sexta-feira, 6 de março de 2020

José de Souza Martins* – Por acaso

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O acaso é frequente nas tradições brasileiras. Por acaso, o presidente é assim mesmo. Por acaso as coisas acontecem fora da pauta cívica e do que é próprio da organização e da liturgia do Estado

O acúmulo de gestos, atos, atitudes, palavras, palavrões, nestas últimas semanas do Brasil transfigurado, o novo Brasil surpreendente e, mesmo, assustador, provoca o temor de que algo está sendo tramado. O que pode transformá-lo em algo bem diverso do que o povo brasileiro conhece e respeita.

A alegação presidencial de que o governante se apoia em 31 milhões de pessoas com as quais se comunica pelas redes sociais e, portanto, não pelo “Diário Oficial”, mostra que o Brasil político é hoje dominado por uma fonte alternativa de legitimidade, fora do marco das instituições e da Constituição. Diversa da legitimidade procedente do voto popular que se expressa em duas fontes complementares de poder, as casas do Legislativo e o Executivo. Este mesmo, descaracterizado por um discutível presidencialismo de condomínio familiar, escorregadio em face da lei e da ordem. Os guardiões das instituições calam-se na cumplicidade do silêncio.

O apoio presidencial à convocação de manifestações contra o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal reforça o temor de que as instituições estão concretamente ameaçadas. Pescadores de águas turvas têm tido uma função antidemocrática na história política do Brasil e já não há como não notar que a pátria está sendo de nós todos usurpada.

Pode-se dizer que tudo isso é apenas um conjunto de acasos, expressões de imprudência, de falta de educação, de carência de civilidade dos que se aboletaram na organização do Estado a partir de 1º de janeiro de 2019. O Brasil é assim mesmo, disse-me alguém. Melhor não perder tempo com essa gente. Ora, é isso mesmo que essa gente quer, que não prestemos atenção naquilo que destoa do que deveria ser.

Tudo vai para a conta do acaso. Por acaso, o presidente é assim mesmo. Por acaso as coisas acontecem fora da pauta cívica e do que é próprio da organização e da liturgia do Estado brasileiro.

O acaso é frequente nas tradições brasileiras. Por acaso, o Brasil foi descoberto, em abril de 1500, embora não tão por acaso, pois numa das primeiras cartas enviadas ao rei de Portugal, o missivista lhe sugere que mande buscar um mapa na casa de alguém, porque ali a nova terra já estava localizada. Aqui o acaso produz consequências não casuais.

Por acaso, a independência do Brasil foi proclamada pelo príncipe Dom Pedro. Ele achava que estava proclamando uma coisa quando estava proclamando outra. Na tarde de 7 de setembro de 1822, na colina do Ipiranga, pensava estar consolidando o lugar do Brasil no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

À noite, na Casa da Ópera, no hoje Pátio do Colégio, ao ser inesperadamente aclamado rei do Brasil, ficou sabendo que havia proclamado a Independência e a saída do Brasil do Reino Unido de Portugal. Uma trama de jovens paulistas, ligados a José Bonifácio de Andrada e Silva, resolvera colocá-lo na situação de fato de fundador do Império.

A República foi proclamada por acaso, contra o Partido Republicano. O marechal Deodoro imaginava estar depondo o ministério quando de fato estava proclamando a República. Levou um dia inteiro para descobrir isso. Até que o imperador, aprisionado com sua família, desde cedo, decidiu propor aos carcereiros, oficiais do Exército, sua saída do país, com a família, desde que assegurados a ela os meios materiais de sobrevivência. Com isso, viabilizava a República sem derramamento de sangue. Dom Pedro II foi o verdadeiro republicano daquela hora de incerteza.

O acaso fincou pé na política brasileira, subjacente às peculiaridades de nossa estrutura política. O Brasil não é, politicamente, um único país. Mas ao menos dois, superpostos: o Brasil municipal e o Brasil nacional. O país dos municípios que, já nos primeiros tempos do período colonial, eram chamados de República e mesmo definidos como pátria, como fizeram os paulistas quando da Guerra dos Emboabas, no século XVIII. Nele nasceu nosso nativismo e nosso ímpeto de independência.

O Brasil nacional foi forjado pela metrópole, consolidou-se na unidade do Império. Na República ganhou uma cara unitária, que se tornou também uma cara autoritária ou de tendências autoritárias. Nas eleições de 2018, um traço dessa duplicidade ganhou relevo. Os municípios colocaram entre parênteses sua tradição democrática e elegeram um Congresso Nacional que abdica de seu poder e de seu dever em face da legitimidade ilegal das ruas, manipuladas pelo afã do poder absoluto.

Para votar, compreensivelmente, contra o Partido dos Trabalhadores, o eleitorado cansado e desiludido votou no autoritarismo do candidato residual do sistema político degradado. Foi um voto contra, e não um voto a favor. Por acaso, elegeu as almas penadas que sobraram do regime de 1964.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de "Moleque de Fábrica" (Ateliê Editorial).

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