quinta-feira, 26 de março de 2020

Na crise, Bolsonaro é contra o que seu próprio governo faz – Editorial | Valor Econômico

É desastroso que falte equilíbrio, espírito público e inteligência ao Executivo em um momento como esse

O presidente Jair Bolsonaro coloca milhares de vidas em risco e contra uma pandemia de alto poder destrutivo se colocar em prática os esboços de pensamentos que despejou em cadeia nacional de rádio e TV na noite de anteontem. Com sua ignorância soberba, Bolsonaro pretende desmobilizar as quarentenas espalhadas por todo o país, conduzir todos os brasileiros de volta ao trabalho, isolando do convívio social idosos e pessoas com doenças crônicas. É uma guinada irresponsável de 180 graus na linha de ação do ministro da Saúde, Luiz Mandetta, que não deve seguir à frente do ministério se Bolsonaro executar suas intenções.

Bolsonaro é anárquico, imprevisível, temperamental e indisciplinado - em resumo, tudo que o Brasil não precisa neste momento de um presidente. Mandetta segue orientações que arregimentam o consenso possível entre os especialistas sobre como enfrentar a pandemia. Bolsonaro, nas poucas vezes em que abriu a boca para comentar o que seu próprio governo estava fazendo contra a covid-19 foi para desdenhá-la, criticar a histeria da imprensa e minimizar “gripinha” - que até ontem matou 57 pessoas no Brasil. Agora, inspirado pelo também imprevidente e falastrão presidente dos EUA, Donald Trump, resolveu que todo o esforço construído para tentar evitar o caos em um já deficiente sistema de saúde, está errado e precisa ser reorientado.

Diante de uma terrível ameaça, o presidente precisa saber ouvir as melhores opiniões disponíveis, definir rumos, traçar metas, estabelecer prioridades e empenhar-se para alcançar os objetivos. O estilo “deixa que eu chuto” de Bolsonaro é o contrário disso. Desde os primeiros sinais da covid-19, não deu atenção ao problema, nem procurou se informar e aprender sobre o assunto. Com o vírus entre nós, enciumou-se do trabalho de Mandetta, e dias depois, disse para espanto geral da nação que todos estavam errados - inclusive os governadores de São Paulo e Rio, Estados onde estão a maioria dos infectados e onde ocorrem o maior número de mortes.

A lógica de seus movimentos é maluca. Bolsonaro fizera duas reuniões com governadores para ampliar recursos para os Estados enfrentarem e distender o clima tenso que criou com a maioria deles. Um dia após dialogar com os governadores do Norte e Nordeste, decide agredí-los e, na teleconferência ontem com os governadores do Sudeste, fez aquilo que mais gosta de fazer - atacar inimigos políticos. Disse que o governador paulista João Doria não tinha “altura” para aspirar à Presidência em 2022 e, depois, que as restrições impostas por alguns governadores e prefeitos são “crime”.

Não satisfeito com comprar uma briga federal, devolveu a crítica do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, sobre seu pronunciamento, afirmando que o senador “nunca fez nada pelo Brasil”.

O destempero do presidente, que já brigou com todos os Poderes da República e participou de manifestações de rua contra eles, tem crescido à medida que começa a derrocada de sua popularidade entre seu próprio eleitorado. Suas ironias sobre a covid-19, que já matou mais de 20,5 mil pessoas em todo o mundo, foram recebidas com panelaços de indignação em locais onde obteve grande votação nas eleições. A prioridade de Bolsonaro, porém, é a minoria que o defende, encapsulada há algum tempo em 25% dos que consideram seu governo ótimo ou bom. Sua aposta no enfrentamento a todo custo, mesmo diante de uma crise de grandes proporções, demonstra seu desejo explícito - o poder pelo poder, que julga poder manter pela polarização.

Bolsonaro não é um estadista e não dá a mínima se uma crise sanitária perigosa for acompanhada de grave crise institucional. As consequências da pandemia e os atos dos governadores que considera rivais podem lhe dar pretextos para um estado de sítio e consequente restrição das liberdades democráticas. O presidente não teme este desfecho, parece até mesmo buscá-lo: não dialoga, e até ofende, os demais Poderes.

Em seus cálculos podem estar muitas coisas - além do destino de seu governo. Um impeachment em meio ao caos sanitário seria improvável, como ainda parecem acreditar as lideranças do Congresso. Os militares que lotam o governo barrariam tentativas de apeá-lo do poder e até o apoiariam em um golpe contra as instituições. Nenhuma das hipóteses pode se revelar verdadeira. É desastroso, de qualquer forma, que falte equilíbrio, espírito público e inteligência ao Executivo em um momento como esse.

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