quinta-feira, 2 de abril de 2020

Brasil tem que estruturar economia de guerra durante crise do coronavírus, defende economista

Para José Roberto Afonso, empresas devem se adaptar para suprir demandas e superar pandemia

Camila Mattoso/ Mariana Carneiro | Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - O economista José Roberto Afonso, 58, professor do IDP, afirma que o coronavírus vai transformar a economia em digital de forma antecipada e investir nessa mudança é uma forma de manter o mercado vivo em tempos de isolamento sanitário.

Ele defende que o Brasil estruture, durante a crise, o que ele chama de economia de guerra, na qual empresas mudam suas atividades para ajudar o país.

Fabricantes de automóveis poderiam fazer ambulâncias e fabricantes de roupas, equipamentos para profissionais de saúde.

Especialista em contas públicas, Afonso sugere ainda que governo, estados e prefeituras organizem o desconto de impostos sob pena de o mercado resolver pelo caminho da inadimplência.

Para o economista, que defende a criação de um comitê para coordenar a crise, como o do apagão, em 2001, o coronavírus tem uma peculiaridade: trata-se de uma recessão de serviços e, por isso, as prefeituras vão sofrer mais.

• Como vê essa dicotomia que Jair Bolsonaro vem colocando, entre a economia e as medidas protetivas de saúde?

Essa discussão está no mundo inteiro, mas não tão politizada. Pessoalmente, não quero ficar falando de política, mas tenho uma posição simples e radical sobre isso. Nenhum economista e nenhuma autoridade pública tem o direito de escolher quem vai morrer.

A esses profissionais, cabe escolher pela vida. O que a gente tem que fazer é lutar para conciliar a guerra da saúde, a guerra social e a guerra econômica. A gente tem de aproveitar essa crise para transformar em uma oportunidade.

O coronavírus veio acelerar uma tendência que já vinha de antes, de transformar a sociedade em digital. Muito do nosso dia a dia vai ser dentro do celular. O que ocorreria em dois ou três anos, vai ser agora. Coisas impensáveis vão virar realidade mais rápido. Temos que nos organizar e parte disso tem de vir do governo. Eles precisam dar crédito para essa migração, investir em pesquisas.

• De que tipo?

A maneira mais rápida de você ter UTI, por exemplo, é fazendo uma ambulância UTI. Na minha opinião, a indústria automobilística tinha que estar já há muito tempo trabalhando nisso e produzindo. Ao mesmo tempo que você está ajudando na saúde, você está ajudando a economia, porque tem trabalhadores ali.

Isso chama economia de guerra e a gente já viu isso algumas vezes, nas guerras. Na Europa tem empresa de roupas que está produzindo equipamento de proteção para médicos. Você não para a produção e consegue olhar para a saúde. Tem vários outros casos que podem ser assim.

• E no caso de informais?

A minha secretária do lar vendia cosméticos, todo mundo hoje está na internet, pobres e ricos, por que você não pega essa vendedora e coloca ela para vender online? A gente só precisa que as empresas de logística estejam funcionando. Tem enormes oportunidades, mas é o governo que tem que organizar. E não só a grande produção.

A proteção social tem de estar ligada ao empreendedorismo social. Eu acho que o Bolsa Família, por exemplo, tem que ficar com o pobre. Tem muita gente que está perdendo o emprego, ou perdendo o trabalho, e tem condições de estudar e de trabalhar. O que o governo tem que fazer é contratar essa gente e dar serviço.

A cozinheira que hoje está em casa, eu contrato ela para ela fazer merenda escolar. Por que ela não pode fazer a marmita em casa e eu distribuo nas escolas? Isso que parece pequeno, não é pequeno. São milhões de pessoas.

• Mas o governo tem capacidade de agir com a capilaridade que esse tipo de política necessita?

Não é nada difícil de fazer. Os militares, por exemplo, sabem fazer isso direitinho e rapidinho. Eu falo de economia de guerra porque precisa de disciplina. Esse exemplo que eu dei, da cozinheira, passa sobretudo pelas prefeituras do interior.

