segunda-feira, 30 de março de 2020

- Fernando Gabeira - Memórias do grupo de risco

- O Globo

Bolsonaro tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo

Nos últimos tempos, as coisas andam tão rápidas que todo dia escrevo um pouco. No final de semana, o epicentro da pandemia já havia se deslocado para os Estados Unidos, e Boris Johnson, primeiro-ministro inglês, foi contaminado pelo coronavírus.

Temo pelo Brasil. O vírus avança como em outros lugares. Somos mais vulneráveis pelas grandes concentrações urbanas, péssimas condições sanitárias. Os Estados Unidos eram o primeiro na lista de segurança sanitária no mundo: ricos e bem equipados.

Ao longo do caminho, não devemos nos concentrar apenas numa variável, o número de casos. Há outra muito importante: o índice de mortalidade.

Além de desvantagens historicamente acumuladas, temos outras de peso. O presidente da República, que deveria articular o esforço nacional, não acredita na importância da pandemia.

Bolsonaro se acha incólume porque um dia foi atleta. E estendeu essa blindagem aos brasileiros que, segundo ele, mergulham no esgoto e nada sofrem. No momento em que a Ciência tem um grande papel, Bolsonaro está cercado de terraplanistas, tornou-se uma espécie de Jim Jones, o pastor que levou seus seguidores ao suicídio coletivo.

A segunda desvantagem está no ministro da Economia, Paulo Guedes. Toda a sua história é a de luta para reduzir o papel econômico do Estado. Trabalhou no Chile de Pinochet e escreveu inúmeros artigos sobre o tema.

O dramático momento, de repente, exige uma intensa intervenção do Estado na economia. Guedes não se preparou para isso. É como se estivéssemos numa partida de futebol e resolvêssemos trocar o centroavante por um jogador de tênis.

Vera Magalhães sugeriu que escrevesse algo sobre o ano de 2020, um ano cancelado pela pandemia.

No mesmo dia, tinha conversado aqui em casa sobre uma viagem a Nova York. Quando minha mulher vai até NY, costumo vender minha câmera velha e comprar uma nova na Adorama. Rimos para não chorar: não haverá viagem, muito menos câmera, e Deus permita que haja Nova York no fim dessa estrada. O Flamengo seria campeão de tudo em 2020, mas não haverá campeões nesse tempo sinistro.

Mas vou voltar ao tema sugerido por Vera assim que a pandemia der uma trégua. No momento, tento refletir um pouco sobre ser velho em tempos de coronavírus. Aqui a dimensão transcende ao ano de 2020: o que será do resto de nossas vidas?

Toneladas de papel impresso falam da velhice. Mas a nossa é singular: acontece durante a pandemia, somos classificados como grupo de risco.

Leio notícias de que o velhinhos de comunidades serão levados para hotéis ou navios, que a polícia em São Paulo está detendo os rebeldes que saem às ruas. Tudo para o bem deles.

Passada a crise mais aguda, como será a vida dos velhos antes da chegada da vacina? Minhas leituras não estão concentradas na “Peste”, de Camus, ou no “Um diário do Ano da Peste”, de Daniel Defoe.

Nos momentos mais suaves da quarentena, volto-me para livros do tipo “Memórias de Adriano” e detenho-me em frases como esta: “Esta manhã, pela primeira vez ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, esse amigo mais seguro e mais conhecido que a própria alma, não é senão um monstro derradeiro que acabará por devorar seu próprio dono.”

Isso é verdade para tempos normais. Como se aplica a tempos de coronavírus? Será que nossos corpos envelhecidos serão vistos como um perigo social?

Envelheci depois de muitas lutas contra preconceitos. Só me faltava essa. Quando passar a primeira onda, voltarei a sair por aí, explorando e transfigurando o mundo em imagens.

De novo, Adriano: “A impossibilidade de continuar a exprimir-se, modificar-se pela ação é talvez a única diferença entre os mortos e os vivos.”

Um corpo envelhecido não representa perigo especial. Ele contrai e transmite o coronavírus como uma criança ou um jovem.

A grande responsabilidade é evitar adoecer em tempos de grande crise para não ocupar o lugar de um mais jovem nos escassos respiradores.

Infelizmente, temos mais fuzis do que respiradores. Um padre italiano compreendeu isto e cedeu seu lugar para um jovem que tinha chances de uma vida longa e saudável.

Viver é muito perigoso e, de uma certa forma, a própria humanidade é um grupo de risco.

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