quarta-feira, 22 de abril de 2020

Maria Silvia Bastos Marques* - Hora de crise, hora de agir

- Valor Econômico

É preciso um pipeline de projetos, que atrairão recursos, criarão empregos e aumentarão a produtividade

O Brasil sempre avança a passos mais largos nos momentos de dificuldade. Assim, além das iniciativas urgentes para atravessar a pandemia, cabe refletir como avançar rumo a uma economia mais produtiva e eficiente, condição necessária para a retomada sustentada do crescimento.

Ressalto a importância das reformas e medidas micro e macroeconômicas dos anos recentes. Sem as reformas trabalhista e da previdência, o teto constitucional de gastos, a mudança da taxa de juros do BNDES, a desregulamentação do setor financeiro - e seus impactos no mercado de trabalho, na solvência da dívida pública, nas taxas de inflação e de juros, no florescimento do mercado de capitais e das fintechs - a pandemia teria atingido o Brasil em situação frágil, dificultando ou impossibilitando a necessária resposta das políticas monetária e fiscal.

As medidas que vem sendo anunciadas pelo BC e Ministério da Economia buscam amenizar o impacto da abrupta e aguda interrupção na atividade econômica, mas resta comprovar se os recursos atingirão, a tempo e a hora, os pequenos e médios empresários. A questão crítica desse segmento é a do risco de crédito, o que torna premente a disponibilização de instrumentos públicos de garantias como fundos garantidores e/ou a assunção, pelo Tesouro, de um percentual da primeira perda.

Por outro lado, o remédio deve ser na dose necessária, mas precisa ser temporário. Não podemos correr o risco de retroagirmos à situação de 2015/17, com descontrole fiscal agudo, altas taxas de juros e de inflação, recessão e desemprego, resultado do prolongamento das medidas de contenção à crise de 2008. Solvência e solidez fiscal são essenciais para o Estado ser capaz de prover serviços públicos essenciais.

A crise também trouxe aspectos positivos. O mais relevante tem sido o aprendizado de que é preciso cooperação entre os indivíduos, empatia e solidariedade. Estamos desenvolvendo o senso de coletividade, que tem propiciado intensa cooperação público-privada na área da saúde e suporte aos que estão em situação de maior fragilidade, com doações de empresas e indivíduos em montante expressivo.

Outro desdobramento positivo é a mudança de percepção a respeito do SUS, sempre criticado. Temos um sistema de saúde público descentralizado e universal, único em países de dimensões comparáveis às do Brasil. Precisamos focar ações e recursos para fortalecê-lo e ampliar seu alcance e eficiência. Também estamos percebendo a importância de instituições centenárias e de referência internacional, como Fiocruz e Instituto Butantã, centros de inteligência e de pesquisa no setor de saúde.

Relevante ainda o fato de não ter ocorrido desabastecimento de alimentos e da logística do país ter continuado a funcionar, a despeito da alta dependência do transporte rodoviário, impactado pelas restrições de deslocamento. Tudo isso tem mostrado que somos capazes de planejar e executar ações indispensáveis à manutenção da segurança alimentar, mesmo em uma grave situação.

Por fim, a resiliência do sistema de telecomunicações (privatizado há duas décadas), com milhões de pessoas em home office e ensino à distância, e o rápido avanço rumo a uma economia mais digital. Medidas que possibilitam o uso da telemedicina, assembleias virtuais de acionistas, assinaturas eletrônicas, inscrição por e-mail para obtenção de CPF, etc, contribuem para aumentar a produtividade e reduzir custos de transação, melhorando o ambiente de negócios.

Tão grande quanto a incerteza em relação à evolução da pandemia é de como se dará a flexibilização gradativa da mobilidade social que permitirá à economia se reaquecer. A resposta virá com o tempo e o acompanhamento dos outros países, mas podemos agir agora para alavancar o processo de saída da crise.

Um tema que precisa avançar rapidamente é o do saneamento. A crise atual tem relação direta com a questão sanitária e hábitos de higiene, e a inaceitável realidade é que o Brasil, em 2011, ocupava a 112ª posição em um ranking de saneamento que engloba 200 países. Infelizmente, não há razão para supor que nossa posição relativa tenha melhorado.

Em 2017, segundo o Instituto Trata Brasil (ITB), havia 35 milhões de pessoas sem água tratada e praticamente metade da população brasileira sem coleta de esgotos. Mais grave ainda, apenas 46% dos esgotos coletados são tratados, a maior parte despejada in natura, poluindo as praias e lençóis hídricos e condenando milhões a viverem indignamente.

Recentemente, a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana viveram a inaceitável situação de fornecimento de água contaminada, consequência de anos de sub-investimento e falta de manutenção. Uma crise que atingiu gravemente a população carente, sem recursos para adquirir água mineral.

Em 2016, no início do governo Temer, o saneamento foi definido como uma das prioridades do Programa de Parcerias de Investimentos, o PPI. Em 2018, foi encaminhada uma MP ao Congresso para dar segurança regulatória e jurídica aos investimentos necessários para mudar o quadro do setor.

Saneamento significa economia com saúde pública, aumento na produtividade, turismo, emprego, renda, valorização imobiliária, arrecadação de tributos. Por que não conseguirmos aprovar essa nova regulamentação?

Uma das razões, a meu ver, é a sobreposição do interesse coletivo pelo corporativo. O sistema atual permite os chamados “contratos de programa”, em que as empresas estaduais de saneamento podem ser contratadas sem licitação, impossibilitando a concorrência, em igualdade de condições, das empresas privadas. A última versão da MP que tramita no Congresso prevê que, sob condições, tais contratos possam ser prorrogados por até 30 anos, o que fará com que parcela relevante dos brasileiros continue carente de saneamento, pela insuficiência de investimentos.

No contexto de uma pandemia que impõe padrões sanitários essenciais à população e o interesse coletivo precisa se sobrepor ao individual, faz-se urgente a aprovação de legislação que dê respaldo ao setor privado para competir em igualdade de condições pelos serviços de saneamento, alavancando recursos nacionais e internacionais.

Além do saneamento, o setor de infraestrutura possui muito potencial para atrair investimentos, com concessões e parcerias público-privadas. Com as taxas de juros em níveis historicamente baixos e cadentes, nosso portfólio de investimentos fica mais atrativo em um mundo com excesso de liquidez.

Para concretizar essa oportunidade é preciso definir um pipeline de projetos bem formulados, que atrairão recursos, criarão empregos e aumentarão a produtividade de todos os setores da economia. Hora de crise, hora de agir.

*Maria Silvia Bastos Marques é doutora em economia, presidente do Conselho Consultivo do Goldman Sachs no Brasil, ex presidente da CSN, Icatu Seguros, Empresa Olímpica e BNDES.

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