sexta-feira, 27 de março de 2020

Guilherme Amado - O mau militar, o retorno

- Revista Época

Em condições normais, seria uma crise institucional. O vice enquadrou o presidente

Se ainda não reencarnou, Ernesto Geisel deve estar com os olhos atentos a cada lance que se passa nesta dimensão, mais especificamente no quadradinho dentro de Goiás onde deveria estar o comando do combate ao coronavírus. Em uma entrevista em julho de 1993, para a historiadora Maria Celina D’Araújo, Geisel mencionou bem en passant Bolsonaro ao falar sobre as vivandeiras, os poucos que, menos de dez anos após o fim da ditadura, imploravam que o Exército derrubasse o presidente e retomasse o controle do país.

O então deputado federal era um deles e, desde aquele tempo, não se constrangia em atentar contra a democracia. O artífice da abertura divagava sobre a presença de militares na política brasileira, desde o Império, para defender a tese (até agora furada) de que o desenvolvimento os afastaria da tentação de fazer o que não lhes cabe. A menção a Bolsonaro veio aí, quando observou que naquela legislatura quase não havia mais militares congressistas. “Há militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar.” A sagacidade do general acertou em cheio: pelo “completamente fora do normal” e por enxergar a indisciplina e a deslealdade de Bolsonaro, que fizeram com que os coronéis o condenassem em 1987 — em 1988, o Superior Tribunal Militar o absolveria por 8 votos a 4. Esteja onde estiver, Geisel viu nos últimos dias mais exemplos de como Bolsonaro esqueceu-se agora de outro preceito caro aos militares: o cientificismo. E o general também já deve ter sacado que, entre a ignorância (termo usado pelo governador Ronaldo Caiado para se referir a Bolsonaro) e a ciência, Hamilton Mourão fica com esta.

Os militares dificilmente concordarão com a tese do isolamento vertical, ou seja, deixando apenas idosos e pessoas com doenças preexistentes fora do convívio social. Disse na quarta-feira 25 o vice-presidente: “A posição do nosso governo, por enquanto, é uma só: o isolamento e o distanciamento social”. Na véspera e na manhã daquele mesmo dia, o presidente havia dito o oposto, na porta do Alvorada: “A orientação vai ser vertical daqui para a frente”.

Mourão também desautorizou o médico Luiz Henrique Mandetta, atualmente ministro da Saúde, que foi voz isolada entre milhares de seus colegas de todo o mundo e da própria universidade onde se formou e defendeu: “Temos de melhorar esse negócio de quarentena. Foi precipitado. Foi cedo. Ficou uma situação do tipo: ‘Entramos e agora como é que saímos?’”.

Aqui não se trata de discutir Mandetta, que tem rebolado para se manter no cargo e, entre erros e acertos, tem conduzido de maneira minimamente técnica tudo isso que estamos vivendo. Se ele vai se bolsonarizar, a exemplo de Augusto Heleno, Sergio Moro, Regina Duarte e outros, o tempo dirá. O ponto aqui foi o gesto de Mourão. Este e dois outros.

Em 19 de março, numa entrevista, Mourão escolheu o apelido “Bananinha” para dar um exemplo de um possível outro nome que Eduardo Bolsonaro poderia ter e que, desta maneira, não daria peso a suas palavras. “O Eduardo Bolsonaro é um deputado. Se o sobrenome dele fosse Eduardo Bananinha, não era problema nenhum. Só por causa do sobrenome. Ele não representa o governo. Não é a opinião do governo. Ele tem algum cargo no governo?”

No dia 25, a mesma quarta-feira em que o vice defendeu o isolamento total, o colunista Lauro Jardim, de O GLOBO, publicou um vídeo de parte da reunião virtual que Bolsonaro e Mourão tiveram de manhã com os governadores do Sudeste para tratar do coronavírus. Mas o presidente aproveitou para lavar roupa suja com João Doria, que, a exemplo de Bolsonaro, se prepara para disputar a Presidência em 2022.

