terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Pedro Cafardo* - Clichês que aborrecem e eufemismos inócuos

- Valor Econômico

É ridículo chamar velhice de melhor idade ou favela de comunidade

Bora alinhar nossas posições, porque as turbulências deste mundo disruptivo nos obrigam a forjar narrativas pedestres. Precisamos focar em performar cada vez melhor.

Assustou-se com as frases acima? De fato, são esquisitas. Lá estão algumas palavras e expressões da moda, inadequadas ou que denotam um certo despreparo do redator. O bom-senso recomenda que sejam evitadas.

“Narrativa” está na moda. Ninguém mais conta uma história, explica uma situação, rememora um evento ou expõe uma opinião. Faz sempre uma narrativa, termo que tem um sentido um pouco mais pomposo do que o empregado pelo povo da moda. É algo que contempla em geral introdução, desenvolvimento e conclusão.
Há alguns clichês muito usados na mídia tradicional e nas redes sociais. “Mais cedo”, por exemplo, está o tempo todo na imprensa. Em vez de dizer a hora, uma informação precisa, o repórter diz apenas que “mais cedo” aconteceu um acidente etc, etc. E depois completa: “No fim do dia”, os envolvidos deixaram o hospital etc., etc.

Vale comemorar se o repórter usar “fim do dia”, porque na maioria das vezes ele vai dizer ou escrever “final do dia”, trocando o substantivo pelo adjetivo, algo que dói no ouvido. Basta ligar o rádio numa sexta-feira para ouvir sem parar a expressão “final de semana” no lugar de “fim de semana”. Dicionários até admitem “final” como substantivo, mas a palavra é primordialmente um adjetivo. Se o fim de semana fosse final de semana, o início dela seria inicial.

Mas vamos em frente. “Bora” é uma peste que se espalha nas redes sociais, no lugar de “vamos” ou “vamos em frente”. Sim, trata-se de uma simplificação e as línguas precisam aceitá-las, porque isso é sinal de que estão vivas. Ninguém muda nada no latim, por exemplo, porque é uma língua morta. Mas, convenhamos, não dá para aguentar “bora” sendo repetido a todo o instante.

O “alinhar” pretende ser chique. Em qualquer reunião corporativa, alguém solta esse verbo, que virou quase intransitivo e significa que todos devem pensar e falar a mesma coisa, ter o mesmo discurso, ou “narrativa”.

Muitas manias vêm do inglês. “Disruptivo”, por exemplo, vem de “disruptive”, embora a palavra tenha origem no latim. Tem sinônimos como destruidor, mas não aceitos pelo modismo. E não pode ser aplicado em qualquer situação. Disruptivo é um produto ou serviço que cria um novo mercado e mata ou desestabiliza os concorrentes que dominam o setor.

Outra que veio do inglês é “performar”. Ela não está nos dicionários, mas é dita com frequência também em reuniões corporativas. Neologismos são bem-vindos, mas quando não há substitutos no português, o que não é o caso de performar, anglicismo cafona que, nestes tempos autoritários, poderia ser vetado por decreto. Entre outros substitutos, há funcionar, executar, desempenhar.

Há muito tempo observa-se um cacoete entre economistas e gente do mercado financeiro. É o “de novo”, usado para repetir um argumento. O vício vem do “again”, muito utilizado por acadêmicos americanos. Nada contra, mas o excesso de “de novo” indica que o discurso é redundante.

No ramo dos cacoetes, “então” é imbatível. Ao responder uma pergunta a pessoa começa assim: “Então..., eu acho...”. Fica evidente que esse “caco” foi colocado pelo entrevistado para ganhar alguns segundos para pensar.


“Pontuar” é frequentemente utilizado no sentido de observar. É feio e inadequado. A mania deve vir do espanhol. Ouve-se muito a expressão “problemas pontuais”, que não faz sentido. Pontual serve, por exemplo, para caracterizar uma pessoa que chega no horário certo. Não é sinônimo de específico.

Começa-se agora a escrever ou falar “pedestre” no lugar de rasteiro, ordinário, raso. Por exemplo: “argumento pedestre”. Sem comentários.

Não se pretende sugerir a queima de palavras ou expressões na fogueira do conservadorismo, mas apenas evitar deselegâncias. Pega bem, então, não usar ou tomar cuidado ao falar ou escrever alinhar, disruptivo, final de semana, de novo, mais cedo, pedestre, performar (esta é inconstitucional), focar, pontuar, então, fim do dia.

Para não parecer ranzinza, vamos encerrar esta “narrativa”. “Bora” pra outro assunto.

Moradores de rua
Mudando de conversa, mas não muito, os paulistanos estão assustados com o número de moradores de rua na cidade, que aumentou de 15 mil para 24 mil de 2015 a 2019. À noite, marquises e baixos de viadutos no centro vivem abarrotados de pessoas dormindo enroladas em cobertores, no chão ou em colchões rasgados. O Minhocão (Elevado João Goulart) virou teto de um extenso dormitório horizontal, principalmente em madrugadas de “dilúvio”, como a de ontem.

Essa situação não foi criada pelo atual governo. Vem de longe. Mas, nas condições atuais, é agravada por uma política econômica que olha para 2040/50 e ignora 2020. Fizemos uma reforma da Previdência que, segundo o ministro da Economia, vai permitir que nossos filhos e netos, daqui 20 ou 30 anos, possam ter sustento em sua velhice. Tudo certo, mas que tal pensar em uma reforminha que atenda a esses moradores de rua e desempregados, que precisam de socorro agora e também são filhos e netos?

Desigualdade e pobreza passaram a ser temas diletos de economistas pelo mundo. Estão até no filme ganhador do Oscar, o sul-coreano “Parasita”. Por aqui, não sensibilizam. Há uma curiosa correlação entre o que ocorre hoje e o que ocorria no auge da ditadura militar, nos anos 1970. Sob comando do então superministro Delfim Netto, a economia bombava. Chegou a crescer 14% em 1973. Com esse pibão, não dava para contestar a política econômica. O ponto fraco dela era a distribuição de renda e nele se agarrava a destroçada oposição. Temos hoje um pibinho, com o início de recuperação e uma enorme desigualdade, na qual começa também a se agarrar a oposição.

PS: Notou a expressão “moradores de rua”, duas vezes empregada nos parágrafos acima? Foi proposital, porque chega a ser ridículo dizer “pessoas em situação de rua”, denominação imposta pelo politicamente correto. Essas pessoas são, precisamente, moradoras de rua e o fato de usarmos um eufemismo para caracterizá-las não vai mudar sua terrível condição. Assim como “melhor idade” não rejuvenesce velhos e “comunidade” não urbaniza favelas.

*Pedro Cafardo é editor-executivo do Valor Econômico

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