes do coronavírus, o real já percorreu parte do caminho da desvalorização. Deixou de ser alvo do carry trade depois que os juros reais domésticos se tornaram os menores da história. Com isso, investidores estrangeiros liquidaram parte de suas aplicações em renda fixa e outras em portfólio, e o real perdeu posições em relação ao dólar. Esse movimento se intensificou a partir de outubro, quando aumentou a posição dos investidores que apostaram contra a moeda brasileira (de US$ 23,6 bilhões naquele mês para US$ 34,2 bilhões em janeiro, último dado disponível).

As exportações não reagiram ao efeito cambial, em boa parte porque o comércio mundial encolheu diante da guerra comercial dos EUA com a China. Após a trégua, o coronavírus entrou em ação. O déficit em conta corrente cresceu nos últimos meses e atingiu 2,85% do PIB em janeiro. O motivo principal foi a redução do saldo comercial em US$ 3,6 bilhões.

Pelo mesmo motivo, o déficit em conta corrente deve seguir crescendo, porque a tendência do saldo é recuar ainda mais após a entrada em cena do vírus. Os dados acumulados até a terceira semana de fevereiro ainda não captam os efeitos plenos do novo cenário adverso. As vendas de alguns produtos básicos, os mais afetados pela queda em curso nas cotações das commodities, ainda avançam na pauta. A média por dia útil das exportações caiu 10,4%, enquanto a das importações subiu 4%. A mesma média de fevereiro ante o mesmo mês de 2019 mostra quedas na soja (13,5%), minérios (-7,3%), papel e celulose (-13,3%). No geral, a exportação de manufaturados e semimanufaturados diminuiu.

Por outro lado, não há boas chances de expansão das vendas em alguns dos principais mercados do Brasil: China (a exceção são alimentos), Europa (em desaceleração rápida e foco de expansão do coronavírus) e Argentina (envolta em mais um ano de recessão e recaindo no controle de importações).

O endividamento em dólar das empresas, por outro lado, não é um problema no agregado, a menos que a desvalorização cambial vá ainda muito mais longe. Ele é de 13,5% do PIB, muito inferior aos 30% da Turquia, ou 28% do Chile, e um pouco acima dos 10% da Colômbia, para citar países com moedas entre as que mais se depreciaram recentemente. Além disso, há meses as empresas vinham trocando dívidas em dólar por domésticas, com a queda dos juros - ajudou a depreciar o real - ou as rolando por débitos a menores taxas. O custo e a distribuição da dívida em dólar melhoraram.

O déficit em conta corrente pode crescer um pouco mais na turbulência sem colocar o país em situação crítica. Primeiro, os investimentos diretos no país há anos não caem abaixo de 4% do PIB e cobrem o rombo. Depois, a posição cambial líquida do país é robusta (US$ 328,4 bilhões). E, não menos importante, o câmbio é flutuante.

Como o fortalecimento do dólar é global, não faz sentido ao BC impedir a correção a qualquer custo. As posições vendidas em dólar correspondem mais ou menos às dos swaps cambiais (US$ 35,3 bilhões) e há mais US$ 10 bilhões em empréstimos em dólar com recompra. Com a queda dos juros domésticos, o custo da defesa do real via swaps também caiu, o que amplia a capacidade de resistência à instabilidade.

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