Eu iria além. Você poderia ter o Bolsa Social e o Bolsa Família. Pergunta para o trabalhador o que ele quer: um dinheiro a fundo perdido ou trabalhar? Nem todo mundo pode entregar quentinha, tudo bem. Tem um que tem um salão, mas ninguém tá cortando o cabelo. Coloca ele pra fazer um curso de informática.

Chama os empresários de educação particular e compra deles os cursos que eles têm. O cabeleireiro pode aproveitar isso. O estado vai ter que fazer isso, queira ou não queira. Se não sabe, vai ter que aprender. Tem que ter disposição e criatividade. A criatividade que faz piada do coronavírus nas redes sociais tinha que se converter para a gente conseguir conciliar o isolamento social e a economia.

• Os empresários têm pedido coordenação, está faltando?

Nós temos uma das experiências mais bem sucedidas do mundo para enfrentar uma emergência, ainda que não sanitária, que foi a do apagão. Havia uma comitê que tinha poder para decidir rápido. Pega tudo que estava escrito na comissão do apagão, apaga a palavra apagão e usa.

• A crise é igual a do apagão?

Tem uma peculiaridade nessa crise. Não há uma função pública no Brasil mais descentralizada do que a Saúde. Como é o financiamento da saúde pública? 40% do governo, 40% dos estados e 30% dos municípios. Quando você vai ver quem executa, 15% é União, 35% os estados e 55% os municípios. Mas o que você precisa agora é de hospital. A União só gasta 5% com hospitais, 50% são os estados e 45% os municípios.

Então, não é hora de ter briga. Mesmo que o governo federal queira, é impossível ele dar a assistência médica. A função dele é coordenar a execução. Além disso, tem a rede privada. O governo brasileiro é um dos que menos gasta do mundo [em relação ao gasto das famílias]. Você tem que aproveitar esse momento pra fazer a coordenação, não só do ponto de vista administrativo, mas com a federação. Tanto pra saúde, quanto pro social. Eu tinha comentado com prefeitos que a federação brasileira nasceu de cima para baixo. Agora tem uma oportunidade única de se fazer de baixo para cima.

Enquanto o governo federal está meio perdido, estados e municípios estão agindo, até porque eles têm que agir, não têm nem muita opção. O doente está batendo lá.

• As empresas estão pedindo desconto de impostos. Como pode fazer isso sem que os governos fiquem sem dinheiro para pagar médicos?

Primeiro, para pagar médico nessa hora, se você não tiver [desconto de] imposto, é só você rodar a maquininha. Depois você resolve. Acho que a primeira providência que o mundo inteiro fez e o governo brasileiro está demorando a fazer é adiar o pagamento dos impostos de forma organizada. Basicamente, mundo afora, o que está sendo feito é jogar para frente, não é renúncia. Faz isso com microempresa, basicamente, que é quem gera emprego.

• Qual é a consequência desta demora?

Tem dois problemas: 

1) o mercado resolve com a inadimplência. Mas se acontece isso, quem não vai pagar é todo mundo, inclusive a grande empresa, e nem toda grande empresa está mal. Tem setor que a grande empresa está mal. Setor aéreo, por exemplo, tem de suspender o recolhimento de impostos. Turismo também, que é muito afetada imediatamente. Em outras áreas você libera microempresa. E aí, quem não tá pagando, você faz o que? Processa na Justiça? Nesse momento?

2) As atividades atingidas pelo coronavírus, basicamente o setor de serviço, ele não vai ter lá na frente imposto a pagar, porque o faturamento vai ser zero. Essa é uma recessão de serviços. E o setor de serviços é chave para o ISS. As prefeituras vão sentir um baque muito maior que os estados, a arrecadação deles vai derreter muito mais rápido que o ICMS [dos estados].

• Como resolver esse problema?