O trecho escancara a reprovação de Mourão à atitude do cabeça de chapa. Bolsonaro acusava o governador de São Paulo de ter se apoderado de seu nome em 2018 e pedir (entusiasmadamente, é bom lembrar) o voto Bolsodória. O general, ao ouvir a menção à eleição, apertou o lado esquerdo dos lábios, sorriu levemente para algum dos ministros presentes na conversa e balançou a cabeça em ar de reprovação. Depois, baixou os olhos e concentrou-se em escutar.

Quando Bolsonaro sugeriu a Doria que guardasse suas observações críticas ao pronunciamento da véspera, Mourão de novo mexeu a cabeça em sentido negativo. Uma caneta balançava no papel que tinha à frente, e Bolsonaro exaltava a voz. Só não há mais documentação histórica sobre o fato porque o cinegrafista da TV Brasil, provavelmente ao perceber o significado dos gestos de Mourão, apertou o enquadramento e deu close em Bolsonaro.

Escrevo no meio da tarde da quinta-feira 26 e talvez nas próximas horas Carlos Bolsonaro faça uma das suas contra o vice. Ou alguma de suas marionetes blogueiras passe a defender a tese conspiratória de que o vice foi comprado pelo Partido Comunista Chinês — Olavo de Carvalho já está sugerindo isso sobre Ronaldo Caiado e João Doria. Até agora, não há nada nas redes.

A postura é muito diferente do que ocorria no primeiro semestre do ano passado. A cada lampejo de protagonismo que Mourão buscava, Carlos estrebuchava. Chegou a sugerir que ao vice interessava a morte do pai. Mourão quase sempre ignorou, salvo uma cotovelada ou outra.

O silêncio tem razão. Duas pessoas próximas à família Bolsonaro confirmaram que o grau de irritação dos três zeros — o vereador, o deputado federal e o senador — e do próprio presidente é grande com o vice. Mas os ventos são outros. No primeiro semestre do ano passado, Bolsonaro não tinha popularidade muito diferente da que tem agora. Mas havia muitos mais aliados na política e nas Forças Armadas — vários o abandonaram neste período, do general Santos Cruz a Joice Hasselmann, passando pelo finado Gustavo Bebianno e pelo intrépido Alexandre Frota. Dos 27 governadores, 18 repudiaram seus arroubos anticientíficos.

Nas redes, também parece estar perdendo esta batalha. Desde 12 de março, o debate do coronavírus resultou em 50 milhões de postagens no Twitter sobre a pandemia, segundo a Sala de Democracia Digital, da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (Dapp-FGV). Na terça-feira 24, foram 6 milhões de postagens — mais da metade após o pronunciamento da “gripezinha”. No dia do pronunciamento, em três horas e meia, das 20h30 (horário do começo do pronunciamento) à meia-noite, foram 3,5 milhões de interações no Twitter — 80% negativas, segundo os pesquisadores.

O Brasil tem 15 patronos em seu Exército. Além do Duque de Caxias, há outros 14 de Armas, Quadros e Serviços. A lista inclui nomes famosos, como os marechais Rondon e Osório, a cadete Maria Quitéria e o escritor Olavo Bilac. Bem menos conhecido é o general de brigada Severiano da Fonseca (1836-1887), que foi também médico, escritor, historiador e diplomata. Foi voluntário na Guerra do Prata, mesmo afastado por doença. Começou ali uma série de participações fundamentais nos combates da época, culminando na vitória brasileira na guerra contra o Paraguai. Sofrendo as dificuldades impostas pelas condições climáticas da região, de calor intenso no verão e muito frio no inverno, o general teve de lidar com as epidemias de varíola e cólera, lutando contra a precariedade do estado sanitário da tropa. Chegou ao topo da área de Saúde da Força e depois foi eleito senador. Segundo os anais do Exército, manteve-se “zeloso, humanitário e inteligente”.

Bolsonaro terá mais algumas semanas para tentar reaver o comando do país na mais grave crise sanitária em 101 anos. Pode-se inspirar em Severiano da Fonseca. Ou pode deixar que Hamilton Mourão se inspire.

2 comentários: