terça-feira, 10 de março de 2020

Andrea Jubé - ”O que faremos com esse povo na rua?”

- Valor Econômico

Bolsonaro perde “dominância narrativa nas redes”

“O que mete medo em político é o povo na rua”, ensinava o Doutor Ulysses há três décadas. Líder da campanha pelas Diretas Já e ator relevante no impeachment de Fernando Collor em 1992, ele falava com propriedade: assistiu às multidões lotarem o Vale do Anhangabaú em São Paulo e a Candelária, no Rio de Janeiro, nos comícios de 1984, e aos caras-pintadas ocuparem o gramado do Congresso ao som de “Alegria, Alegria”.

A emenda Dante de Oliveira foi rejeitada, mas o ex-senador Heráclito Fortes, um dos mais próximos de Ulysses, pondera que sem a pressão popular a eleição indireta da chapa Tancredo-Sarney não se viabilizaria e a transição democrática seria adiada.

Sem a pressão popular talvez não prosperassem os processos de impeachment de Fernando Collor e Dilma Rousseff, admitiu à coluna um cacique do MDB que acompanhou os bastidores de ambos.

No sábado, o presidente Jair Bolsonaro resgatou a máxima de Ulysses para desafiar o Congresso. Dobrou a aposta em sua popularidade, mesmo em meio à crise econômica aguda, e conclamou a população a sair às ruas no dia 15 para defender o governo.

“Político que tem medo de movimento de rua não serve pra ser político”, discursou, em indireta aos parlamentares.

No primeiro momento, a aposta surtiu efeito e os dirigentes do Legislativo e Judiciário fecharam-se em Copas, em um gesto de cautela pelo temor da reação das redes e das ruas. Pesou, igualmente, uma dose de pragmatismo: uma reação enérgica colocaria em xeque o acordo que lhes garantiu R$ 20,5 bilhões em emendas ao Legislativo.

Trata-se da fatia pactuada dos R$ 30,1 bilhões que originalmente seriam retirados do Executivo na execução do Orçamento, o que levou o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, a falar em “chantagem” do Congresso.

Surpreende, entretanto, que o chamamento de Bolsonaro para os atos não tenha chacoalhado as redes. Ao contrário, o monitoramento das redes indica que, naquele sábado, aumentaram as menções negativas ao governo e às manifestações do dia 15.

“Bolsonaro vem perdendo a dominância narrativa nas redes”, assegura Sergio Denicoli, pós-doutor em comunicação digital e sócio-diretor de Big Data da AP Exata, agência de inteligência em comunicação digital.

Ele monitora o sentimento que Bolsonaro desperta nas redes há cerca de três anos, desde a pré-campanha eleitoral, com base em um sistema desenvolvido na Universidade do Minho, em Portugal.

A ferramenta, que acompanha Twitter, Instagram e YouTube, antecipou o resultado do pleito de 2018 antes da divulgação da boca de urna. A constatação neste momento é de que Bolsonaro perdeu a influência nas redes fora da bolha bolsonarista.

Por isso, Denicoli prevê ruas cheias no dia 15, mas com volume menor do que as manifestações anteriores. Ele não vê brasileiros que não sejam bolsonaristas radicais dispostos a sair de casa em apoio ao governo.

Após um início de mandato conturbado, com a denúncia sobre Fabrício Queiroz e o post do “golden shower”, houve um período de estabilidade do presidente nas redes de março até dezembro. Em maio, o protesto a favor da reforma da Previdência e do pacote anticrime do ministro Sergio Moro levou multidões às ruas nos 26 Estados e no Distrito Federal.

Há dois meses, entretanto, o monitoramento de Denicoli detectou um viés de baixa de Bolsonaro nas redes, que o pesquisador atribui ao PIB de 1,1%, à persistência do desemprego alto, à explosão do dólar, à gasolina cara, entre outros resultados negativos da economia. Essa avaliação contabiliza os chamados “perfis de interferência”, como robôs, fakes e apoiadores.

Denicoli acredita que os simpatizantes não radicais do governo começam a cobrar outra atitude do presidente e atribui a perda de influência à estagnação econômica. “A economia é o equalizador, se estiver ruim, acredito que a questão ideológica passa ao segundo plano”.

Denicoli confirma o medo que os políticos têm da população em massa nas ruas, mas ele vê um clima de apreensão dos dois lados: do Congresso, mas também do próprio Bolsonaro.

Ressalta que o presidente rompeu um padrão ao se expor convocando pessoalmente a população para os atos. “Isso mostra que ele não está seguro da dimensão dos atos”.

Vale relembrar que quando Collor pediu aos brasileiros que saíssem às ruas de verde e amarelo em uma demonstração de apoio, a população vestiu preto em resposta ao apelo. Mas Bolsonaro não é Collor: não tem base parlamentar, assim como o alagoano, mas ainda conta com o respaldo de parte expressiva da população.

Essa parcela de apoio pode não lotar o Anhangabaú, mas fará vista na Avenida Paulista e na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, a ponto de assombrar os políticos.

Um líder de uma das maiores bancadas do Senado admitiu à coluna que os senadores recuaram da intenção de convocar o general Augusto Heleno para não acirrar a crise institucional. Reclama que a “criminalização da política” recaiu sobre o colo do Legislativo.

“Poderíamos inflamar mais as ruas, e a gente precisa ter responsabilidade”, argumenta esta liderança. “Não podemos ser raivosos e imaturos como esse governo”, desabafou.

Quando rompeu o silêncio dos chefes dos Poderes, um dia depois da convocação de Bolsonaro, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, pronunciou-se em tom de serenidade. Cobrou “seriedade e diálogo” e exortou os poderes a agir “em harmonia e com espírito democrático”.

Em 1984, a presença de 300 mil pessoas em um comício pelas Diretas Já em Belo Horizonte assustou Tancredo Neves, contou Plínio Fraga na biografia do ex-presidente. Apreensivo, ele questionou o então líder sindicalista e fundador do PT Luiz Inácio Lula da Silva: “o que faremos com esse povo todo na rua?” Lula respondeu: “tudo o que a gente quer é povo na rua, não tem de ter medo. Coloca na rua e deixa ver o que vai acontecer”. É a fórmula e Bolsonaro: medir o volume das ruas e esperar o que virá depois.

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