Em relação aos estados e municípios que não podem emitir dívida pública, e nem devem, e não podem emitir moeda, cabe ao governo federal emitir e repassar a eles. Eu vou além, eu não defendo suspender o pagamento da rolagem da dívida [com a União], eu defendo que os estados e municípios paguem a rolagem da dívida em serviços de saúde e em serviços sociais.

Tudo isso é quantificável. Até agora falou, falou, falou, e até agora nada. E o cara da ponta está comprando. Dá pra fazer direitinho isso, vai no tribunal de contas e mostra o que fez de novo e abate da dívida. Quando a gente fez lá trás a rolagem da dívida a gente criou um negócio chamado de moeda podre, que eram créditos passados das empresas.

Agora a gente tem que criar a moeda viva, moeda social. Gaste e o governo reembolsa —ou abate ou transfere.

• O governo pode transferir dinheiro neste momento?

Tenho ouvido coisas absurdas. Não posso transferir recursos para os municípios porque é transferência voluntária e é ano de eleição. Aí vai pra outro extremo, acaba com a eleição. A transferência é compulsória, não é voluntária.

Para comprar leito de UTI e respirador, é compulsório. Aliás, o Congresso deu ao Ministério da Saúde um principio legal que chama requisição compulsória de bens e serviço. Isso vem de um decreto lei de 1942, que tava em vigor. O que o Ministério da Saúde tem de fazer com isso, é comprar serviço compulsoriamente. Chegar e ver quanto precisa e comprar. Pode sair comprando. Compra tudo que for possível produzir.

• O que o orçamento de guerra ajuda nisso?

É um orçamento apartado. Tem que apartar o que é o dia a dia, que está meio abalado mas vai voltar a funcionar, e para esse dia a dia eu não tenho que suspender as regras. No orçamento de guerra, você separa, e vai comprar com fast track. Outro dia disseram que a exceção é para fazer gastança. Não, é abrir exceção para que o ordinário siga em regras.

Dizem que os prefeitos querem contratar médicos e enfermeiros para se reeleger... a maioria dos médicos não quer trabalhar em hospitais, por isso vai ter que requisitar compulsoriamente o trabalho de médicos. Não precisa contratar como servidor, pode ser como pessoa jurídica. Nem é despesa de pessoal, é contratação de serviço, não mexe em nada da lei. Estão fazendo uma confusão desnecessária.

• Municípios dizem hoje ter dinheiro mas não conseguir comprar equipamentos.

O governo federal tem que coordenar. Como estamos falando de 27 governadores que sempre brigaram e agora estão juntos? Prefeitos de todos os lugares e de todos os partidos... tem que coordenar. Não só com uma postura de liderança mas com medidas econômicas sensatas. Primeiro, sair do negacionismo. Não tem crise? Tem crise, é uma guerra. Vamos resolver? Quando não se faz isso, veja o que virou a questão dos respiradores. É semelhante a uma guerra fiscal, o governo federal não faz política de desenvolvimento é cada um por si, Deus por todos.

• Como o BNDES e os outros bancos podem agir?

Ou adia o pagamento de crédito, e não só para o BNDES mas geral, ou não serão dois ou três bancos quebrando, mas vários bancos quebrando. O Banco Central está fazendo o papel correto. Está dizendo aos bancos: pode adiar o pagamento e não precisa levar isso à provisão de devedores duvidosos.

• Estão tímidos?

O BNDES pode e deve entrar no esforço de reconversão produtiva, porque tem técnicos que sabem tudo de cada setor, de saúde, da indústria de farmacêutica. E nesse papel de reconversão e de migrar para a economia digital, os bancos públicos têm que tomar a dianteira.

Outra coisa, tudo isso só vai acabar quando tiver vacina. Deus e todo mundo está pesquisando. O Brasil está pesquisando. Dá tempo de descobrir a vacina? Eu acho que não. Mas o Brasil é um dos maiores mercados de vacina do mundo. O que temos que fazer? Ir aos países que estão na dianteira e perguntar: quer vacinar no Brasil? Vamos fazer lá na Fiocruz, no Brasil. Eu pago royalty, tudo certinho. Mas não para trazer vacina lá da China, não.

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