quinta-feira, 26 de março de 2020

A brutalização da verdade – Editorial | O Estado de S. Paulo

A ameaça representada pelos arroubos de Bolsonaro vai muito além da saúde pública. Ele parece desejar o confronto de modo a criar clima para soluções autoritárias

O presidente da República, Jair Bolsonaro, fez um pronunciamento absolutamente irresponsável na noite de terça-feira, em cadeia nacional de rádio e TV. Em vez de usar esse recurso poderoso para anunciar alguma medida importante para conter a epidemia de covid-19, ou mesmo para confortar os brasileiros confinados há dias em suas casas, Bolsonaro, sob o argumento de que é preciso reativar a economia, incitou os cidadãos a romper a quarentena e voltar à “normalidade” – contrariando as recomendações de especialistas de todo o mundo e do próprio Ministério da Saúde. Ao fazê-lo, o presidente passou a ser, ele mesmo, uma ameaça à saúde pública. Por incrível que pareça, os brasileiros, para o bem do País, devem desconsiderar totalmente o que disse o chefe de Estado. A que ponto chegamos.

Mas a ameaça representada pelos arroubos de Bolsonaro vai muito além da questão da saúde pública. O presidente parece desejar ardentemente o confronto – com governadores de Estado, com o Congresso, com a imprensa e até com integrantes de seu próprio governo –, de modo a criar um clima favorável a soluções autoritárias. À sua maneira trôpega, Bolsonaro, ao reiterar ontem as alucinadas declarações que dera na noite anterior, disse: “Todos nós pagaremos um preço que levará anos para ser pago, se é que o Brasil não possa ainda sair da normalidade democrática que vocês tanto defendem. Ninguém sabe o que pode acontecer no Brasil. Sai (da normalidade democrática) porque o caos faz com que a esquerda se aproveite do momento para chegar ao poder. Não é da minha parte, não, fique tranquilo”.

Assim, Bolsonaro usa a epidemia de covid-19, cujas dimensões e letalidade ainda são desconhecidas e que tanta aflição tem causado ao País e ao mundo, para alimentar seu inconfessável projeto de poder – cuja natureza cesarista já deveria ter ficado clara para todos desde o momento em que o admirador confesso de notórios torturadores do regime militar se tornou presidente da República.

Esse projeto se assenta na brutalização da verdade. Para o bolsonarismo, os fatos reais não existem, salvo quando enunciados por Bolsonaro. Assim, se o presidente diz, sem nenhum respaldo na realidade, que a covid-19 é uma “gripezinha” causada por um vírus “que brevemente passará” e que a culpa pelo “pavor” da sociedade é da imprensa, que semeou uma “verdadeira histeria”, então esses passam a ser os “fatos” – em detrimento das inúmeras evidências em contrário. No mesmo dia em que Bolsonaro qualificava a covid-19 de “resfriadinho”, os organizadores da Olimpíada de Tóquio anunciaram o adiamento do evento para o ano que vem – apenas a mais recente das muitas medidas drásticas tomadas mundo afora por dirigentes conscientes de seu papel nessa crise planetária. “É sério. Leve a sério você também”, disse a chanceler alemã, Angela Merkel, em dramático pronunciamento na TV a respeito da necessidade de isolamento social.

O contraste com Bolsonaro é gritante: para o presidente brasileiro, basta manter apenas o “grupo de risco” (pessoas acima de 60 anos) em isolamento, e então será possível reabrir escolas e o comércio. Mas o próprio ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é contra esse isolamento parcial, segundo apurou o site BR Político.

Por sorte, os governadores de Estado – acusados por Bolsonaro de praticar política de “terra arrasada” – informaram que vão manter as restrições de movimento para enfrentar a epidemia. Em reunião virtual dos governadores do Sudeste com Bolsonaro, João Doria, de São Paulo, disse lamentar o pronunciamento do presidente, queixou-se da descoordenação do governo federal e declarou que “a prioridade é salvar vidas” – ao que Bolsonaro, que jamais desceu do palanque, respondeu: “Saia do palanque”.

“As decisões do presidente da República em relação ao coronavírus não alcançarão o Estado de Goiás”, informou o governador goiano, Ronaldo Caiado, no que certamente será seguido por seus pares. Ou seja, o presidente Bolsonaro será olimpicamente ignorado pelos governadores. O resto dos brasileiros deveria fazer o mesmo.

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